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sexta-feira, 10 de maio de 2024

DISSIDÊNCIA

 Quero fazer uma distinção entre várias posturas, pelo menos em termos práticos: O que é a dissidência? O que é o indiferentismo? O que é o militantismo/ativismo? 

Refletindo em numerosas ocasiões sobre estes temas, chego à conclusão de que não se pode fazer uma abordagem quantitativa, mas apenas qualitativa. Ou seja, não serve de nada tentar medir o «grau de dissidência», etc. 

A razão disto, é fácil de compreender se virmos que a atitude interior é que é o fator decisivo em relação à dissidência verdadeira: Trata-se de ter uma visão da realidade que nos cerca, uma «leitura» totalmente diferente da que nos pretende impor o poder dominante. Sabemos que o faz de maneira disfarçada: Mais do que por meios de coerção, sobretudo por meios de sedução.

Ora, estar em dissidência não significa - de modo nenhum - estar «alheado» da realidade. Quem está efetivamente alheado permanece passivo, aceitando a imagem do mundo que a educação, os media, o entorno social, querem que a pessoa adote: o indiferente não constrói outra visão da realidade. Ele deixa-se arrastar pela corrente, sem convicção mas, também, sem vontade própria.

O ativismo ou militantismo, são modos diferentes de comportamento exterior em relação ao «normal». Não se trata de «anormal», em termos psicossociológicos: Mas trata-se de exibir um dado comportamento, com frequência ou mesmo constante. O de alguém que é empurrado, por forças externas e internas, a exibir um certo comportamento. Trata-se de se mostrar, de colocar-se num palco imaginário, fantasiando que sua intervenção vai mudar o mundo, a sociedade, etc.

Se o indiferente não tem desejo, nem faz nada para elevar seu grau de consciência, o ativista (ou militante) faz ocultação - deliberada ou inconsciente - do seu vazio, da ausência de reflexão interior, o que o exclui, desde logo, da categoria da dissidência. Obedecer a algum chefe, mostrar fidelidade a um grupo, a uma ideologia, afirmar esta submissão de mentalmente escravizado, são as reais motivações de certos ativismos. 

Por contraste, o dissidente pode renunciar, num determinado contexto preciso, a fazer algo sem - por isso - se ter transformado em indiferente: pode muito bem estar a aguardar o melhor momento, a juntar forças para que a ação seja realmente eficaz, etc. 

O dissidente pode participar em ações de rua, em comícios, em greves, ou seja lá no que for: Não é o que ele faz, mas a motivação interior com que o faz que o distingue. Se o fizer, é porque está profundamente convicto de que isso corresponde ao que interiormente assume. 

Não lhe interessa a ação pela ação, mas sim que, ao agir, o faça por motivos que assume como legítimos, necessários, eticamente imperativos. Além disso, agir não significa fazer uma coisa qualquer, de qualquer maneira: numa guerra global, como é também a guerra de classes, não esqueçamos que existe uma assimetria muito grande entre as forças materiais em presença. O que não significa que os mais fracos, os oprimidos, desbaratem suas escassas forças, antes pelo contrário! Então, o dissidente sabe reconhecer e distinguir, com toda a clareza, a ação fútil, da ação útil e mesmo, esta ação útil, da ação absolutamente necessária.

Sem querer simplificar demasiado as coisas, vemos que existem três categorias diferentes de atitudes interiores com a sua correspondência em comportamentos exteriores. Mas, não devemos esquecer-nos que qualquer pessoa pode ter passado de um tipo para outro (e vice-versa). A natureza não é estática e muito menos a natureza complexa e contraditória dos humanos. 

O que nos faz únicos, o que nos faz imprevisíveis ou indeterminados, é a capacidade potencial de fazer, no sentido mais profundo do termo. Fazer algo com peso, com sentido, com estratégia: essa deveria ser a preocupação das pessoas realmente desejosas de transformação social. 


sexta-feira, 1 de março de 2024

Vem aí o CIRCO ELEITORAL


A realidade do Mundo não se conforma com narrativas. Mas, as narrativas envolvem, na sua teia, as mentes embotadas que já não conseguem ler o real, que não distinguem os discursos, das realidades. Estão nesta condição muitas das gentes partidárias de esquerda ou de direita, sejam crentes em religiões ou ateias, pelo que a comunicação social de massas tem a sua tarefa facilitada: grande parte das suas almas cativas já não percebe nada. Elas são piores que criancinhas, pois estas últimas (teoricamente), podem ser ensinadas a ver a realidade.


O público adulto das ditas «democracias», tornou-se de tal maneira cobarde, que prefere não ver a realidade. Assim, não terá que agir, de uma ou outra forma, perante essa realidade. Creio que este é o maior bloqueio das sociedades contemporâneas. Seus cidadãos foram enredados em teias de falsidades, numa série de novelos cujos fios têm de ser pacientemente separados, um a um. Isto equivale a dizer que a quase totalidade dos súbditos modernos não será capaz de se desembaraçar sozinho das cadeias que os prendem.
Mas, esses súbditos não sabem. Pois as cadeias não são físicas, mas são mentais; é mais fácil para eles pretender que não existem. Assim, não terão o trabalho e a angústia de enfrentar a «gigantesca tarefa». Ou antes, a tarefa, que é afinal muito simples, em si mesma. Mas, isto tem de ser ocultado, senão os súbditos poderiam começar a libertar-se em massa da «matrix» em que estão enredados.
Entra aqui o medo: o medo paralisa o juízo crítico. Impede as pessoas de se interrogarem sobre as suas experiências. Torna as pessoas abúlicas, distraídas e passivas. Verifica-se como têm sido vãos os esforços para despertar estes pacientes do estado de hipnose cognitiva em que se encontram. Estes esforços são derrotados pelas estratégias de evitação e denegação, desenvolvidas pelos próprios. A chamada «cultura de cancelamento», afinal, reduz-se a isso. Uma autoritária negação de se exprimirem pontos de vista diferentes da norma, sob pretexto de que são «agressões», de que aumentam «o estresse» ou que vão contra o «politicamente correto». Note-se que este tipo de comportamento não tem nada que ver com direitos humanos básicos, nem liberdades fundamentais: porém, as pessoas estão tão alienadas, que esperam que os poderes as livrem do confronto penoso com outra narrativa, diferente e contraditória com aquela em que banham. Cúmulo da contradição, essas tais pessoas, que apelam ao controlo autoritário sobre os diversos canais de comunicação, clamam que estão a defender a democracia e a liberdade, os direitos civis, quando estão a realizar exatamente o contrário. Não creio que se possa esperar grande coisa de pessoas assim. Vão continuar no registo estritamente egoísta, míope, cheias de medo de serem vistas como saindo fora do rebanho. Nestes casos, apenas um choque emocional muito forte poderá fazer despertar tais indivíduos, fazê-los ver que estavam na ilusão. Mas, mesmo isso não é garantido pois, consoante a sua personalidade, o choque emocional poderá desencadear ainda maior inibição. Poderão, por exemplo, se auto- culpabilizar dos males que lhes acontecem, em vez de se libertarem das vendas que lhes tapam os olhos.
O plantar duma convicção, que pode ser absurda ou sem qualquer substância racional, é possível e corriqueiro na sociedade: Fizeram-se experiências de psicologia social, em que pessoas são persuadidas da veracidade duma teoria errada. Depois delas estarem convencidas, é-lhes demonstrado racionalmente que essa teoria estava errada. O descolar da convicção anterior de que a dita teoria era verdadeira, é muito mais lento neste grupo de pessoas, do que no grupo de controlo, ao qual não se lhes foi apresentada previamente como verdadeira, tal teoria. A estes, é-lhes exposta a teoria, mas conjuntamente com a explicação porque a mesma é falsa. Este grupo de controlo aceita muito naturalmente a falsidade da referida teoria. Porém, no grupo que ficou previamente persuadido da verdade da teoria, há indivíduos com dificuldade em estruturar o seu pensamento de outro modo, para aceitar que afinal a teoria era falsa. Isto não acontece porque as pessoas sejam «estúpidas» ou «teimosas». Esta situação ocorre com todos os tipos de pessoas, incluindo mentes brilhantes, cultas, com contacto com as ciências.
Portanto, é um mecanismo psicológico profundo, aproveitado pelos que querem moldar as nossas opiniões através dos «mass media» ao serviço dos poderosos. Eles sabem utilizar esta e outras propriedades curiosas da mente humana.
É possível que tal controlo exercido sobre o nosso espírito seja combatido e de forma eficaz. Mas isso implica haver consciência, além da noção clara e não ingénua, dos mecanismos que são aplicados. Há pessoas que conseguem evadir-se deste condicionamento mental abusivo, mas são poucas. A imensa maioria pulsa de acordo com as paixões primárias: A salvaguarda do ser físico, a satisfação das necessidades primárias em alimento, abrigo e segurança, essencialmente; ou ainda, necessidades afetivas e sociais como o amor, a estima, a proteção, o reconhecimento social. O ódio contra o inimigo, seja ele real ou não, entra revestido como salvaguarda do indivíduo. O inimigo é visto como aquele que põe em risco (de forma real ou fictícia) a satisfação das necessidades enunciadas acima.
A um certo nível, o medo é importante para a sobrevivência. Trata-se dum sentimento profundamente ancorado na nossa biologia. O indivíduo que não tem medo está muito mais exposto, do que aquele que - ocasionalmente - pode ter medo, mas que o consegue superar, para enfrentar o risco.
Todos os mecanismos psicológicos, na publicidade comercial, envolvem componentes profundos dos nossos desejos "animais": necessidade de afeto, de status, de prazer sexual, etc. Em geral, os mecanismos de comunicação na esfera política fazem intervir aqueles mesmos componentes atrás referidos, juntamente com o medo, que entra em combinação com os outros.
Na política, convencem-se os adeptos de que é preciso odiar intensamente o inimigo; sobretudo, é preciso convencê-los de que os sentimentos dos dirigentes espelham os dos militantes de base. Os mecanismos de identificação e reforço fazem-se através de objetos de ódio/medo comuns. Isto acontece perante uma imagem da realidade distorcida, falseada: Face a tal configuração psicológica, o que os dirigentes fazem, constantemente, é ativar e reforçar, nos seus seguidores, os sentimentos doentios de ódio, de vingança, de desprezo, de superioridade... A política, assim vista e praticada, não é mais do que uma forma larvar ou efetiva de guerra civil. É uma representação, também. É um teatro que os eleitores são supostos seguir, com os seus golpes, escândalos e revelações-surpresa. Nada de positivo pode sair da política-espetáculo: No melhor dos casos, trata-se de narrativas, juntamente com um rol de boas intenções, para apresentar aos cidadãos.
O discurso político é feito para adormecer o espírito crítico e estimular os desejos mais obscuros do eleitor: A projeção de suas frustrações e seu desejo de vingança simbólica, ou real, sobre o grupo de indivíduos percebidos como opositores, como obstáculos, como sabotadores, etc.
A única maneira de sairmos da «gruta», é percebermos que vivemos no seu interior; que as imagens com que nos entretêm, são projeções fantasmagóricas dos nossos medos; que este espetáculo nos é oferecido, para não despertarmos da letargia ou hipnose, mantendo-se assim o grupo restrito ao comando "da barca". É isso, no essencial, a política.
Não pode haver uma política de adultos feita para adultos, enquanto o povo se deixar tratar e levar, como se fosse uma criança. O povo tem o potencial para despertar e começar a auto- governar-se sem a casta de parasitas que nos quer domar através das suas demagogias, da política-espetáculo, das manipulações do aparelho de Estado, para obter o poder. É o poder, acima de tudo, que interessa aos sociopatas que nos governam. É este o fim último dos seus esforços: conquista e conservação no poder.
As eleições, que passam por ser o aspeto central da democracia, não são mais do que a ocasião dos bandos políticos desenrolarem seu estendal de demagogia para cativar os eleitores: Tudo é utilizado como pretexto para o show, menos as questões de real importância para os destinos do país! Ou, ainda, a valorização de pseudo- soluções para os problemas, como se tudo se resumisse a tais «soluções», sendo eles - os do bando X - os únicos capazes de as viabilizar.
Em qualquer dos casos, o circo eleitoral infantiliza o eleitor, promove a sua regressão ao estado de criança, a quem as várias propostas são apresentadas e ele só tem de «escolher». Mas, neste processo, o eleitor «é quem menos ordena»: é o pobre diabo enganado, desta triste comédia. Seus desejos e as promessas de os satisfazer são logo esquecidos, assim que se fecham as urnas. A partir deste momento, os políticos profissionais irão dar «uma lição de realismo» ao povo. É aqui que se vai revelando, aos poucos, o verdadeiro programa, aquele que os vencedores irão desenvolver no governo. Durante a campanha eleitoral foi mantido cuidadosamente fora do olhar do vulgo, pois possuía demasiados amargos de boca para o povo e muitas benesses para os privilegiados.


Manuel Banet

 Parede, Portugal, a 01de Março de 2024

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Sobre eleições  e temáticas relacionadas:





sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

PSICOLOGIA DO DINHEIRO

Tenho refletido sobre as relações entre as coisas reais e as simbólicas, nomeadamente, o dinheiro. Nas sociedades humanas, a partir de certa altura, o dinheiro começou a ter uma importância maior do que eu chamo as relações reais. Não consigo situar rigorosamente na História, talvez seja muito diferente a cronologia de civilização para civilização, mas o facto é que hoje em dia existe uma «crença religiosa», uma extensa adoração fetichista do dinheiro, é transversal a culturas, a civilizações e a outras crenças.

Se nós estamos tão dependentes de pensar tudo em termos de um mero meio de troca, isso deve-se ao facto de sermos quase todos reféns (salvo os caçadores-recolectores que sobrevivem em locais remotos). Reféns de uma civilização mundializada, que coloca em primeiro lugar e como suprema «virtude», possuir e adquirir dinheiro.

Não sou especialista de ficção-científica, ao ponto de saber se algum autor terá construído uma história de uma civilização baseada numa organização sem dinheiro, sem que a unidade de troca seja o objeto supremo de adoração e a razão de ser de praticamente tudo. Admito que sim. Pessoalmente, a minha observação atenta da vida animal (e da biologia, em geral), levou-me a privilegiar o balanço energético, ou seja, o rendimento entre a energia despendida sobre a energia adquirida, como um critério de primeiro plano, para a tomada de decisão.

As células, os organismos, as sociedades e os ecossistemas estão todos sujeitos às Leis da Termodinâmica. Os seus constrangimentos são tais, que ninguém escapa: Alguém, ao ignorar ou ao deixar de agir em função desse simples cálculo implícito, realizado pelos seres vivos, esse alguém está a condenar-se a uma perda de eficiência, no mínimo e isso pode ir até à perda da própria vida.

Somente a espécie humana parece mostrar, em certos  casos, completa ignorância desta realidade física fundamental. A maior parte das desgraças, a um nível coletivo ou individual, estão relacionadas diretamente com essa ignorância.

O enorme esquema fraudulento que dá pelo nome impreciso de «Alterações Climáticas», não é mais do que a utilização do domínio da energia em benefício de uma elite. Ela nem o disfarça de forma muito eficaz, quando se desloca em jets privados às conferências «climáticas».

Não pensem que a «elite» do dinheiro seja muito astuta, muito esperta, muito inteligente. Ela apenas tem ao seu serviço alguns especialistas em manipulação, tais como psicólogos, sociólogos, antropólogos, especialistas em publicidade, que lhes fabricam narrativas adequadas para manter os povos debaixo de um domínio mental, condicionados pelo medo, pelas narrativas catastrofistas, pela ocultação de certos factos e pela distorção de outros, resultando daí uma imagem completamente falsa do real.

A bolha imaginária envolve os indivíduos; tudo tem de passar-se dentro desta bolha, em termos sociais, como se isso fosse a realidade. Uma Matrix, na sociedade do século XXI, manipulável por aqueles que detêm o controle das narrativas e dos meios de persuasão. Não pensem que estes são limitados, eles vão desde a guerra e seus horríveis efeitos, às mais diversas manifestações de futilidade, que enchem as televisões e as redes sociais.

O investir esse símbolo - o dinheiro - de virtudes mágicas, permite ocultar a manipulação pelas elites. Elas controlam praticamente tudo o que é importante, na vida das sociedades: processos produtivos, meios de coerção dos Estados, mecanismos de remuneração e de distribuição. Ao fazê-lo, tornam opacos os muitos mecanismos pelos quais são desviados esses tais meios: Essencialmente, os produtos da sociedade no seu conjunto, transformados em meios pessoais de poder.

Essa elite constitui a casta depredadora, por excelência: não tem como critério senão a conservação do poder, ou a sua aumentação. Pode haver depredação ecológica, pode haver esgotamento de recursos naturais, extinção de espécies e de ecossistemas etc. Mas, a responsabilidade é sempre atirada para a «civilização», para a «sociedade», a «natureza humana». No entanto, é simplesmente resultado do processo de apropriação dos bens coletivos, da privatização de tudo o que é de todos, da Natureza à cultura, em proveito de uma pequeníssima minoria.


O dinheiro tornou-se «totem e tabu» desta civilização, erigido em justificação máxima, em explicação e em razão última para tudo. Mas, isto - obviamente - é deliberado; não é espontâneo; é conseguido pelo condicionamento constante de todos nós.
Se quisermos continuar a ser escravizados, podemos manter a nossa dependência patológica a essa visão mecanicista, ridícula, como muito bem caracterizou B. Brecht num poema,* inserido numa das suas peças de teatro:
«não sei o que é um homem, só sei o seu preço»

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(*)CANÇÃO DO MERCADOR

(letra de B. Brecht; trad. 1974)


Há arroz lá no fundo ao pé do rio

Nas províncias altas as gentes precisam de arroz

Se guardamos o arroz em armazém

O arroz irá tornar-se mais caro para eles

E os revendedores terão ainda menos arroz

Então poderei comprar o arroz ainda mais barato

O que é afinal o arroz?

Sei lá, sei lá o que é!

Sei lá quem o sabe!

Não sei o que é um grão de arroz

Só sei o seu preço


O Inverno chega, as pessoas precisam de agasalhos

É preciso comprar algodão

E não o distribuir

Quando chega o frio os agasalhos aumentam de preço

As fiações de algodão

Pagam salários mais altos

Aliás há algodão em excesso

Em boa verdade o que é o algodão?

Algodão, sei lá o que é!

Sei lá quem o sabe!

Não sei o que é o algodão

Só sei o seu preço


Ora o homem precisa de comer

E o homem torna-se mais caro

Para obter alimento são precisos homens

Os cozinheiros tornam a comida mais barata

Mas aqueles que a comem tornam-na mais cara

Aliás há muito poucos homens

O que é então um homem?

O homem, sei lá o que possa ser!

Sei lá quem o sabe!

Não sei o que é um homem

Só sei o seu preço




terça-feira, 16 de janeiro de 2024

HUMANIDADE E O PARADOXO DA SUA EVOLUÇÃO

Acredito que a espécie humana se deixou enredar numa espiral de ganância de poder e de sensação de omnipotência pela tecnologia. Os humanos, na origem, eram somente uma entre numerosas espécies animais. Havia contemporâneas de Homo sapiens outras espécies de homens, até há menos de 50 mil anos atrás. A evolução tecnológica foi tão rápida na escala de tempo da Evolução geral, que perturbou gravemente o desenvolvimento harmonioso da espécie Homo sapiens. Pode-se compreender, olhando à nossa volta, como todo o aparato dos confortos da civilização, enterram, anulam, substituem, as nossas capacidades naturais, isto é, as que nos foram legadas por milhões de anos de evolução biológica. O efeito desta desconexão é todo o drama da civilização humana atual, da civilização tecnológica, em particular. Tal como com a evolução biológica, esta evolução tecnológica é essencialmente não reversível.

Mas, há uma grande diferença na escala de tempo; a inovação biológica tem de se instalar a partir de uma ou várias mutações, compatíveis -obrigatoriamente - com as funções vitais dos indivíduos que são seus portadores, mas também que se possam integrar no ambiente e através da descendência. Portanto, a evolução biológica, tipicamente, demora muitas centenas de anos, ou várias gerações humanas, para se firmar e consolidar. A evolução tecnológica é incomparavelmente mais rápida, com consequências importantes, não apenas nas vidas humanas individuais e ao nível das sociedades, mas mesmo na natureza, em geral. Nos últimos cem anos, têm ocorrido revoluções tecnológicas consideráveis (em vários campos da atividade humana) mais ou menos todos os 20 anos. A evolução das mentalidades, das instituições sociais, já para não falar da adaptação da biologia humana, não podem acompanhar esta progressão. Ela, ainda por cima, não é uniforme, nem previsível, mas é caótica no sentido matemático do termo (não se lhe pode atribuir uma lei). As pessoas estão completamente expostas aos efeitos «secundários», aos «danos colaterais», da tecnologia contemporânea. A arqueologia estuda a evolução das técnicas como, por exemplo, o talhe da pedra; há evolução, mas apenas em longos intervalos de tempo. Aliás, é por isso que tem sido possível efetuar a datação dum sítio arqueológico, somente pela análise da tecnologia de talhe utilizada. Vemos, no entanto, ao longo das poucas dezenas de milhares de anos seguintes, que houve um acelerar exponencial da inovação tecnológica: no paleolítico, a mesma técnica era aplicada durante intervalos de tempo da ordem de milhares de anos, sem modificação notável ou detetável. Hoje em dia, a modificação durante as nossas vidas, é tal que a geração anterior, a dos nossos pais, parece ter vivido num tempo longínquo: perfeitamente imaginável, profusamente documentado, mas muito diferente do quotidiano presente.

Este desequilíbrio, ou seja, a impossibilidade das sociedades integrarem e assimilarem no seu interior as inovações tecnológicas, faz com que elas apenas reajam, o que é confundido com «adaptação», mas que - de facto - não é. E as pessoas, individualmente, acabam também por ficar disfuncionais, como não podia deixar de ser. Este disfuncionamento é em relação a características que são absolutamente essenciais para a sobrevivência do humano, enquanto tal: a sociabilidade, a empatia, o altruísmo, a responsabilização coletiva, a dádiva, a partilha, a preferência do «ser» sobre o «ter». Existe muito empobrecimento mental e afetivo na sociedade tecnologizada. As pessoas não estão nada adaptadas, daí a enorme explosão de violência irracional, não motivada, em sociedades de abundância material. É nessas sociedades que ocorrem frequentes surtos de violência, com pessoas tornadas loucas, capazes de matar quaisquer outros; noutros casos (bem mais frequentes), a situação de desespero, de vazio, de depressão precipita as pessoas a pôr fim às suas vidas, a suicidarem-se. Estes fenómenos extremos de disfunção social, são noticiados, mas eles recobrem um outro domínio do não-reportado, de profunda disfunção, na vida pessoal e social. O consumo das «drogas», sejam elas prescritas sob forma de medicamento, ou procuradas no mercado negro das drogas ilícitas, tem como causa a insatisfação, a frustração das pessoas, relegadas ao dilema absurdo de consumidores resignados, ou à revolta sem objeto, que não será transformada em revolução, enquanto transformação coletiva e social.

Como estou inserido neste mundo e não tenho a veleidade de me extrair dele para ter uma visão de conjunto, que pudesse fornecer um diagnóstico da patologia social e a consequente cura dos males sociais, resta-me apenas dirigir algumas palavras, que penso de bom-senso, nesta altura de acumulação de tensões, de violências, de protagonismos :

Este contexto, obriga a nos preocuparmos com aspetos básicos, não apenas a nossa sobrevivência material individual, como social.

- Estamos no tempo em que deve haver reforço das interações positivas dentro da família e na sociedade que rodeia os indivíduos (os grupos de amigos, de colegas do trabalho...).

- Não devemos ser ingénuos, não devemos deixar-nos manipular através dos nossos sentimentos instintivos, principalmente o medo e a insegurança a ele associada.

- Construir e preservar o que já está construído, no sentido literal e metafórico, deve ser uma nossa preocupação constante.

- Fazer um esforço real e honesto em direção ao Outro; ou seja, sermos capazes de nos pormos na pele do outro. Isto não quer dizer que - automaticamente - aprovemos as suas ações. Não somos diferentes do Outro, na essência: nem superiores, nem inferiores.

- Devemos ser tolerantes, no sentido de não nos colocarmos numa posição ideológica, seja sobre o que for: As questões concretas é que importam; elas passam-se no terreno do real, não nos vapores etéreos das ideologias. Avaliar as situações através do filtro da ideologia, é pior que usarmos um espelho deformante para ver o real; é como caminhar às apalpadelas, num nevoeiro espesso. Eu sei que todos temos, quer queiramos quer não, uma ideologia (implícita ou explícita), mas acho que neste domínio é preciso relativizar: O que nos parece a «verdade última», também no passado, as gerações anteriores tiveram ilusões semelhantes e os resultados foram geralmente deploráveis.




segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

MITOLOGIAS (XII) - PIGMALIÃO E A ESTÁTUA VIVA

 De todos os mitos e contos fantásticos de Ovídio, nas suas célebres «Metamorfoses», esta história é das mais conhecidas.

 Pigmalião apaixona-se pela estátua que ele próprio esculpira  e suplica a Vénus que lhe proporcione uma esposa tão bela como a estátua. Vénus, vendo o ardor sincero de Pigmalião, satisfaz o seu pedido; transforma a estátua em jovem mulher. Pigmalião, primeiro duvida do sortilégio, mas acaba por ceder à evidência: ele experimenta o toque da pele humana flexível e quente, já não se trata do marfim de que era feita a estátua. 

O pintor Girodet (1767 - 1824) é autor dum célebre quadro que representa o momento em que Pigmalião se apercebe de que a sua estátua, afinal, se tinha transformado numa bela jovem. 


Vale a pena nos determos um pouco nesta imagem, não que eu considere ser duma qualidade estética excecional, mas antes porque nos dá uma ideia de como o Século XIX interpretava o mito de Pigmalião. De facto, esta representação pretende ser fiel à narrativa de Ovídio. A figura da jovem Galatea (quer dizer que tem a pele leitosa) apresenta-se numa pose semelhante à da célebre estátua de Vénus de Medici.



A face de Galatea exprime pudor por estar exposta ao olhar do seu criador/admirador. Ela baixa os olhos e sua face está levemente corada, evidenciando o seu pudor. Note-se que o modelo helenístico da Vénus, dita de Medici, com a sua posição dos braços, protegendo os seios e o sexo, como se tivesse sido surpreendida desnudada, também evidencia uma reação de pudor.

No texto de Ovídio - ver texto latino com transcrição em francês - Pigmalião está desgostoso pela «desvergonha» das mulheres, que faziam comércio do sexo, como era costume nesse tempo, em particular na ilha de Chipre, a ilha de Afrodite,  cujos templos principais eram consagrados à Deusa do Amor. A narrativa atribui a esse desgosto a motivação de esculpir uma jovem virgem que tivesse a beleza e a pureza pela qual ele suspirava. 

Podemos compreender que o mito está para a realidade, como um manto de rico tecido está recobrindo uma realidade muito menos luzidia. Com efeito, a existência de escravas sexuais era um facto, sendo esse comércio realizado pelos próprios templos dedicados a Vénus. Não era considerado um negócio ilícito. Na sociedade intensamente patriarcal do mundo Greco-romano, a mulher era considerada inferior pela sua própria natureza. A mulher era um objeto do qual o homem usufruía, de várias maneiras. A sexualidade era muito pouco inibida, no que toca aos homens.  Havia também uma prática comum de sexo com efebos, adolescentes do sexo masculino, alguns com inclinações para tal, mas a grande maioria vendendo o corpo. As prostitutas «sagradas» praticavam sexo a troco de remuneração, a qual revertia - em parte - para os cofres dos templos dedicados à Deusa do Amor. 

O Pigmalião da lenda é um «rei» escultor, algo bastante inverosímil. Mas, o apaixonar-se pela beleza de uma estátua ocorre, por vezes. Trata-se de uma forma especial de fixação obsessiva e de desvio sexual. O pedido de Pigmalião à Deusa do Amor, seria veiculado através da sacerdotisa do templo, a qual terá visto como possível e oportuno «ceder», a troco de dádiva generosa, uma jovem virgem, instruída para satisfazer a obsessão doentia de Pigmalião. No texto de Ovídio há referência ao casamento entre Galatea e Pigmalião e ao nascimento da filha do casal, Paphos, o nome adotado por uma cidade de Chipre.


A peça de Bernard Shaw , escrita nos alvores do século XX, no seguimento doutras obras que tentavam atualizar o mito de Pigmalião, é bastante interessante na medida em que transpõe a história para um ambiente contemporâneo ( princípio do séc. XX) e tenta fazer com que tudo seja mais ou menos verosímil. Não há «estátua de marfim que se transforma em linda donzela», mas uma jovem da classe baixa, que vende flores na rua. Pigmalião é um professor de linguística, que faz a aposta de transformar a jovem mulher, falando exclusivamente o dialeto das classes populares,  o «cockney»,  numa dama com o discurso e as maneiras de uma aristocrata, que ninguém imaginaria tivesse uma origem tão humilde. Se  hoje,  a peça de teatro não é frequentemente representada, o filme de George Cuckor «My Fair Lady», continua  ser conhecido de muitos. 


Este filme retoma o essencial do enredo da peça de Bernard Shaw. Curiosamente, na peça de Shaw a moderna «Galatea» acaba por se rebelar, não aceitando ser instrumentalizada pelo seu tutor.
Talvez isto seja um «piscar de olho» à primeira vaga de emancipação da mulher, a sua afirmação como ser autónomo, que não aceita estar sujeita à vontade caprichosa do marido e sabendo que tem o seu valor próprio e a sua dignidade.

 Não esqueçamos que Bernard Shaw foi membro destacado da Fabian Society, que preconizava a mudança para o socialismo através de reformas e contribuiu para a formação do Partido Trabalhista no Reino Unido.

Poderia parecer que nos afastamos muito do mito de Pigmalião. Mas, afinal Bernard Shaw, este génio contemporâneo, veio colocar a história no seu devido pé: A natureza do homem, ou a sua doutrinação sobre o papel masculino nas relações com o feminino, tem levado aquele a querer impor um certo padrão de comportamento e inclusive em relação ao sexo e ao casamento, como se a mulher, enquanto noiva, esposa, ou amante, não tivesse vontade própria, não fosse mais do que uma estátua de virgem, que é preciso ativar com o toque erótico, que «dê vida» a essa boneca. Assim, seria a «boneca de carne e osso», o ideal duma forma entranhada de machismo, tanto mais difundida, que se situa ao nível do inconsciente ou do subconsciente. 

De facto, a mulher deveria educar-se e educar o homem, para que essa forma de encarar as relações entre os sexos deixe de existir. Os homens assim fazem sofrer as mulheres com o seu desprezo pelo objeto do seu desejo erótico e por vezes mesmo, com violência. Pelo contrário, o homem companheiro, que partilha os prazeres e as dificuldades da vida, é aquilo que as mulheres naturalmente procuram. Elas têm a capacidade de transformar os «Pigmaliões» contemporânos, de lhes dar maturidade, de os despirem de preconceitos incutidos pelo meio. Note-se que se trata de uma tarefa longa, às vezes penosa e ingrata, ao nível individual das mulheres; mas esta tarefa devia ser endossada pela sociedade no seu todo, através da educação emancipadora dos jovens, o que não quer dizer - de modo nenhum - «licenciosidade» ou «relaxamento moral», antes o contrário. 

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SÉRIE MITOLOGIAS:

 MITOLOGIAS (XI): HISTÓRIA NATURAL DO UNICÓRNIO


quinta-feira, 30 de novembro de 2023

O CAMINHO DO FUTURO E A SABEDORIA

 Nós costumamos, a partir desta altura do ano, ouvir e ler «previsões» para o ano seguinte, como será no campo da política, da economia, etc. 

Realmente, estas ditas previsões apenas se baseiam na perceção dos que as emitem, sobre qual é a expectativa dos seus leitores  em relação a esses assuntos. Quanto mais uma «previsão» se conformar com o que passa por senso comum, mais aceitação terá. 

Alguns «analistas» porém, fazem uma ou duas previsões completamente fora do que é previsível, mas assinalando porém, que a sua «probabilidade de se efetivar» é diminuta. 

Este ritual é destinado a tranquilizar as pessoas, que ficam na ilusão de que «compreendem» o Mundo - esse Mundo cada vez mais complexo, contraditório, opaco - e, a partir desse momento, vão projetar a ilusória compreensão dos acontecimentos mundiais, regionais ou locais, na trama simplista desses gurus.  Satisfazem-se ou desce a sua ansiedade, pelo menos, quando podem dizer: «eu já sabia que isto iria acontecer», ou «veem, as coisas passam-se conforme eu previ».

Conscientemente ou não, está-se a perpetuar a longa tradição das profecias. A «Arte divinatória» existiu e existe em todas as civilizações e religiões passadas e presentes. É pois uma invariante profunda do ser humano. Transcende as culturas, as condições socioeconómicas e tecnológicas, existentes nas diversas sociedades. 

A mente humana «precisa» de continuidade. Precisa de imaginar que o dia de amanhã será semelhante ao de hoje. Os pressupostos de que parte um indivíduo, uma família para realizar os seus investimentos ou planos futuros, baseiam-se quase somente nos seus desejos. Mas, têm de «teorizar» tais impulsos (perfeitamente legítimos na imensa maioria dos casos) com as tais «projeções» do futuro. Estas são mais o resultado de uma racionalização, do que a conclusão de um processo frio, racional de análise.

Pessoalmente, não farei projeções para o próximo ano. Espero que as grandes desgraças que afetam a humanidade sejam um bocado aliviadas; espero que haja menos violência; menos depredação dos ambientes naturais; um maior entendimento entre culturas... Eu «espero», não no sentido de prevejo, mas somente que desejo. 



sexta-feira, 24 de novembro de 2023

CONTROLA OS SEUS IMPULSOS?

 O comércio joga com os impulsos das pessoas  para comprarem. O estímulo para comprar está disseminado em toda a sociedade. É que na sociedade da mercadoria, onde tudo se compra e vende, o ato de comprar é assimilado a duas coisas, no inconsciente:

A - Um prazer sensual, análogo à fase oral/anal da psicologia freudiana. 

Com efeito, a adição de compra compulsiva  é uma patologia muito séria e mais banal  que outras adições que não envolvam ingestão de «drogas». Mas, o sistema de escravização do consumidor consegue desenvolver técnicas para o aumento de sua adição. 

Por exemplo, as luzes e decorações de Natal nas ruas, nos centros comerciais e nas montras: São, afinal, a criação de um ambiente «feérico» que faz as pessoas quererem voltar à infância e deixarem-se arrastar por impulsos de consumo. Este impulso pode ser motivado por desejo de satisfazer entes queridos (o Natal como festa da Família), mas também aqui se trata de uma relação falseada, porque mediada pela mercadoria. Em geral, quer em ocasiões «normais» ou «especiais», o impulso obsessivo de comprar, desencadeia compras inúteis, que desequilibram o orçamento pessoal.

B- Um símbolo de status; por isso é que bugigangas produzidas em série, são publicitadas como algo «exclusivo». De facto, a adição às compras é cuidadosamente cultivada pelos órgãos de  comunicação social de massas, cujos rendimentos são resultantes da publicidade, sobretudo. 

O contexto da sociedade mercantil hipervaloriza a aquisição e acumulação de objetos: As pessoas têm uma relação doentia com a posse de certos objetos, em especial se forem caros, de luxo, de «prestígio». 

Os objetos a que me refiro, não são adquiridos por necessidade ou conveniência, são como um «investimento» afetivo e promocional. 

- Auto-Afetivo, porque as pessoas (simbolicamente) estão a remunerar ou a recompensar, a si próprias.

- Auto-Promocional: Ao exibirem algo ostensivamente caro. Esses itens - mesmo que sejam de pouca ou nenhuma utilidade - estão a exibir a  elevada capacidade aquisitiva de seu possuidor.



Numa sociedade onde a aparência é tudo, onde  ser economicamente bem sucedido, é ser uma «celebridade» e passar a fazer parte da «elite», mesmo que seja de maneira efémera, as pessoas não conseguem amadurecer o seu ego. Permanecem bloqueadas nos afetos infantis, tanto no que respeita à «gula» de compras, como à gula de comida. 

Repare-se nas seguintes situações:

- A epidemia de obesidade (sobretudo, nas camadas menos abonadas), 

- A atitude hedónica, não apenas de adolescentes como de adultos (= adolescentes mentais),

- O crescente número de pessoas que ficam endividadas em excesso, usando cartões de crédito, 

Todos estes (e muitos mais), são exemplos bem visíveis de patologias sociais. Todos são característicos da chamada sociedade de consumo. Por contraste, as características acima não se observam nos períodos históricos anteriores à revolução industrial, ou nas sociedades que - ainda hoje - subsistem fora do modelo dominante.

A alternativa não reside na pobreza voluntária, ou noutro tipo de autoflagelação, para combater os males sociais. É fundamental educar-nos e educarmos as jovens gerações, para não cairmos no ciclo infernal do «consumo pulsional». 

Além disso, temos de compreender que as soluções boas para o ambiente, para a sustentabilidade da biosfera e para uma sociedade harmoniosa são incompatíveis com o capitalismo

É um facto, que o capitalismo precisa do sobre- consumo desenfreado. Por muito que mostrem preocupações «ecológicas» e «socialmente responsáveis», os comerciantes e os industriais só são verdadeiramente movidos por uma coisa, o lucro.

Não é de admirar, pois o modelo de economia e sociedade capitalista, é exatamente aquele que endeusa o indivíduo que enriquece, seja lá por que meios for. Desde que seja rico/a, é uma pessoa interessante, inteligente, etc. Portanto, as pessoas - mesmo que não sejam comerciantes ou industriais - são fortemente encorajadas a procurar enriquecer-se, sem olharem demasiado aos meios. 

A ostentação, o consumo de luxo, o consumo hedónico, são o símbolo e o triunfo desejado pela maior parte das pessoas, dentro do  modelo económico e social capitalista.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

MENSAGEM PARA TI


Estamos perante um Mundo quebrado, fragmentado. Numa sociedade ​fragmentada, onde ninguém se interessa por ninguém. É muito ESTRANHO o que se está a passar, tendo em conta que nós, humanos, somos animais sociais.
Creio que este estado de «autismo social» não foi alcançado de uma vez, mas progressivamente, de tal maneira que isso nos parece «natural». Com efeito, há mil e uma desculpas para não interagir pessoalmente com outras pessoas. 
A razão de fundo, é que nós nos transformámos, a pouco e pouco, em monstros: monstros de egoísmo, que só nos interessamos por alguém que reforça, de um modo ou do outro, a nossa «performance», nem que seja, apenas, simbolicamente. 
Um mundo assim, é «perfeito terreno de caça» para os psicopatas e sociopatas, pessoas que não têm nenhum afeto, que são realmente destituídos de empatia humana. Estas pessoas apenas simulam; interessam-se, apenas como cálculo. Seja como for, elas costumam desaparecer, assim que veem que a preza não interessa, ou que ela está demasiado consciente do jogo que o predador tem jogado.
Eu penso que as pessoas estão fechadas dentro do seu egoísmo; pensam que, se outros são egoístas ou indiferentes para com elas, elas «têm de pagar da mesma moeda». Só que esta abordagem é demasiado mesquinha e vai necessariamente conduzir a uma (abusiva) generalização.
A nossa natureza de humanos não está nas performances que fazemos; nas carreiras que temos; nos currículos que exibimos; nos bens materiais que acumulamos... Enfim, a grande doença da nossa época é a falta de amor; mas de um amor-dádiva, não de um amor posse, dum amor baseado no «toma lá, dá cá». 
Não há dúvida que precisamos de reciprocidade nas relações com os outros, mas pela positiva; se alguém «falha» em relação a nós (ou julgamos, pois pode até nem ser verdade), devemos perdoar e relativizar, devemos contextualizar, o que implica quase sempre que não devemos (consciente ou inconscientemente) nos autoabsolver do que correu mal na nossa relação. 
Pelo contrário, se estamos envolvidos num relacionamento humano a um nível mais profundo (amizade ou amor), então devemos ter a preocupação de cuidar desse elo que nos liga com a outra pessoa. Temos de estar vigilantes para perceber o que aborrece o outro e o que lhe dá prazer. Temos de saber mostrar que estamos atentos e nos interessarmos genuinamente por essa pessoa. É difícil, porque as pessoas estão muito metidas numa teia de relações interesseiras e não compreendem que o nosso ímpeto não seja determinado por «interesses», mas por afetos positivos.
A maior parte das pessoas não é genuína. Mesmo que elas estejam convencidas de que seu amor/amizade por nós é genuíno, podem estar a enganar-se a si próprias. 
O isolamento que as relações por via «digital» (como esta) provocam, é muito maior porque as pessoas «não têm tempo», só leem e dão atenção a algo muito concreto, que lhes traz (ou julgam que lhes traz) vantagem material.
O relacionamento direto, em situação não-hierárquica, deveria fazer parte de terapia social de grupo, para reequipar as pessoas nas suas referências de vida em sociedade. 
É como se quase todas as pessoas estivessem de tal maneira «destreinadas» do funcionamento em sociedade, que se isolam, ou têm comportamentos ambíguos, inadequados,​ agressivos.

Mas, na verdade, eu não creio muito na implementação imediata de tal abordagem, sem que haja uma transformação social profunda. 
Infelizmente, a possível transformação que antevejo para o futuro imediato - com o agravamento duma crise económica, cultural e civilizacional, para a qual francamente não estamos preparados - é uma transformação regressiva do ponto de vista social e dos valores humanistas.

Estou plenamente ciente de que ​esta reflexão não agradará a muitos, pois eu não caio nos estereótipos usuais. Também não aponto a «solução», o que os vendedores de banha da cobra disfarçados de terapeutas, costumam fazer. 
Mas, proponho que as pessoas aumentem o seu grau de consciência, aprofundem o conhecimento das causas do seu mal-estar, para chegarem a um diagnóstico e que façam algo para mudança das suas condições. 
Podem ser condições externas e materiais, mas podem também ser psicológicas e espirituais. 
Em todo o caso, as pessoas têm de «tomar-se a si próprias pela mão e  serem seu próprio auxílio». 
Se encontram, no caminho, alguém de confiança para as ajudar, ótimo. Mas, não devem nunca esquecer que o trabalho essencial é o da própria pessoa... mesmo, quando beneficiam  duma ajuda terapêutica.



domingo, 12 de fevereiro de 2023

ANONIMATO

 É uma bênção estar-se completamente anónimo numa grande cidade. Tudo o que faças estará apenas contigo, ninguém para controlar o que fazes ou deixas de fazer, ninguém para julgar o teu comportamento.

Os romanos reconheciam esta situação e designavam-na como aurea mediocritas. Aqui, o termo «mediocritas» deve ser entendido como antónimo de celebridade. 

A necessidade de certas pessoas se fazerem «apreciar», de fazerem o seu show, tem muito de fútil. Raramente terá a ver com a necessidade genuína de exprimir os seus dotes de ator/atriz ou doutra profissão do espetáculo, que reclame uma óbvia visibilidade. 

Geralmente, retomando e invertendo o sentido do provérbio romano, os exibicionistas são medíocres que se fazem pagar a peso de ouro, nalguns casos, mas quase sempre, trata-se de ouro falso, de lantejoulas e pechisbeque.

A necessidade de certas pessoas se tornarem célebres transforma-se em obsessão patológica, pois deixam-se arrastar a fazer disparates, ou mesmo crimes, só para dar nas vistas. 

Eu prefiro viver discretamente; não será no anonimato, stricto sensu. É claro que tenho familiares, amigos, conhecidos, vizinhos: são pessoas que me conhecem, da forma mais profunda ou da mais superficial. Nisto, sou igual a tantos outros. 

Não abdico, porém, da minha personalidade o que, aliás, se me afigura quase impossível de acontecer. Mas, não estou sujeito à presença de olhares inquisidores, de ser chamado na rua por um desconhecido, de forma amistosa ou insultuosa. Isso é como perder-se o pouco que nos resta de  liberdade.

O meu anonimato, é não ter que me preocupar a cada instante onde me levam meus passos, se aquilo que digo não será ofensivo para alguns, se não será  transmitido ao universo dos meus inimigos.

Numa grande cidade, sozinho ou na companhia da pessoa que se ama, pode ser agradável vaguear, visitar monumentos, ir a um espetáculo, comer num restaurante. 

Mas, esse prazer é proibido às stars do cinema, da política, do desporto. Talvez os maravilhe, no início, serem apontados a dedo e cumprimentados na rua por anónimos admiradores. Creio que esta sensação desaparece quando a mera presença da «star» no espaço público, desencadeia reações inoportunas de certas pessoas, que podem ir até ao assédio. 

A celebridade depois de se morrer, não me incomoda, mas não creio sequer que seja sempre um bem: Se a memória de alguém importa, então as biografias lendárias, com invenções disparatadas, que certos literatos farão para fazer subir o peso post mortem do escritor ou artista biografado, não é bonito de se ver. Quem está morto, não se pode defender de insinuações torpes, ou de histórias completamente falsas e nada correspondentes ao seu modo de ser, quando em vida.

As  pessoas que, depois de célebres, fazem «como sempre fizeram», se comportam como sempre se comportaram antes ... essas, não as conheço, serão raríssimas. Se existem, aposto que sua indiferença perante as luzes da ribalta seja apenas um truque, uma pose, que tenham de compor a personagem como no teatro ou num filme. Estão a representar o papel de quem não se sente incomodado com os olhares e dizeres dos outros.

Os típicos ocidentais, embora possa encontrar-se padrões semelhantes ou análogos noutras paragens, estão tomados pelas figuras do herói, do santo, do génio, do indivíduo com carisma. Mas, isto faz parte do teatro das coisas. O que eles estão a tentar exprimir, é que tais personagens são - supostamente - mesmo assim. Portanto, eles devem ser adorados, obedecidos, venerados. 

Como eu não pretendo nada disso, como estou bem comigo próprio, não dominando, nem influenciando ninguém, não me sinto compelido a chamar a atenção sobre mim. 

Isto não quer dizer que não exerça as minhas qualidades, que não ponha em prática os meus talentos. Eu faço o que me apetece, sem aquela ideia doentia, de me perguntar sempre se agradarei aos outros. 

Se este escrito foi realmente interessante para ti, ainda bem. Se achas que não vale a atenção prestada ao lê-lo, deita-o para o caixote de lixo, é assim que eu faço com certos escritos dos outros!




terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

GOYA E O SONHO DA RAZÃO, REVISITADOS

 


As pessoas são alimentadas, ao longo da vida, por narrativas lineares. A ideia de que as sociedades e a tecnologia vão ser «mais isto ou aquilo». É muito divertido observar as publicações de magazines populares, que estimavam há cem anos atrás (ou menos), «como seria o futuro»: É um lugar-comum verem-se automóveis que também voavam, ou pessoas a viverem em apartamentos cheios de gadgets, embora as coisas que eram imaginadas, há várias dezenas de anos, como fazendo parte dos confortos da «modernidade», ou nunca se concretizaram ou, se vieram a existir, são de uma forma substancialmente diferente.

Sociologicamente, também, as projeções do futuro são lineares; há o alargamento - a quase generalização - do modo de vida do tipo «classe média», uma população de engenheiros, doutores, cientistas, profissões de elevado prestígio. É costume as pessoas projetarem os seus desejos no futuro. Mas é singular haver tão fraca imaginação, uma incapacidade, incluindo nos «futurologistas», em decifrar no presente aquilo que serão as linhas de força da próxima década, já para não falar do próximo século. 

As pessoas estão muito cientes de «verdades» que lhes foram transmitidas por inúmeros canais, a maior parte, sem relação nenhuma com a realidade das coisas. Mas, mesmo quando fazem um esforço genuíno para projetar as tendências observáveis no presente em direção ao futuro, incluindo o mais próximo, a regra é errarem redondamente. 

Assim, deveríamos estar completamente abertos a todos os campos de hipóteses, aquelas que conseguimos vislumbrar e mais ainda aquelas de que não fazemos a mínima ideia, no presente. 

Por vezes, tais  são as transformações, que as pessoas ficam completamente desnorteadas. A nossa mente é feita para apanhar a tendência dominante, projeta-la no futuro e construir a realidade a partir destas projeções. 

Mas, os fenómenos complexos ultrapassam - em muito - as capacidades de os equacionar, mesmo que sejamos «génios». Os fenómenos não se submetem a uma lógica linear. Linearidade ou «lei estatística» é o que a nossa mente gostaria que fosse. O nosso inconsciente está sempre a procurar a conformidade, porque é algo que nos tranquiliza, nos dá uma sensação (ilusória) de continuidade. Não somos feitos para incorporar o  insólito, o estranho, o irracional no nosso mundo. Assim, estamos com frequência de pé atrás face à novidade, sobretudo se tal novidade vem contradizer as «certezas», que nós julgávamos eternas.

Os ilusionistas, os demagogos, servem-se sistematicamente do efeito de «normalidade», que está tão arreigado no nosso psiquismo. Este efeito, é uma das principais fontes de equívocos, de avaliação errónea dos dados ao nosso dispor. 

Os sentidos podem ser facilmente «iludidos», mas note-se que eles não são a fonte da ilusão, do equívoco, nem tão pouco, a natureza exterior do que eles veiculam: Afinal, as ilusões ditas dos «sentidos», são antes ilusões da interpretação cerebral das imagens ou sons, etc. que nos vêm pelos sentidos.  Mesmo a imagem que seja «ambígua» à partida, não o será, de verdade: 

- Somos nós que construímos, com aquilo que recebemos dos sentidos, uma certa interpretação ou a descartamos, no momento seguinte, por outra, que nos pareça igualmente coerente. É sempre a reconstrução da imagem que fazemos no cérebro, que  desencadeia a interpretação ambígua. A imagem em si mesma, as manchas de cor e de sombra, os contornos, etc.,  são o que são. Não mudam: É o nosso dispositivo cerebral que é tomado pela interpretação ambígua. 

Porque razão continuamos iludidos, sabendo como é fácil nos ilusionarmos, sabendo também que as ilusões ou miragens, resultam de certa visão que nós próprios damos às coisas, não das coisas em si mesmas. 

Se fizermos uma reflexão profunda sobre a falibilidade dos sentidos e dos juízos que (conscientemente, ou não), fazemos a partir destes, é possível atingir o primeiro grau da sabedoria: 

- A nossa própria psique é que nos engana, na maioria das vezes. Não fazemos a análise adequada das informações que nos chegam pelos sentidos. Assim, somos nós próprios a fonte os enganos.

Se extrapolarmos para o domínio da vida política, económica, etc. verificamos que evoluímos como crianças que se enganam a si mesmas, julgando ver o objeto real no seu mero reflexo, estando convencidas de que a ausência de algo, significa que esse algo não exista realmente, etc.

Temos de reconhecer que, por muito «racionais» que nos consideremos, a maioria das pessoas vive fora da realidade. A realidade é reduzida à imagem distorcida, limitada da mesma. 

Por isso, não considero que exista um fosso intransponível entre o «patológico» e o «normal». De facto, as pessoas estão sempre a tomar os seus desejos por realidade. E quanto à pessoa doente mental: Está ela sempre «fora da realidade»? Mas o que é a realidade? Eu  tenho impressão que, em vez da realidade inteira, é «entronizada» a ideia comum que as pessoas têm da realidade. 

Pode uma mente genial ver aquilo que as pessoas vulgares não conseguem ver; pode também uma pessoa perturbada mentalmente ver algo que as outras não vêm. Mas, quem decide o que é lúcido e não lúcido? Realmente, é muito difícil estabelecer a fronteira entre o normal e o patológico. A História mostra-nos, vezes sem conta, que pessoas, perfeitamente ajuizadas, emitiram hipóteses, ou teorias, que foram descartadas como extravagantes ou pior, inspiradas pelo demónio. Mas, na verdade, eram perfeitamente racionais e lógicas. A sociedade, ao fim de algum tempo, terá assumido tais «elucubrações» como a coisa mais normal deste mundo.

A nossa neotenia abre-nos a porta dos possíveis. A nossa necessidade de proteção, de segurança, fecha essa mesma porta.  A criança que tem medo, tapa os olhos com as mãos, para não ver. A sociedade, ao longo dos tempos, tem feito o mesmo. Tem sido tentada por mundos desconhecidos, que lhe batem à porta; em simultâneo, tem sido afugentada pelo medo do desconhecido, das trevas cheias de monstros, de emanações fantasmagóricas dos nossos próprios medos.