https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0286568
Acima, um dos painéis com traçados de dedos; em baixo, o desenho esquemático da mesma gravura da gruta de La Roche-Cotard
[Ler o artigo, clicando no link acima; o meu comentário parte do princípio que os leitores tomaram conhecimento do seu conteúdo primeiro]
Comentário
Os Neandertais têm estado por cá (em toda a Europa, desde a Península Ibérica ao limite oriental dos Urais e, para além destes, na Sibéria; no Médio Oriente, desde o Levante/Israel, até ao Iraque) nos últimos 200 mil anos, tendo saído de África muito antes do «Homem Moderno Antigo» (ou seja, a nossa espécie Homo sapiens). Eles conseguiram sobreviver a períodos de glaciação, a modificações acentuadas do habitat e tiveram tempo de se adaptar a climas de um frio extremo, como mostram a sua anatomia entroncada, muito musculosa, o seu nariz grande (para aquecer o ar inspirado), etc.
Segundo os padrões de beleza contemporâneos (e da antiguidade clássica) eles não seriam elegantes. Foram classificados como «sub-humanos» por arqueólogos e paleontólogos do século XIX, que estavam muito mais preocupados em encontrar «o elo perdido» entre o homem e o macaco, do que em avaliar objetivamente os restos fossilizados e as culturas que correspondiam aos Neandertais.
O facto de que os homens nessa zona da Europa, na época em causa ( -57 mil anos) só podiam ser Neandertais tem a ver com a extrema dificuldade dos H. sapiens conseguirem colonizar o continente Euro-asiático. Com efeito, sabe-se hoje, que o «Homem Moderno Antigo», embora surgido primeiro em África, por volta de 300 mil anos atrás, não ocupou definitivamente a Europa senão vários milénios após a referida data de 57 mil anos antes do presente. Porém, tinha havido 2 colonizações anteriores, do continente euroasiático pelo H. sapiens, que não deixaram continuidade. Eles tomaram o caminho do Mar Vermelho e não do Mediterrâneo.
Os vestígios europeus mais antigos de arte parietal, como na Gruta de Chauvet, atribuídas ao Homo sapiens, datam de 35 mil anos. No Norte da Espanha, na Gruta del Castillo, existem pinturas parietais datadas com mais de 40 mil anos; pensa-se que, nessa época, somente neandertais aí habitavam. Noutros pontos da Península Ibérica, são abundantes sítios arqueológicos, com artefactos e restos fossilizados de neandertais, que revelam a sua grande difusão nesta península. Mas, também são conhecidos exemplares de neandertais na Sibéria e noutros pontos distantes.
Este estudo - agora publicado - vem na sequência de trabalhos anteriores, que já tinham revelado muitos elementos de cultura neandertal. Pessoalmente estou convencido que estas descobertas [que se vêm juntar às de misteriosas pinturas parietais em vários pontos da Península Ibérica e com indícios de ornamentação corporal, como conchas com vestígios de ocre (para pintar o corpo) assim como restos fossilizados de penas (de aves de grande porte, como águias e abutres) ] obrigam a comunidade científica a alargar o conceito de arte paleolítica.
A arte - em geral - pode ser vista segundo dois prismas, essencialmente:
ou é vista como representação do real. Isto inclui o sobrenatural, pois ele é considerado real pelo artista que o representa.
ou é vista como signo, como sinal, como mensagem codificada; a pertença a um clã, a uma tribo, será identificável com os sinais exclusivos desse clã ou tribo.
Isso existe na nossa espécie o Homem Moderno, desde o princípio, visto que as grutas decoradas do paleolítico, estão cheias de sinais «abstratos» , mas que não são arbitrários, pois se repetem (alguns, apresentam-se em locais distantes, no tempo e no espaço).
Na espécie nossa estreita parente, Homo neanderthalensis, suas condições de vida foram muito mais rudes, durante boa parte da sua existência no continente europeu. Não é difícil compreender que estavam forçados pela natureza do clima (de tipo peri-ártico; de tundra) a deambularem de sítio para sítio, ficando em cavernas ou abrigos temporários, sem continuidade, quanto muito visitando, ano após ano, determinados locais. Lembro também que os locais mais ricos em imagens e gravuras no paleolítico superior (ex. Na gruta Chauvet), estão nos locais mais recônditos das grutas. Por vezes, são quase inacessíveis: seria uma prova tremenda se aventurar no seu interior, segurando apenas lamparinas com gordura, para se iluminarem.
A representação não é - de qualquer modo - um critério para se avaliar o grau de desenvolvimento duma cultura. Basta lembrar que existem tabus (proibições religiosas) em sociedades como as islâmicas, em representar figuras de humanos ou de animais. Evidentemente, estas sociedades não estão num «estádio menos avançado» de desenvolvimento, por comparação com aquelas onde a representação do humano não é tabu.
Analogamente, a «superioridade» do Homo sapiens sobre o neanderthalensis é apenas um efeito de nos projetarmos a nós próprios no cume, a realização máxima da Evolução. Como biólogo, estou consciente de que houve um conjunto muito diferente de circunstâncias, nomeadamente para as duas espécies: Um clima peri-ártico do habitat dos neandertais e um clima tropical ou de savana africana, nos sapiens que migraram para a Europa.
O que se pode esperar em populações longamente separadas, submetidas a diferentes pressões ambientais, senão que divirjam como consequência da sua adaptação e tenham portanto traços anatómicos próprios e também comportamentos, incluindo tradições culturais? Homo neanderthalensis e H. sapiens viveram em quase total separação entre -300 mil anos (a data aproximada de aparecimento do homem moderno, em África) e cerca de -45 mil anos (aproximadamente, o encontro das duas populações no Levante). São 255 mil anos de separação, no mínimo, ou seja, cem vezes o intervalo temporal desde a antiguidade*, aos nossos dias.
Espero que as pessoas se interessem pela Paleoantropologia, ela dá uma perspetiva de como viemos de longe e de como sabemos pouco, demasiado pouco, sobre nós próprios!!
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* Contando a partir da idade de ouro da civilização grega antiga, cerca 2550 anos antes da atualidade.