Muitas pessoas aceitam a situação de massacres de populações indefesas em Gaza e noutras paragens, porque foram condicionadas durante muito tempo a verem certos povos como "inimigos". Porém, as pessoas de qualquer povo estão sobretudo preocupadas com os seus afazeres quotidianos e , salvo tenham sido também sujeitas a campanhas de ódio pelos seus governos, não nutrem antagonismo por outro povo. Na verdade, os inimigos são as elites governantes e as detentoras das maiores riquezas de qualquer país. São elas que instigam os sentimentos de ódio através da média que controlam.
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quarta-feira, 17 de abril de 2024

COMO SITUAR O CONCEITO DE «REVOLUÇÃO», NA HISTÓRIA?

 A história que nos é ensinada nas escolas, desde há gerações, segue uma vulgata marxista, o mesmo é dizer, que é algo ideológico.

No cerne dos preconceitos que enformam as gerações de estudantes formados após o 25 de Abril de 74, sobressai o de «revolução». Nenhum conceito poderia ser ensinado de modo mais confuso e mais ideológico. Fala-se de revolução a torto e a direito, a propósito de golpes de Estado e outros derrubes mais ou menos violentos, em contradição com os sistemas políticos instituídos.

Mas, na verdade, não houve senão duas revoluções, no sentido marxista (sem ironia!): pois a teoria marxista acentua o facto de uma revolução implicar profundas modificações no modo de produção, por sua vez, transformando as relações sociais, em profundidade e de modo duradoiro. A partir da consolidação da nova ordem, muitos aspetos super estruturais das sociedades, ficam profundamente modificados.

Para se aderir a esta visão do que seja «a revolução», teremos necessariamente de excluir as «revoluções políticas», as mudanças políticas, mesmo que elas nos pareçam muito significativas. De facto, o que é apontado como revoluções não o foram, por certo; mas foram antes epifenómenos de algo que estava a agir em maior profundidade.

A «revolução francesa», por exemplo, foi o derrube de uma ordem monárquica mas, nem por isso foi a transformação radical da forma produtiva, nem sequer da dominância das classes. A transição da sociedade agrária para a sociedade industrial estava muito avançada quando, a 14 de Julho de 1798, um grupo de populares parisienses tomou a Bastilha. As relações de produção continuaram as mesmas, antes e depois da «revolução», não foi pelo facto de um certo número de cabeças rolarem, nem de propriedades, que antes pertenciam a aristocratas, passarem a pertencer a burgueses, que se modificou em profundidade a relação entre as classes e nem sequer ao nível do poder político. Note-se que os cargos políticos, já antes da chamada revolução, eram largamente ocupados por elementos da alta burguesia, os quais exerciam esses cargos no poder central e provincial do Estado, muitas vezes relacionados com funções legislativas e da justiça. Mesmo nos altos postos das forças armadas, um campo supostamente reservado à nobreza, as classes não nobres iam progressivamente tomando conta de mais e mais postos. Não devemos ficar iludidos pelo facto do monarca enobrecer um alto funcionário ou uma alta patente do exército: era uma forma, por um lado, de mostrar confiança nesse indivíduo e, por  outro, demonstrar que, servindo o reino, se podia ascender aos cargos e privilégios mais elevados, independentemente da origem social. Napoleão, auto- coroando-se de imperador dos franceses, apenas acentuou essa tendência, que já vinha de longe, criando uma nova  aristocracia, desde barões a príncipes.

Não se encontra, no domínio  da política, nenhum aspeto de fundo que tenha modificado realmente a estrutura das relações sociais. Alguns burgueses tiveram oportunidade de enriquecer, tomando as propriedades das ordens religiosas. Note-se que, eles já pertenciam aos extratos elevados da burguesia, quando compraram (por bem pouco!) os bens das ordens religiosas, postos à venda pelo Estado «revolucionário». 

Poderíamos facilmente mostrar que, ao longo do período napoleónico, contrariamente à mitologia, as classes populares (operários, artesãos, camponeses), não só ficaram subjugadas pelos mesmos ou por outros senhores, como se acentuou a proletarização brutal. Foram colocadas pessoas de ambos os sexos, de todas as idades e incluindo crianças, numa relação de dependência e precariedade, que se traduziu em miséria para as classes populares urbanas. As pessoas esquecem muitas vezes a enorme sangria que foram as guerras revolucionárias e napoleónicas: Durou cerca de 25 anos, em várias partes da Europa. Foi um rasto de destruição «a ferro e a fogo», desde Lisboa  até Moscovo. Estas guerras forçaram comunidades rurais inteiras a migrarem para as cidades, visto que as suas explorações agrícolas tinham sido devastadas ou tinham perdido sua viabilidade económica. 

Do ponto de vista estritamente político, após as guerras napoleónicas reconstituiu-se rapidamente a aliança entre a alta burguesia e a aristocracia. Os governos e monarquias constitucionais que se formaram em quase toda a Europa, são o resultado disso. De fora, ficaram apenas elementos mais radicais, como os republicanos, que continuaram a ser perseguidos: não houve «liberdade de imprensa», nem liberdade de qualquer espécie, durante largos períodos do século XIX, tanto nos países onde tinha havido forte apoio às ideias revolucionárias, como nos que não se deixaram seduzir por elas.  

Na verdade, o fenómeno político, as revoluções liberais, anti autoritárias, anti monárquicas, que houve ao longo do século XIX, são sobretudo o epifenómeno duma profunda transformação na estrutura produtiva. A revolução industrial, que se tinha desenvolvido bem antes, desde o século XVIII, pelo menos, estava a transformar as relações entre classes em profundidade, mas de uma forma silenciosa, não em consequência de qualquer proclamação de princípios revolucionários. O que houve de revolucionário (sem aspas) ao nível da produção, foram, entre outros, a primeira mecanização, a utilização de máquinas a vapor e a concentração de trabalhadores em grandes manufaturas. Estes, eram frescamente saídos dos campos, onde seu trabalho deixou de ter viabilidade económica. 

A concentração de proletários nos centros urbanos, por sua vez, obrigou à transformação das práticas agrícolas: a utilização de processos mecânicos, a generalização dos adubos, os tratamentos fitossanitários, a maior racionalidade no uso dos solos e das culturas, produziram aumentos significativos da produtividade agrícola. Assim se criaram os excedentes que permitiram alimentar a massa humana cada vez maior, nas cidades industriais, porém utilizando muito menos braços nas tarefas agrícolas.  

Portanto, a revolução industrial é o grande motor das transformações. Estas, não se limitaram ao século XIX:

Obviamente, a «grande revolução russa» correspondeu à transformação do país essencialmente agrário, numa potência industrial moderna. Que esta transformação se tenha operado a partir de 1917 sob um governo despótico, totalitário, não impede que tal transformação tenha sido o principal aspeto estrutural da «revolução russa». Os bolcheviques, para efetivação da sua tomada de poder, souberam aproveitar as simpatias de partes do campesinato e do proletariado citadino, por determinadas ideias sociais, o socialismo, o comunismo e o anarquismo. Estes foram instrumentalizados, por vezes esmagados, para a transformação desejada pela «elite» soviética. Não esqueçamos a famosa fórmula de Lenine: «o comunismo consiste nos sovietes, mais a eletrificação do país».

É estranho, mas os que se dizem marxistas não conseguem fazer leituras objetivas dos fenómenos sociais e políticos, quando neles estão envolvidos partidos e correntes «comunistas». A mesma incompreensão dos fenómenos leva certos «revolucionários auto-proclamados » a fazerem uma leitura totalmente errada do  maoismo e do processo de emancipação da China, da sua passagem de uma sociedade atrasada, com características feudais, para uma grande potência industrial e tecnológica. 

Nós - porém - não estamos bloqueados por preconceitos ideológicos. Temos acesso  a um manancial de factos registados, pelo menos desde o início do século XIX, até hoje: não precisamos de distorcer a realidade, ou de fabricar «narrativas convenientes», para convencer os outros de que temos razão, que estamos na linha justa, etc. 

É necessário compreender que a revolução industrial continua, que ela não parou: não é como um comboio que parte dum ponto, para chegar à estação de destino final. A revolução industrial tem vários episódios, continua a modificar a infraestrutura produtiva, a transformar as relações sociais, a condicionar a vida das nações e dos indivíduos e (como epifenómeno) segrega ideologias, as quais são uma espécie de «secreção» que o tecido social produz, enquanto este vai sofrendo inúmeras micro transformações.

A outra grande revolução na história da humanidade, é a revolução agrária. Ela dura desde há cerca de 10 mil anos. No presente, também continua e as suas transformações estão interligadas com as transformações da revolução industrial. Talvez, um dia escreva sobre a revolução agrária. De qualquer maneira, está tão ligada com as primeiras civilizações, que seria necessário compulsar um número impressionante de dados, só para darmos conta da origem e do desenvolvimento desta revolução agrária. É como fazer a história da humanidade, excetuando o longo período paleolítico.

Não poderei pretender mais, neste pequeno texto, do que delinear as questões teóricas em relação com o conceito de revolução e expressar estranheza, perante a «cegueira voluntária» dos que se assumem como sábios, como sabendo em profundidade as coisas, mas que cometem as mais grosseiras falhas de lógica, de bom-senso, para já não falar de método científico. Não poderei convencer tais  indivíduos de que estão errados. Estão numa esfera do tipo crença religiosa, dentro dos seus casulos mentais, sem nenhuma abertura para a realidade... 

Assim constatei, em vários, ao longo da minha vida. Felizmente, existem espíritos mais abertos, que conseguiram aperceber-se das falsidades que lhes andaram a contar durante boa parte da sua vida. 

Mas, aos outros, que não estejam vinculados às falsas religiões das ideologias, digo-lhes: - Vejam este escrito como chamada de atenção e um apelo ao vosso espírito crítico. Não é por algo ser crença de muita gente à vossa volta, que isso é «verdade», nem tão pouco, que seja a verdade a versão oficial, canónica da História, ensinada desde a escola primária, à universidade! 

Eu não pretendo ser detentor da verdade. Apenas tento equacionar os dados do problema ... claro que posso também me enganar. Porém, espero que o meu comportamento desinibido desencadeie nalguns o desejo de inquirir estes assuntos por eles próprios.

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

HUMANIDADE E O PARADOXO DA SUA EVOLUÇÃO

Acredito que a espécie humana se deixou enredar numa espiral de ganância de poder e de sensação de omnipotência pela tecnologia. Os humanos, na origem, eram somente uma entre numerosas espécies animais. Havia contemporâneas de Homo sapiens outras espécies de homens, até há menos de 50 mil anos atrás. A evolução tecnológica foi tão rápida na escala de tempo da Evolução geral, que perturbou gravemente o desenvolvimento harmonioso da espécie Homo sapiens. Pode-se compreender, olhando à nossa volta, como todo o aparato dos confortos da civilização, enterram, anulam, substituem, as nossas capacidades naturais, isto é, as que nos foram legadas por milhões de anos de evolução biológica. O efeito desta desconexão é todo o drama da civilização humana atual, da civilização tecnológica, em particular. Tal como com a evolução biológica, esta evolução tecnológica é essencialmente não reversível.

Mas, há uma grande diferença na escala de tempo; a inovação biológica tem de se instalar a partir de uma ou várias mutações, compatíveis -obrigatoriamente - com as funções vitais dos indivíduos que são seus portadores, mas também que se possam integrar no ambiente e através da descendência. Portanto, a evolução biológica, tipicamente, demora muitas centenas de anos, ou várias gerações humanas, para se firmar e consolidar. A evolução tecnológica é incomparavelmente mais rápida, com consequências importantes, não apenas nas vidas humanas individuais e ao nível das sociedades, mas mesmo na natureza, em geral. Nos últimos cem anos, têm ocorrido revoluções tecnológicas consideráveis (em vários campos da atividade humana) mais ou menos todos os 20 anos. A evolução das mentalidades, das instituições sociais, já para não falar da adaptação da biologia humana, não podem acompanhar esta progressão. Ela, ainda por cima, não é uniforme, nem previsível, mas é caótica no sentido matemático do termo (não se lhe pode atribuir uma lei). As pessoas estão completamente expostas aos efeitos «secundários», aos «danos colaterais», da tecnologia contemporânea. A arqueologia estuda a evolução das técnicas como, por exemplo, o talhe da pedra; há evolução, mas apenas em longos intervalos de tempo. Aliás, é por isso que tem sido possível efetuar a datação dum sítio arqueológico, somente pela análise da tecnologia de talhe utilizada. Vemos, no entanto, ao longo das poucas dezenas de milhares de anos seguintes, que houve um acelerar exponencial da inovação tecnológica: no paleolítico, a mesma técnica era aplicada durante intervalos de tempo da ordem de milhares de anos, sem modificação notável ou detetável. Hoje em dia, a modificação durante as nossas vidas, é tal que a geração anterior, a dos nossos pais, parece ter vivido num tempo longínquo: perfeitamente imaginável, profusamente documentado, mas muito diferente do quotidiano presente.

Este desequilíbrio, ou seja, a impossibilidade das sociedades integrarem e assimilarem no seu interior as inovações tecnológicas, faz com que elas apenas reajam, o que é confundido com «adaptação», mas que - de facto - não é. E as pessoas, individualmente, acabam também por ficar disfuncionais, como não podia deixar de ser. Este disfuncionamento é em relação a características que são absolutamente essenciais para a sobrevivência do humano, enquanto tal: a sociabilidade, a empatia, o altruísmo, a responsabilização coletiva, a dádiva, a partilha, a preferência do «ser» sobre o «ter». Existe muito empobrecimento mental e afetivo na sociedade tecnologizada. As pessoas não estão nada adaptadas, daí a enorme explosão de violência irracional, não motivada, em sociedades de abundância material. É nessas sociedades que ocorrem frequentes surtos de violência, com pessoas tornadas loucas, capazes de matar quaisquer outros; noutros casos (bem mais frequentes), a situação de desespero, de vazio, de depressão precipita as pessoas a pôr fim às suas vidas, a suicidarem-se. Estes fenómenos extremos de disfunção social, são noticiados, mas eles recobrem um outro domínio do não-reportado, de profunda disfunção, na vida pessoal e social. O consumo das «drogas», sejam elas prescritas sob forma de medicamento, ou procuradas no mercado negro das drogas ilícitas, tem como causa a insatisfação, a frustração das pessoas, relegadas ao dilema absurdo de consumidores resignados, ou à revolta sem objeto, que não será transformada em revolução, enquanto transformação coletiva e social.

Como estou inserido neste mundo e não tenho a veleidade de me extrair dele para ter uma visão de conjunto, que pudesse fornecer um diagnóstico da patologia social e a consequente cura dos males sociais, resta-me apenas dirigir algumas palavras, que penso de bom-senso, nesta altura de acumulação de tensões, de violências, de protagonismos :

Este contexto, obriga a nos preocuparmos com aspetos básicos, não apenas a nossa sobrevivência material individual, como social.

- Estamos no tempo em que deve haver reforço das interações positivas dentro da família e na sociedade que rodeia os indivíduos (os grupos de amigos, de colegas do trabalho...).

- Não devemos ser ingénuos, não devemos deixar-nos manipular através dos nossos sentimentos instintivos, principalmente o medo e a insegurança a ele associada.

- Construir e preservar o que já está construído, no sentido literal e metafórico, deve ser uma nossa preocupação constante.

- Fazer um esforço real e honesto em direção ao Outro; ou seja, sermos capazes de nos pormos na pele do outro. Isto não quer dizer que - automaticamente - aprovemos as suas ações. Não somos diferentes do Outro, na essência: nem superiores, nem inferiores.

- Devemos ser tolerantes, no sentido de não nos colocarmos numa posição ideológica, seja sobre o que for: As questões concretas é que importam; elas passam-se no terreno do real, não nos vapores etéreos das ideologias. Avaliar as situações através do filtro da ideologia, é pior que usarmos um espelho deformante para ver o real; é como caminhar às apalpadelas, num nevoeiro espesso. Eu sei que todos temos, quer queiramos quer não, uma ideologia (implícita ou explícita), mas acho que neste domínio é preciso relativizar: O que nos parece a «verdade última», também no passado, as gerações anteriores tiveram ilusões semelhantes e os resultados foram geralmente deploráveis.




quarta-feira, 12 de julho de 2023

A DEGENERAÇÃO DOS VALORES LIBERAIS

 A subversão do status quo é feita do interior dos think tanks e das corporações, que governam o mundo capitalista ocidental. Este fenómeno faz curto-circuito a todos os valores, às construções teóricas e às crenças ou ideologias, que as pessoas das gerações mais antigas transportavam. 

                                 Imagem: George Washington na travessia do rio Delaware

Esta subversão não é uma evolução decorrente das transformações inevitáveis das sociedades humanas, sejam elas bruscas (golpes, revoluções) ou suaves (mudanças de maiorias eleitorais, etc.).  Trata-se antes duma engenharia social, fabricada para substituir o «consenso» social-democrático, o qual serviu como forma da aplacar os ventos de revolta, sobretudo na  segunda metade do século XX, com uma aspiração confusa mas inegável para o socialismo por parte das classes que não beneficiam da sociedade capitalista, mas também da juventude universitária, oriunda de meios não proletários na sua maioria, que  se opunha aos princípios da sociedade «burguesa», ao  regime capitalista e às guerras imperialistas e neocoloniais. Mas substituir esse «consenso social-democrata» por quê? 

Penso que os ideólogos e psicólogos ao serviço das corporações (alguns ocupando lugares em instituições académicas) conhecem profundamente a matéria-prima. Eles têm como função moldá-la (influenciar). Seu conhecimento profundo, em vez de ser posto ao serviço da libertação dos humanos em relação às cadeias físicas e psicológicas que os amarram, tem sido usado perversamente para conduzir as pessoas para onde eles (manipuladores) querem. Esta mão-de-obra especializada e geralmente bem paga, está no centro do complexo  que inclui as indústrias do entretenimento, da informação «de massas» e das universidades (hoje, centros de fabricação de conformismo).

É sabido que o mundo capitalista sofreu uma grande mutação na sequência do fim da «Guerra Fria nº1», os anos do globalismo «feliz», ou triunfante. Os anos 90 do século passado e a primeira década do século XXI, foram  ocasião de intensificação do capital financeiro, em detrimento dos Estados e do capitalismo industrial. Este último, foi subordinado ao capitalismo financeiro e, além disso, as infraestruturas (fábricas) foram desmontadas dos países capitalistas do centro, para serem implantadas nos países mais pobres da periferia da Ásia, América Latina e África. Este salto permitiu que as taxas de rendimento do capital fossem maximizadas, mas à custa da destruição do tecido industrial nos países tradicionais do capitalismo e da precarização e pauperização das classes trabalhadoras respetivas. Estas classes trabalhadoras tinham sido mantidas num estado de relativa satisfação, durante as chamadas «trinta gloriosas» - ou seja - nos trinta anos que sucederam ao fim da IIª Guerra Mundial. Neste período histórico, a progressão da URSS e dos países socialistas, incluindo países considerados do IIIº Mundo, como a Jugoslávia, Cuba e China Popular, exerceram uma grande atração nas classes laboriosas do mundo capitalista, que a propaganda anticomunista não conseguiu  neutralizar. Pelo contrário, quanto mais difamassem o «socialismo real», mais ele ganhava prestígio junto de muitos, incluindo a jovem geração, nascida no pós- IIª Guerra Mundial. Esta, habituou-se a ter como dado adquirido, o usufruto de condições de relativo bem-estar, decorrentes da elevada rentabilidade do capitalismo e da sua compreensão de que era do seu interesse dar condições de vida decentes à classe trabalhadora e, sobretudo, aos seus filhos. Chegou-se ao ponto que as pessoas tomavam como adquirido, que a geração dos filhos iria ter um bem-estar superior à dos pais; que iriam ter acesso ao ensino universitário, coisa quase exclusiva dos filhos da média e alta burguesia, apenas há uma geração atrás.  O sonho de evolução gradual para o socialismo, sem revolução, com progressiva igualização das classes sociais, revelou-se como uma utopia, quando a classe empresarial decidiu contra-atacar através da ideologia «neoliberal». Para derrotar a ideologia social-democrata e os respetivos partidos de governo na Europa Ocidental, fizeram uma campanha bem planificada de desconstrução das instituições que funcionavam razoavelmente nestes países capitalistas, mas que seguiam uma lógica de servir o público e não de criar lucro. Houve instituições parcial ou totalmente privatizadas (infraestruturas: eletricidade, água, estradas, serviços de saúde);  outras, postas em concorrência com instituições privadas (ex.: escolas públicas descapitalizadas, em concorrência com escolas privadas, recebendo subsídios do Estado); outras ainda foram extintas, ou tornadas residuais (ex.: programas de construção e gestão de habitação social).  

Nas esquerdas, não houve clarividência e sentido estratégico. Cedo se deu o retraimento da esquerda «clássica» (associada a lutas nas empresas, através de um sindicalismo classista); contestada por uma esquerda dita «festiva», dita também de «causas», como as lutas LGBT, o feminismo, alheado das suas raízes operárias históricas, a ecologia política (que não se pode confundir com Ecologia enquanto domínio científico) e outras «causas fraturantes».  De facto, foram fraturantes, mas no sentido de porem setores contra setores, dentro da mesma classe, e assim tornarem impossível ou inócua qualquer tentativa de levar a cabo um combate integrado contra a exploração capitalista. Não só os trabalhadores não compreenderam logo, na sua grande maioria, como estavam a ser manipulados, também as direções dos partidos e dos sindicatos operários, só tomaram consciência demasiado tarde. Tragicamente, durante decénios, para satisfazer uns e outros, em resultado de uma política cem por cento virada para conquistar votos e lugares nos parlamentos, essas direções foram incapazes de qualquer contra-ataque credível. 

Recentemente, os grupos marginalizados, como as segunda e terceira geração de emigrantes em França e noutros países europeus principalmente, protagonizaram revoltas, em geral na sequência de um assassinato, por um polícia, de um deles. 

Estes emigrantes - vindos de África principalmente - foram mantidos em ghettos, sujeitos a maior exploração e a trabalhos considerados «inferiores» e mal pagos, perante a classe trabalhadora dos países recetores, largamente indiferente, quando não hostil à sua vinda e estadia, de supostamente «invasores», não percebendo que estes emigrantes eram importados para  fazer pressão sobre a classe trabalhadora nacional. O resultado foi o crescimento avassalador de partidos de extrema-direita, que capitalizaram o descontentamento das classes cujo modo de vida estava a ser negativamente impactado pela emigração. Este estado de coisas foi mantido e diretamente encorajado pelos partidos de centro-direita e centro-esquerda, como representantes do grande capital, pois  eles assim tinham a classe operária desunida, ao contrário do que aconteceu em Maio-Junho de 68, em que a palavra de ordem era de solidariedade total com os emigrantes e participação destes, «ombro-a-ombro» com o operariado francês, nas greves.

A retórica do liberalismo mantém-se, fica bem nos discursos, mas o espírito é exatamente o mesmo que o dos «negreiros», os que - em vários países «brancos» - organizavam a escravatura e comércio dos escravos africanos, até bem dentro da segunda metade do século XIX. 

A mentalidade imperialista nunca foi tão virulenta como agora, pois a deseducação das camadas populares fez com que caíssem na propaganda estatal, nos vários países da OTAN. A «liberdade de imprensa» de agora, é a censura generalizada em redes sociais e sites da Internet. Esta censura parece-se mais com a da inquisição, contra os recalcitrantes e os livre pensadores e com a censura de Estado, nos séculos XIX e XX, contra correntes realmente revolucionárias.

Podia dizer-se que «a ditadura do capital não precisa de realizar a defesa genuína de qualquer liberdade, exceto da liberdade de comércio». Porém, mesmo esta, é logo renegada, abandonada, pelo uso e abuso das sanções (totalmente ilegais) que pretendem vergar regimes que não se submetem aos imperialistas, sanções cruéis porque resultam exclusivamente em sofrimento do povo. 

O que resta de liberalismo na Europa ou América do Norte, nos países que se auto classificam como «democracias»? Quase nada, ou mesmo nada. 

Note-se que os dirigentes desses regimes ditos democráticos, não têm feito senão imitar «ditaduras do proletariado», sob pretexto de segurança, de combater o terrorismo, de combater «as forças do mal». A vigilância generalizada existe em grande escala em Londres, por exemplo, onde é impossível atravessar o centro, sem se ser filmado uma centena de vezes, por câmaras de vigilância discretamente distribuídas por todo o espaço público. Mas, isso é verdade também em múltiplos outros domínios. Edward Snowden e outros, revelaram como a NSA (uma agência dos EUA) intercepta sistematicamente todas as comunicações da Internet e de telefonia móbil, para as armazenar e as selecionar quando conveniente, através de pesquisa por algoritmos, até chegar aos olhos de agentes. Isto não é exclusivo dos EUA; eles têm uma rede de espionagem dos cidadãos do mundo inteiro, onde participam Grã-Bretanha, Austrália, Canadá, Nova-Zelândia, além dos EUA.

Claro que muitas pessoas se deixam enredar pela propaganda, pelo medo, pela angústia de ser designado «inimigo», etc. Hoje em dia, tanto dentro dos EUA como fora,  em muitos países vassalos, as pessoas são perseguidas por suas opiniões, sejam elas «conservadoras» ou «revolucionárias».  A ilusão de liberdade é resultante da técnica seletiva usada para suprimir toda a dissidência. Não são já precisos «gulag» ou campos de concentração; não são precisas prisões políticas e câmaras de tortura. O Estado consegue controlar as massas através do medo e da ignorância

Os poucos que denunciam este novo totalitarismo, ou são calados pelas pressões económicas, como a exclusão do emprego, ou por difamações a cargo de uma autêntica classe inquisitorial (fact-checkers). Estes fazem-se passar por «jornalistas», mas apenas são mercenários. 

 Embora a hora seja sombria, o facto de se desenvolver um aparato tão complexo, poderoso e caro, para ocultar a verdade aos cidadãos, mostra que estes ainda detêm considerável poder, embora potencialmente apenas. Se eles começarem a usá-lo sistematicamente, auto-organizando-se fora dos padrões instituídos, o derrube das ditaduras com máscara de democracia não andará longe. 

domingo, 5 de fevereiro de 2023

INDIVÍDUO / COLETIVO

O título apela a uma oposição, a qualquer coisa irredutível, na essência. Porém, se este é o modo de pensar e de filosofar de muitos, não é o meu! Embora aceite que eu possa ser influenciado por uma sociedade e um discurso dominantes, que se caracterizam por um pensamento dicotómico, simplificador. Porém, as propriedades imensamente complexas do social e do histórico entrelaçam-se para produzir algo totalmente inédito, em termos de evolução biológica.
 
O que os humanos têm feito ao longo da sua breve existência (como espécie, uns meros 300 mil anos), mas imenso tempo, em termos de memória humana (as primeiras civilizações surgem apenas há pouco mais de uns 10 mil anos), não tem sido senão depredação do seu ambiente. A «revolução agrária», iniciada há mais de 10 mil anos, implicou uma radical transformação, não apenas do modo de produzir e consumir alimentos, passando da caça-recoleta, para uma produção agrária, mas também a destruição de ecossistemas naturais, sobretudo na orla do mar Mediterrâneo, onde apenas restam alguns vestígios do que foi a floresta mediterrânea primitiva, vasta zona produtiva natural, que tinha uma diversidade notável, em termos de flora e fauna, zona temperada e de clima não demasiado seco. Veja-se que vastas áreas, como a Anatólia (Turquia), Síria e Levante, assim como Norte de África, não eram formadas por desertos ou semidesertos, como hoje. Eram zonas muito propícias para a caça e coleta e para a agricultura. Porém, a construção de impérios diversos na antiguidade extinguiu estes ecossistemas frágeis. Por exemplo, havia, até aos tempos históricos, leões nessas zonas; muitos documentos escritos e pictóricos atestam-no. Mas, estes superpredadores precisam de uma fauna de herbívoros, como gazelas, etc. Por sua vez, os herbívoros que aí viviam precisavam de condições mínimas para sobreviver; precisavam de alguma humidade, de fontes de alimento abundantes ao longo do ano, etc. Portanto, temos uma ideia muito clara de como eram os habitats naturais, no início da «revolução agrária» e sabemos que permitiam uma diversidade biológica muito maior do que as zonas áridas e desérticas, que constituem uma boa parte do entorno do Mediterrâneo, nos nossos dias. A transformação de vastas áreas em desertos ou semidesertos, terá tido contribuição humana, com a sua destruição dos ecossistemas, usando a caça muito para além das suas necessidades. A destruição dos habitats naturais pelo fogo, foi realizada pelos primeiros agricultores, para aí fazer crescer plantas agrícolas. Este comportamento humano foi causador de catástrofes ambientais, desde as civilizações mais antigas conhecidas.

O sucesso da linhagem humana (pelo menos, o género Homo), enquanto tal, mede-se, sobretudo, pela sua expansão para lá dos limites geográficos que foram as suas zonas geográficas iniciais de África e depois também a orla do Mediterrâneo. Mas, essa expansão ocorreu repetidas vezes, houve várias saídas para fora de África. Ocorreram mesmo com espécies anteriores aos humanos modernos, há mais de um milhão de anos, como no caso dos Homo erectus, que se disseminaram na Ásia. Porém, não devemos ter uma imagem idílica destes períodos, pois os efetivos totais da Humanidade, em qualquer momento deste período muito longo, não devia exceder uns parcos milhares.

Algumas pessoas têm uma visão pessimista (Malthusiana) da espécie humana e da dinâmica populacional no nosso planeta, porém esta visão enferma de um grande simplismo. Primeiro, há sinais de diminuição clara da natalidade, acompanhada de envelhecimento geral, nas sociedades mais afluentes, quer sejam europeias, americanas ou asiáticas. Segundo, as restantes zonas do globo experimentam evolução demográfica semelhante à da Europa, desde a revolução industrial, com uma expansão demográfica muito elevada no início, até se chegar aos dias de hoje, com taxas de reprodução inferiores às de reposição da população (cerca de 2,1 bebés por mulher fértil). Os países ditos do «Terceiro Mundo», que saíram do marasmo do subdesenvolvimento, tiveram um decréscimo natural dos nascimentos. Na verdade, o que os demógrafos temem não é a «bomba populacional», no sentido dos que profetizam - como Malthus - um crescimento populacional indefinido e superior à capacidade de sustentação da Terra, enquanto ecossistema global. Mas, uma catástrofe demográfica no sentido contrário, ou seja, uma diminuição da fertilidade, em paralelo com o aumento da longevidade, o que vai tornar difícil de perpetuar e de gerir uma sociedade como a que conhecemos, com os benefícios sociais que muitos dão como adquiridos, mas que pressupõem um sistema económico capaz de sustentar um certo modelo social.

Aquilo que se chama «condição humana» ou ainda «natureza humana», não é algo fixo, estático. Embora a nossa história biológica passada deixe as suas marcas nos corpos presentes e mesmo nos modos de organização presentes das sociedades humanas, nada deve ser dado como definitivo.

A espécie no seu todo e cada uma das populações humanas que a constituem, estão em permanente evolução. Podemos dar muitos exemplos de frequências de versões de genes (alelos de genes) que foram aumentando, ou diminuindo, nas populações ao longo dos tempos históricos: São mesmo muitas, as modificações sensíveis e com efeitos notórios no modo de vida dos contemporâneos. Os genes estão sempre a sofrer mutações; aqueles que são transmitidos à descendência, ao longo de gerações sucessivas, costumam conferir um coeficiente de sobrevivência positivo e serão conservados. Porém, certos genes podem ser deletérios num determinado contexto e serem benéficos, noutro. Mas, ao nível da população, a variedade genética é essencial. Temos uma diversificada capacidade de resistência inata aos agentes infeciosos. Esta resistência à doença por um certo agente infecioso, é - em geral - muito elevada quando, durante longos períodos, a população foi confrontada com esse agente, um efeito de seleção darwiniana típico.

A tecnologia das sociedades humanas cria situações novas, às quais as populações e os indivíduos respondem. Há aquisição cultural de muitos comportamentos, mas há também a extinção de outros. Esta evolução cultural é muito mais rápida que a evolução biológica. Tipicamente, deve-se contar com um lapso de tempo da ordem da dezena de milhares de anos, para uma população sofrer uma variação significativa (diminuição ou aumento) da frequência de genes, em consequência de mudanças ambientais. Isto é válido para a espécie humana e para as outras espécies estudadas.

Mas, a alteração do comportamento, que pode inclusive implicar a mudança radical no modo de vida da população, pode verificar-se no espaço de uma geração, ou até de menos. Por exemplo, os nativos da Amazónia, mais próximos de comunidades vindas de ambientes urbanos, adotaram um novo estilo de vida, abandonaram o modo de vida de caça e coleta. Poderia argumentar-se que houve uma intervenção, por vezes violenta, para coagir estes povos. Mas, isto aconteceu - também - quando as populações indígenas não foram sujeitas a tal coação. Escolheram adotar um outro modo de vida; mas elas seriam deixadas viver como os ancestrais, se assim o desejassem.
O mesmo padrão ocorre noutros casos, em populações ainda não integradas no modo de vida industrial, tais como as populações nómadas, etc. Em todos os casos estudados, a «aculturação», seja com ou sem aspetos de coação sobre a população, tende a ser muito rápida. A mudança de um modo de vida para outro, corta a população de certos saberes, separa os indivíduos e as comunidades de certas tradições: Pode-se lamentar isso, mas não se pode impedir que os povos escolham a forma de vida mais conforme com as suas aspirações.
No polo oposto, no seio de sociedades industrializadas, assiste-se à profusão de «subculturas». Estas, por vezes, duram somente uma geração (ou menos) mas, noutros casos, evoluem de forma autónoma e fixam-se como subconjunto estável. O processo de fracionamento nas sociedades industriais «maduras» é tal, que acaba por funcionar como contrapeso à tendência homogeneizadora nas mesmas sociedades.

Portanto, «a natureza eterna e imutável da humanidade», é apenas um efeito de ótica, de se observar uma estreita faixa da humanidade, no tempo e no espaço.

É o preconceito que nos leva a imaginar um psiquismo semelhante ao nosso, quer em civilizações ou culturas muito anteriores, quer nas contemporâneas, mas que estejam mais distantes culturalmente da nossa. Temos um modelo implícito, assumimos que tal modelo é generalizado, para além da nossa vivência singular, enquanto indivíduos participantes numa dada sociedade.

Não somos uma espécie individualista típica, como é o caso de algumas espécies animais que evitam a «mistura» com outros de sua espécie, excetuando no acasalamento: os felinos selvagens têm esse comportamento, na maioria das espécies.
Em muitas espécies, a participação do macho para a descendência é o mínimo que se possa imaginar. Quanto à fêmea, esta acasala, dá à luz e depois cria os filhotes, essencialmente sozinha. No polo oposto, temos diversas espécies de símios, incluindo símios antropoides, símios sem cauda incluindo o gorila, o chimpanzé, o bonobo e outras. São animais sociais, constituem bandos, têm uma hierarquia que não é rígida, pois está sempre a ser contestada, têm um comportamento de grupo no dia-a-dia. São animais que se poderia chamar de «naturalmente coletivistas». Nós somos oriundos da grande família dos símios antropoides, mas não somos tão rigidamente determinados no comportamento coletivista, como estes.

Assim, a contradição entre individualismo e coletivismo deve ser equacionada no tempo mais longo, no da evolução biológica. A adaptabilidade intrínseca da espécie humana é considerada, por muitos, ser resultado da evolução por neotenia*. A adaptabilidade permite que a nossa resposta seja mais individualista ou mais coletivista, consoante as circunstâncias. Não podemos - porém - esquecer que somos uma espécie essencialmente social.

Note-se que o criador de Robinson Crusoe percebeu perfeitamente isso. Ele dá como adquirido que o herói, embora consiga adaptar-se a uma vida solitária, está sempre ansiando por retomar o contacto com outros humanos e quando consegue encontrar um humano («Sexta-feira», em inglês Friday), fica muito feliz ; trata-o como companheiro, não como criado ou escravo. Daniel Defoe exprime uma constante da psique humana, que ele bem conhecia, ou seja, que somos feitos para ter um relacionamento social. Sem isso, somos incompletos.

A insistência em ideologias «individualistas» ou «coletivistas» corresponde, de facto, a fracas abordagens da complexidade dos indivíduos e das sociedades.

Não se concebe uma sociedade sem seres humanos individuais e capazes de se auto-determinarem. A sociedade de «robots» é  uma distopia (utopia negativa), não me parece ser um futuro possível. Mas, uma sociedade de indivíduos todos eles separados e isolados uns dos outros, por mais nobres que sejam seus sentimentos e valores, também não é uma sociedade saudável, onde se deseje viver. Esta seria, ao fim e ao cabo, como uma «sociedade» de felinos selvagens, como atrás referi. Mas, não somos felinos, estamos próximos das espécies mais sociais entre os mamíferos, os símios antropoides.

A evolução biológica é muito complexa. Uma característica dela, é que baliza a evolução posterior, nunca ao contrário: Não há verdadeira evolução «regressiva». Não podemos voltar atrás e modificar os antepassados dos humanos, mesmo admitindo que estes por cá andassem ainda, ou que tivéssemos um processo de engenharia genética de os fazer reviver, não só como indivíduos, mas enquanto comunidades.

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Neotenia, a propriedade de haver maturação de órgãos reprodutores e  reprodução efetiva, num estádio larvar. Segundo a «hipótese neoténica» os humanos seriam símios neoténicos, o que explicaria a sua capacidade de aprendizagem ao longo da vida e a sua flexibilidade comportamental, além de traços «fetais» como a escassez de pêlo, a fragilidade muito grande dos recém-nascidos e durante os primeiros anos de vida. A nossa cabeça, mais de acordo com as proporções de um feto de símio do que de um símio adulto,  está no limite do crescimento, face às dimensões da pélvis da mulher, dificultando o parto. O falecido biólogo Stephen Jay Gould foi um dos mais conhecidos defensores da hipótese neoténica para a espécie humana.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

DIÁLOGOS SOBRE O FENÓMENO HUMANO


 Publicamos aqui um primeiro diálogo entre um Paleoantropólogo e uma Geneticista. 

P - Este desafio de falar sobre o humano é tão arrojado e, ao mesmo tempo, inescapável para alguém com a minha profissão. Nas fronteiras do humano, estão interrogações filosóficas quer nós nos debrucemos sobre o passado (evolução humana), o presente (antropologia cultural) ou o futuro (prospetiva). Quanto à ciência genética, que também faz parte das ciências que a paleoantropologia utiliza, o que te parece ter sido mais relevante, no que ela trouxe ao debate constante sobre este tema?

G- Eu sei que o paradigma dominante é - não apenas na genética - de um certo determinismo. Isso traduz-se no imaginário popular, como alguém tendo herdado o gene W, terá uma expressão do gene correspondente. Isto não é válido, como sabemos e os cientistas com certeza todos sabem que isso não funciona exatamente assim mas, ao nível mais profundo, mais epistemológico, há uma crença arreigada na determinação dos genes. 

P- Sim, há a velha e falsa polémica de «genes» versus «cultura», mas que evidentemente não leva a nada pois as coisas não são separáveis. É exatamente como a história de «quem veio primeiro: A galinha, ou o ovo».

G. No campo da genética, costuma-se separar as especialidades moleculares (o estudo dos genes e suas sequências), da genética das populações (como evoluíram as populações, como é que tais ou tais genes e conjuntos de genes se segregaram ou reuniram nas populações, neste caso, populações humanas). Mas, a utilização massiva e mesmo corriqueira de indicadores genéticos (sequências) em populações passadas ou presentes, em muitos estudos, veio agora tornar muito fluida a fronteira do que seja do domínio da «genética  molecular» ou da «genética das populações».

P- No campo da antropologia, a herança de um neo-darwinismo dogmático - que não deve ser confundido com as precoces, mas valiosas, contribuições de Darwin  - contribuiu para uma visão linear da evolução humana, com a agravante de querer que os achados sucessivos se enquadrassem dentro da tal visão estreita de uma «evolução progressiva», tendente a «um tipo perfeito de humano, que seria o Homo sapiens». Dessa distorção resultaram muitos preconceitos, difíceis de eliminar. Por exemplo, a correlação estreita da inteligência com a capacidade craniana, mesmo  estimada na proporção do total da massa corporal. Verificou-se que H. luzonensis e H. floriesiensis tinham capacidade craniana muito menor que os vários exemplares (contemporâneos alguns) de H. erectus, encontrados em várias ilhas do Sudeste Asiático. Ambas as espécies (luzonensis e floresiensis) eram, não apenas fabricantes de instrumentos de pedra, como tinham habilidade de caçar animais perigosos e de porte muito maior; sinal seguro de certo grau de inteligência. Se a correlação entre a massa cerebral e inteligência fosse linear, estas espécies teriam apenas o intelecto de chimpanzés e as realizações destes símios, ou seja, seriam apenas capazes de usar instrumentos «ready made» (pronto a usar), paus e pedras que encontrassem.  

G- As descobertas da genética nos finais do século passado e no  século XXI também foram de molde a destruir algumas falsas verdades, como a universalidade da transmissão mendeliana dos carateres ou a possibilidade de transmissão hereditária de informação «material», por oposição a «cultural», por uma outra via, que não a do ADN. Isto torna caducos uma série de modelos e mesmo de teorias em genética, pois não se baseiam nesta «nova» genética, mas numa genética onde a transmissão dos carateres hereditários se faria estritamente segundo as leis mendelianas e estava exclusivamente codificada nos genes, formados por sequências de nucleótidos. Mas de facto conjugar as recentes descobertas ao nível molecular e celular, com os dados de observação das populações, é muito difícil. A teoria neodarwiniana dos anos 30-60 do século passado fez isso, na chamada «síntese neodarwiniana», porém este modelo ficou caduco, passados poucas décadas depois de ter triunfado. A partir da descoberta dos intrões (anos 1970-80) e  de um conjunto de descobertas que formam a base do que chamamos a epigenética, até então insuspeitadas. Mas, esta «síntese neodarwiniana» fascinou as mentes, ao ponto de muitos cientistas se «agarrarem» a ela, visto não existir nenhuma outra teoria global que a substitua.

P - O que acabas de relatar é muito interessante e tem analogias em vários ramos do saber. No domínio da paleoantropologia por exemplo, a tipificação de uma espécie, muitas vezes a partir de um número reduzido de fósseis, cria (mentalmente) uma categoria estanque. Ou seja, essa espécie (admitindo que fosse real) só podia ter evoluído transformando-se noutra, mais recente, ou extinguindo-se e deixando espaço para outra espécie ocupar o nicho ecológico, deixado vazio. Assim, a existência (constatada hoje, para além de qualquer dúvida, graças à genética molecular) de hibridações interespecíficas, em antecessores dos humanos, não era concebida ou era considerada heresia, pelos paleoantropólogos há 30 anos atrás. A revolução conceptual da descoberta de grandes pedaços do genoma neandertal e denisovano nas populações humanas atuais, ainda está por «digerir» inteiramente. É difícil, para alguém que sempre pensou a evolução enquanto sucessão de mutações, conducentes a uma melhor adaptação, formando espécies cada vez mais aperfeiçoadas, ser confrontado com o modelo oposto: Uma evolução ramificada, com múltiplas introgressões, na árvore evolutiva humana e pré-humana.

G- A imagem que nos fica na Paleoantropologia, na Genética e mesmo de outras ciências, é que a ideia do humano está datada. Nós construímos uma civilização com base num humanismo renascentista, o qual tinha toda a razão de existir, quando apareceu e nos séculos imediatos. Mas agora, embora não seja a «morte do Homem» é - parece-me - a morte da imagem que nós temos de nós próprios. Não achas que o vazio e a incerteza daí decorrente podem ser ocasião para se afirmarem ideologias tão absurdas e nefastas como o racismo, o eugenismo, etc.? O transumanismo é apontado, por alguns, como sendo o futuro mas creio que estamos perante a imposição autoritária, mais uma vez, dum modelo de poder sobre a humanidade. 

P- Sim, o desejo de poder é o que carateriza melhor as elites eugenistas (que continuam a existir) e que propagam, através dos seus meios consideráveis, a sua visão do mundo. Elas fazem-no em relação ao transumanismo, mas também em relação à Nova Ordem Mundial. Têm ideias malthusianas e nós todos sabemos como isso acaba. As visões de «fim do mundo» são propaladas por alguns, amplificadas e retomadas por pessoas que nem suspeitam como foram influenciadas. De facto, a humanidade no seu todo complexo, não é mais evoluída que outra espécie qualquer. Não faz sentido dizermos que somos mais evoluídos que os gorilas ou que os golfinhos. Porque as espécies de gorilas e de golfinhos que existem à face da Terra hoje, são as que subsistiram, depois de milhões de anos de evolução. Quer por acaso, quer por estarem melhor adaptadas ao seu ambiente, estas espécies nossas contemporâneas sobreviveram, outras desapareceram. A ideia de uma evolução «progressiva» embora muito atraente para o espírito está centrada na nossa existência, é o mito do antropocentrismo. Nós, subjetivamente, pensamos estar cá nesta Terra porque fomos os mais aptos, mais evoluídos que outros hominídeos. Mas, isso não se passa assim. Há muito de arbitrário, de caótico, na evolução das espécies e nós - humanos - somos apenas uma entre  milhões de outras espécies e os mecanismos que se aplicam a essas outras espécies, também se aplicam a nós. 

G- É difícil ao público, em geral, apreender que somos diferentes do que idealizamos, como autoimagem. Mesmo para os cientistas, custa a crer que sejamos uma espécie entre milhões. Esta ideia - por mais que seja aceite intelectualmente- esbarra com crenças profundas: A «natureza humana», a «essência de ser-se humano», tudo isso vai esbarrar com a biologia, porque esta não tem que assumir valores, esta limita-se a usar critérios (questionáveis e mutáveis) do que se considera humano ou não. Por exemplo, se nós tivermos um ADN dum fóssil com cerca de 200 mil anos, portanto contemporâneo de seres humanos " modernos mais antigos", visto que existiram H. sapiens em África nessa época, mas esse fóssil apresentar características humanas e outras não-humanas. Se esse ADN revelar que em termos de sequências «consensuais» com os genes humanos atuais, existe uma divergência importante, embora menor que em relação aos outros símios ... Como classificar esses fósseis? Estou a pensar em Homo naledi  

P- Sim, o problema que colocas, no fundo, envolve toda a problemática da classificação. Nós sabemos que a classificação começou a ser uniformizada, pela ciência, na época de Lineu. Nesse tempo, a Criação era vista como uma coisa estática, as espécies estavam definitivamente formadas e não se entrecruzavam no estado selvagem. Os poucos híbridos conhecidos eram entre animais domésticos. Por isso, o conceito de espécie surgiu como algo de «natural» quando, na verdade, era apenas uma construção arbitrária do intelecto. Toda a ciência biológica recorre a este conceito, mesmo quando ele é muito pouco apropriado, como em Bacteriologia, Virologia, ou Micologia...

G- Sim, a ciência está ligada a construções históricas de conceitos, não havendo possibilidade de transformar esses conceitos, senão através de múltiplas ruturas. Por exemplo o conceito de gene, que é tão recente afinal: Ele data do início do século XX, assim como a própria palavra «gene». Este conceito evoluiu de forma decisiva e hoje já não tem grande coisa que ver com a ideia de «gene», dos melhores e mais avançados geneticistas dos anos 1920... Penso que tanto o conceito de gene, como o de espécie perduram porém, porque têm algo de útil, por muitas exceções que possamos colocar às respetivas definições. O conceito de espécie, como sendo de indivíduos que se entrecruzam livremente no seu ambiente natural e dando descendência fértil, é posto em causa em múltiplos casos, no Reino dos Fungos, das Bactérias ... Mesmo nas Plantas superiores, o conceito não é pacífico, pois é tão frequente a fecundação cruzada (em ambiente natural) entre espécies aparentadas, dando híbridos viáveis e férteis. Isto é do conhecimento dos estudantes em Botânica. 

P- Muitas polémicas em paleontologia e em paleo-antrolopogia estão centradas em torno das definições dos termos, em torno de semântica. Ás vezes, parecem-me mais a afirmação de egos, do que  debate científico. Poucas pessoas têm a noção de que os cientistas são gente comum, com sentimentos comuns, com reações comuns. Alguns elementos destacam-se, como em todas as profissões, pela sua criatividade, originalidade, etc. Mas, por vezes , fico com a sensação de que os próprios cientistas de colocam numa «casta» à parte, nada interessada em dar publicidade às suas teorias e descobertas, para além do círculo restrito dos seus pares. Mas, este comportamento elitista está a mudar, devido à enorme quantidade de jovens cientistas, de todos os cantos do mundo, que investigam e que são o motor real da investigação. Sem eles, a ciência seria morta, seria uma «seita» esotérica, sem qualquer relação com a realidade do mundo. 

G- Sim, a educação científica progrediu muito, em termos de quantidade e de qualidade. Mas, ainda tem de percorrer um vasto percurso. Eu penso que ainda poderá ser alcançado outro patamar, porque a ciência não é esotérica, é a forma de conhecimento que deveria ser a mais aberta, por definição. Vejo também uma crescente participação de mulheres em todos os ramos da investigação o que, não apenas reflete sua igualdade, em termos intelectuais, mas também a imagem que as jovens têm delas próprias.

P- Bom tema para a próxima troca entre nós, G: A problemática da ciência e a sexualidade humana! Até breve!

G- Gostei muito desta primeira conversa. Estou de acordo em pegar no tema que propuseste. Até breve!

 


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

SISTEMA REALMENTE NATURAL DE VALOR (EM ECONOMIA E EM TUDO)

 Sempre tive um grande respeito pelas coisas da Natureza. Sempre me interessei pelos mecanismos subtis e realmente adaptados aos seus fins que constituem os sistemas naturais, desde a mais insignificante bactéria, até aos ecossistemas mais exuberantes, regurgitando de vida, como as florestas tropicais /equatoriais. 

Aquilo que caracteriza a nossa época, é um enorme avanço nas ciências, em particular na Biologia, e - em paralelo - um total obscurecimento da mente humana, devido a uma ideologia mecanicista, derivada da «mentalidade de engenheiro» (os bons engenheiros me perdoem!), que prevalece, assimilando o humano e todas as criaturas vivas, a máquinas. Pior ainda, este mecanicismo afirma-se sem qualquer consciência de que o é. Ou seja, nem sequer é uma posição filosófica assumida como tal. Por isso, leva as pessoas, quer sejam muito pouco instruídas, quer tenham os mais brilhantes estudos e títulos académicos, a se comportarem como aquele indivíduo que serra o tronco da árvore no qual está sentado. Os sistemas naturais estão em perigo permanente, devido à predação e depredação - sob todas as formas - que é levada a cabo, devido à acumulação de detritos, poluentes de toda a espécie, produzidos e não apenas impossíveis de serem reciclados pela Natureza, como fator de destruição de espécies e dos seus habitats. No meio disto, a ideologia dominante inventou uma muito exagerada, senão falsa, ameaça do «efeito de estufa» culpando o CO2 pelos piores males do planeta, quando se trata de um gás como outros: Até, com papel fundamental no ecossistema global, visto que é a partir deste, que todas as plantas efetuam a fotossíntese e é graças a ele que temos temperaturas amenas, em grande parte do planeta e uma estabilidade relativa das mesmas, coisas que seria impossível existirem, sem o tal efeito de estufa. 

Mas, o objeto deste artigo é outro. Resumindo a minha tese:

Os objetos naturais e - em particular - os sistemas vivos, são o modelo natural de que os homens se deveriam inspirar em primeiro lugar, para a construção de seu modelo de economia. Com efeito, se observarmos com atenção, a Natureza «inventou» as formas mais eficazes de captar, aproveitar, reciclar e conservar a energia, assim como as matérias-primas de que carece, para construir suas estruturas e manter em funcionamento os organismos. 

A Natureza tem uma eficácia global inultrapassada, no que toca às reações químicas: os sistemas enzimáticos e seu papel na fisiologia da célula, de qualquer célula (desde a bactéria, ao homem), são duma eficácia inigualável pela Química contemporânea. Muitas reações correntes nas suas células, caro/a leitor/a, são absolutamente impossíveis de acontecer em sistemas não vivos, à temperatura e pressão normais. Apenas sistemas com temperaturas e pressões incompatíveis com a vida, poderiam permitir que tais reações (corriqueiras nas células) tivessem lugar e, quase sempre, com rendimento menor ao que se verifica na célula viva. 

Logicamente, querendo resolver problemas de engenharia, seja ela naval, aeronáutica, química, etc. muitos engenheiros e inventores se voltaram para os seres vivos e tentaram adaptar os modelos desenvolvidos por «Éons de evolução» e que têm comprovadamente a maior eficácia, em termos energéticos e do aproveitamento inteligente dos recursos ambientais.

Mas, os sistemas vivos também conseguem fazer uma gestão otimizada nos seus sistemas internos: A economia intracelular funciona, graças ao ATP e outras moléculas com papel nas trocas de energia. Na era em que se trata de sair das divisas emitidas pelos Estados, em que se tenta um sistema desmaterializado do dinheiro, como não pensar no inteligente «porta-moedas» que constitui o sistema bioquímico de "ATP-ADP-AMP"? Este, associado a  outros do mesmo tipo (GTP,etc),  encarrega-se de assegurar que os saldos positivos (ou seja, as reações exo-energéticas) sejam transferidos para reações devoradoras de energia (reações endo-energéticas).

Os sistemas evoluíram no sentido de fazerem o máximo com o que tinham «à mão de semear». Assim, por exemplo, numerosas proteínas, enzimáticas e outras, têm o ferro como elemento não-proteico na sua estrutura, pois este é o mais banal de todos os metais de transição. Estes são metais que possuem uma camada interna dos eletrões, não inteiramente preenchida e podem, portanto, efetuar ligações químicas muito interessantes, aproveitadas pelas enzimas. 

As formas de reserva de energia são muito eficazes; contêm um stock de energia facilmente mobilizável, em caso de necessidade, para o organismo. Há polissacarídeos, como o amido ou o glicogénio, que preenchem esta  função. Mas, o organismo tem uma reserva «estratégica», que são os lípidos, as gorduras armazenadas em tecidos especializados (tecidos adiposos). 

O papel de centrais energéticas celulares é preenchido pelas mitocôndrias, nos seres eucarióticos. Conseguiu a Natureza, nos eucariotas, incorporar e domesticar certas bactérias que usavam o oxigénio como oxidante, ou recetor final de eletrões numa cadeia de oxidação, com várias etapas associadas à síntese de ATP. Assim, a incorporação de novidade trouxe, nos alvores da vida na Terra, esta variedade de formas que hoje conhecemos. 

A Evolução Biológica é o processo que permite a otimização dos seres vivos e opera à escala de biliões de anos. Em cada geração, numa determinada espécie, no entanto, podem dar-se transformações, que se espalham em pouco tempo. Temos aqui um modelo de como combinar a conservação daquilo que tem sido positivo ao longo das gerações, com a aceitação e difusão rápida de inovação, caso esta realmente se traduza em vantagem para os indivíduos que a transportam. 

As «soluções» que os engenheiros encontram* para os problemas da nossa civilização, são extremamente pobres, têm pouca maleabilidade e não têm em conta as externalidades. Por exemplo, a poluição associada ao seu fabrico e uso: São inevitáveis, a um, ou outro nível. Mesmo quando publicitam que tal ou tal aparelho «não poluí», da sua construção não falam, nem da destruição dos ecossistemas e  esgotamento das matérias-primas. 

A economia humana pode caraterizar-se pela quantidade de desperdícios, dos produtos que se transformam em lixo, muito do qual não é reciclado (e nalguns casos, nem é reciclável). A Natureza recicla e aproveita sempre os materiais; o desperdício de uma espécie, é o nutriente de outra. «Nada se perde, tudo se transforma» (Lavoisier): Não sei se a célebre frase está correta à escala do Universo, mas à escala da Biosfera, está corretíssima.

Os seres vivos não vivem para «acumular dinheiro». O seu equivalente do dinheiro, é a energia. Ela é vista como deve ser, como um meio para alcançar um fim. O fim (de qualquer ser vivo) é a manutenção em vida saudável do indivíduo e a sua reprodução.  Não existe obesidade em animais selvagens; mesmo quando têm abundância de alimento. Pelo contrário, os que vivem como animais de estimação na sociedade humana e estão sujeitos às «lógicas humanas», são cada vez mais obesos (ou seja, doentes), tal como os seus donos...

Por estranho que pareça, não há muitos sistemas teóricos que usem - na economia, sociologia, ou noutras ciências sociais - a modelização a partir do que foi observado na biologia dos indivíduos, dos grupos e dos ecossistemas. Historicamente, a economia e a sociologia desenvolveram-se e criaram seus paradigmas no século XIX, quando a ciência biológica estava ainda na sua infância. A compreensão do mundo vivo explodiu literalmente no século XX. Essa explosão prolonga-se no presente século. 

Eu sei que existem modelos que tentam mimetizar o processo da Evolução Biológica, mas também me parecem pobres, inadequados.  Talvez, porque são feitos por economistas, filósofos ou outros, que veem do exterior a Biologia e a Evolução. Não sei se a era da biotecnologia irá mudar o modo como «decisores» políticos, e outros, encaram as questões. Atualmente, vejo antes «uma invasão» de mentalidade tecnocrática, típica de economistas e engenheiros, a infestar os cérebros, nos domínios da biologia aplicada. Talvez seja uma fase transitória. Porém, a formação dos cientistas (sejam biólogos, sejam outros) é cada vez mais precocemente especializada, pelo que eles não têm uma visão panorâmica quer na Natureza, quer da sociedade humana. Para haver inversão de paradigma, seria preciso haver uma mudança radical, ao nível da formação académica.

Basicamente, o que a Natureza nos ensina, é muito simples de adotar porque temos o próprio modelo em funcionamento, literalmente, debaixo dos olhos. Quer o tomemos tal como ele é, quer o transformemos, para servir nossos propósitos, estamos somente a operar como «oportunistas», que se aproveitaram duma longuíssima cadeia de ensaios (desde que a vida começou, há mais de 4 biliões de anos!) e que colhem os frutos da sabedoria acumulada. Mas, afinal, é o mais natural e biológico a fazer. 

Aliás, pode dizer-se que foi graças a essa atitude, que uns frágeis símios das savanas, há uns milhões de anos, criaram a sua tecnologia, transmitiram esse saber técnico e construíram sociedades baseadas na troca, evoluindo até à humanidade de hoje!

Sinto-me impotente para explicar melhor o meu sentimento: Seria preciso haver, na nossa época, maior cooperação e menos competição. Não considero isto original, nem pretendo que o seja, mas tenho impressão de que esta visão da Natureza é desprezada pelos meus contemporâneos. Creio que houve momentos na História das Sociedades e Civilizações,  em que a Natureza foi muito mais respeitada, foi seguida como fonte do que é bom, justo e apropriado (a «Mãe-Natureza»). Quanto mais tarde a humanidade regressar ao paradigma natural, desde a sociologia, antropologia, psicologia, política, urbanismo, à economia, mais irá sofrer. Sofrimento absurdo, porque não há necessidade, nem vantagem, em continuar neste jogo sadomasoquista de destruição, de depredação e de domínio violento sobre a Natureza e os homens. 

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(*) Vejam-se os exemplos dados por Fressoz, na sua conferência, AQUI.


PS1: Pensar-se que o dinheiro é algo «neutro», que é um mero instrumento, que depende só das mãos em quem ele está, é um erro crasso. As pessoas que acreditam nisso, são demasiado ingénuas e podem ser exploradas pelos espertos sem escrúpulos. Quando às que detêm realmente as alavancas do dinheiro, desde a sua emissão, à circulação e à distribuição, sabem que tal não é assim. Dirão que é um instrumento neutro, para confundir e ocultar o facto (tão evidente, afinal) que «quem detém o poder de emissão da divisa de uma nação é quem detém o poder verdadeiro, ao ponto de lhe ser indiferente quem governa e quem faz as leis»... Este pensamento, atribuído a Mayer Amschel Rothschild, continua a ter plena atualidade. 

O sistema monetário «fiducitário» (ou seja, o dinheiro baseado «na confiança» que o público tenha nos que o emitem), é a base do poder da finança. Mas, para que outro sistema o venha substituir, não apenas tem de ser operacional nas condições atuais, mas deverá ter clara vantagem sobre o sistema que ele substitui. Creio que é esse o problema principal contemporâneo; a manutenção e evolução de uma civilização mundializada passam por aí.


sábado, 25 de setembro de 2021

A ARTE RUPESTRE DO PALEOLÍTICO QUESTIONA O HOMEM CONTEMPORÂNEO*

                 

Gostava de levantar alguns pontos de reflexão no que toca à arte parietal do paleolítico, as representações ou as figuras abstratas, que revelam algumas grutas e alguns locais a céu aberto. 

- Conta-se que dizia Picasso, ao sair da gruta de Lascaux, recém-descoberta: «nós não inventámos nada! Eles já sabiam tudo!». Com efeito, eles tinham um olhar atento e agudo, a mestria da forma e do movimento, a ciência dos pigmentos, sabiam jogar com o relevo e com sombra e luz …

O que me toca mais - e isto é uma reflexão inteiramente subjetiva - é a estranha sensação que tenho quando olho, observo estes testemunhos dos caçadores-recolectores de há dezenas, senão centenas de milhares de anos: é a sensação de que estas figuras me estão próximas, que estou vendo algo muito antigo, mas em simultâneo algo feito por pessoas como eu, como nós, com as mesmas características.

Quando digo pessoas como eu, como nós, refiro-me aos aspetos anatómicos. Se um desses humanos voltasse à vida e fosse arranjado e vestido como os contemporâneos, seria impossível de distingui-lo de nós, apenas talvez notáveis por uma complexão vigorosa, pelo corpo fortemente musculado. Mas, também me refiro aos aspetos mais sociais, psicológicos. Acredito que tivessem uma forte ligação ao seu grupo, que tivessem perpetuado desde incontáveis gerações narrativas semi-históricas, semi-fantásticas, que narravam e transmitiam, à luz da fogueira. Não podem ter sido senão excelentes observadores do mundo natural, pois as figuras de animais representadas têm um vigor e precisão anatómica que implicam uma visão muito apurada e um sentido mesmo do movimento dos referidos animais. A sua utilização dos volumes das paredes rochosas, a disposição e a forma como delineavam precisamente certas partes do contorno enquanto outras apenas eram esboçadas, ou até suprimidas, não podem ter sido fruto do acaso. São resultantes de um saber-fazer, duma técnica, dum conhecimento de como determinada imagem iria vibrar à luz das tochas, visto que muitas destas imagens parietais estão presentes em salas recuadas dos complexos cavernícolas, apenas podiam ser vistas à luz artificial, de tochas ou lamparinas. 

Não creio que seja por acaso que não se encontrem, ou sejam tão raras, representações humanas, anteriores ao neolítico, nesta arte parietal. É um facto que existem raras figuras humanas ou humanoides,  corpo de homem, com cabeça de cervo, ou com cabeça de leão das cavernas, porém estes exemplos, além de raros, estão sobretudo presentes em pequenas estatuetas de marfim ou de osso, que poderiam ser transportadas como amuletos. Porém, são menos raras as representações estilizadas do órgão sexual feminino, a vulva. Os órgãos masculinos nunca, que eu saiba, estão representados em separado. Conhece-se uma figura masculina, aparentemente tombada, com o pénis em ereção. Parece-me correto dizer-se, pelo menos à luz das descobertas feitas até hoje, que a figura humana está quase ausente do conjunto de arte parietal paleolítica. 

A este propósito, não deixa de ser intrigante que, em muitos exemplos de arte neolítica, nos primeiros povos praticando agricultura e pastorícia, as representações humanas, em monumentos, nos objetos de adorno, etc. são muito mais frequentes. 

Muita tinta deve ter corrido para «explicar» a visão do mundo dos homens paleolíticos. Muito do que se tem especulado, tem mais a ver com a projeção da mentalidade e preconceitos  dos seus autores, sobre o que seja o homem paleolítico, a evolução biológica humana, etc. do que uma tentativa séria, mesmo que especulativa, para ir ao encontro de um mistério, para perceber a realidade essencialmente interior dos humanos, que produziram aquelas expressões do psiquismo, que nós consideramos «arte». Eu tenho lembrança dos escritos de André Leroi-Gouhan, que foram tão importantes para minha formação pessoal, no início dos anos 70 (Le Geste et la Parole; La Mémoire et les Rythmes; Techniques et Langage...) 

                               
                        https://www.youtube.com/watch?v=UT3sN3Df2j4

Leroi-Gourhan e outros, podem estar datados, as conclusões a que chegaram devem ter sido profundamente revistas, algumas foram rejeitadas, mas a ciência é feita assim. Com a emissão de hipóteses, que num dado momento estão em conformidade com o conjunto de dados disponíveis sobre um assunto determinado, porém sempre a serem revistas, reelaboradas, rejeitadas e substituídas por outras hipóteses. O facto de que uma hipótese formulada cientificamente foi derrotada por um novo conjunto de dados, por descobertas que obrigam a modificar substancialmente e a impor-se um novo paradigma, não significa que essa hipótese anterior tenha sido em vão. Pelo contrário, é como o patamar, indispensável para se alcançar o andar acima.

Para além das teorias e as especulações mais ou menos imbuídas de elementos ideológicos, acho que podemos abordar as imagens, as representações deixadas pelo homem paleolítico, com respeito. Com o respeito decorrente de estarmos perante culturas, cuja trama mental e  universo simbólico, não nos poderão ser revelados jamais, mas cujos produtos estão inegavelmente presentes, brutalmente contemporâneos de nós todos. 

A arte é intemporal /A arte é fruto de uma época, de uma mentalidade, de uma cosmovisão

Este paradoxo é aparente, apenas, pois nada de essencialmente contraditório se encontra nas afirmações acima.

Confesso que tive um choque ao descobrir as gravuras rupestres do Foz-Côa, há mais de uma dúzia de anos. Deixaram-me uma impressão tão memorável como outros momentos cruciais da minha vida de 67 primaveras. O olhar que pousamos sobre a arte paleolítica é sobretudo sobre nós próprios: Assim como tu olhas para esta forma da expressão humana, assim eu sei em que cultura tu te encontras mergulhado, sei qual o substrato ideológico sobre o qual constróis os teus juízos estéticos. A história do modo como as diversas sociedades encararam o «homem primitivo», diz-nos muito mais sobre elas, do que sobre o dito homem. 

Darwin, na segunda metade do século XIX, tinha a modéstia de reconhecer que dispunha de pouquíssimos dados paleontológicos sobre os antecedentes da humanidade. Porém, escreveu dois volumes sobre a origem do homem, baseado numa biologia comparativa, essencialmente, resultando de observações, quer sobre o homem atual, quer sobre outras espécies de mamíferos. 

A descoberta, contemporânea de Darwin, do Homem de Neandertal, foi a primeira revelação concreta duma forma anterior ao Homo sapiens. Esta espécie é bastante recente, de facto, coexistiu com nossa espécie, por um período muito extenso de história comum. Foi, na época da sua descoberta, objeto da projeção de tudo o que - em finais do século XIX, princípio do século XX - se considerava como «primitivo, bruto»... Os que seguiram imediatamente Darwin não tinham mais que uma mão-cheia de achados, muito mal estudados. Alguns dos locais destes achados foram irremediavelmente destruídos. Porém, foram muito arrojados em avançar com teorias, caducas hoje em dia, que apenas têm interesse para a História das Ciências,  para se perceber como a antropologia está eivada de preconceitos, que se espalham em determinadas épocas e sociedades. 

Isto não significa que não se possa abordar a expressão estética no homem paleolítico. Significa antes, que se tem de abordar sob um prisma objetivista (como Leroi-Gourhan defendia), o que passa por um agudo sentido de autocrítica, uma modéstia e uma abertura enorme às opiniões alheias. Ao fim e ao cabo, isto remete para algo de muito filosófico, adequado a uma reflexão aprofundada sobre a humanidade.

A natureza humana, será imutável? Será ela resultante, mais ou menos direta, das condições de vida?  Fará sentido falar-se de «natureza humana», para além da óbvia continuidade biológica da sucessão de gerações, no tempo e da não menos óbvia continuidade de caraterísticas comuns, ao longo do espaço geográfico da distribuição da espécie?

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*NB 

O título pode parecer invertido, mas não: A verdade é que devemos questionar-nos aonde foi parar a humanidade do homem, este é o sentido primário da frase « A ARTE RUPESTRE DO PALEOLÍTICO QUESTIONA O HOMEM CONTEMPORÂNEO ». É, afinal de contas,  esta reflexão que irá desencadear outra, ou seja, qual a realidade do que chamam «progresso» ou «civilização»!

domingo, 12 de setembro de 2021

OS VÍRUS NA EVOLUÇÃO DA VIDA


 Uma conferência fascinante, sobre o  papel dos vírus enquanto protagonistas centrais da evolução biológica.

Conferência dada em 2010 no quadro do ciclo «A face escondida dos vírus» por Patrick Forterre, investigador em biologia do Instituto Pasteur.