terça-feira, 3 de junho de 2025
«A ORDEM A PARTIR DO CAOS» ?
sexta-feira, 2 de maio de 2025
PROPAGANDA 21 (Nº27): A GUERRA PELA NOSSA ATENÇÃO
sábado, 12 de abril de 2025
REFLEXÃO: METAMORFOSES INVOLUTIVAS
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
sexta-feira, 10 de maio de 2024
DISSIDÊNCIA
Quero fazer uma distinção entre várias posturas, pelo menos em termos práticos: O que é a dissidência? O que é o indiferentismo? O que é o militantismo/ativismo?
Refletindo em numerosas ocasiões sobre estes temas, chego à conclusão de que não se pode fazer uma abordagem quantitativa, mas apenas qualitativa. Ou seja, não serve de nada tentar medir o «grau de dissidência», etc.
A razão disto, é fácil de compreender se virmos que a atitude interior é que é o fator decisivo em relação à dissidência verdadeira: Trata-se de ter uma visão da realidade que nos cerca, uma «leitura» totalmente diferente da que nos pretende impor o poder dominante. Sabemos que o faz de maneira disfarçada: Mais do que por meios de coerção, sobretudo por meios de sedução.
Ora, estar em dissidência não significa - de modo nenhum - estar «alheado» da realidade. Quem está efetivamente alheado permanece passivo, aceitando a imagem do mundo que a educação, os media, o entorno social, querem que a pessoa adote: o indiferente não constrói outra visão da realidade. Ele deixa-se arrastar pela corrente, sem convicção mas, também, sem vontade própria.
O ativismo ou militantismo, são modos diferentes de comportamento exterior em relação ao «normal». Não se trata de «anormal», em termos psicossociológicos: Mas trata-se de exibir um dado comportamento, com frequência ou mesmo constante. O de alguém que é empurrado, por forças externas e internas, a exibir um certo comportamento. Trata-se de se mostrar, de colocar-se num palco imaginário, fantasiando que sua intervenção vai mudar o mundo, a sociedade, etc.
Se o indiferente não tem desejo, nem faz nada para elevar seu grau de consciência, o ativista (ou militante) faz ocultação - deliberada ou inconsciente - do seu vazio, da ausência de reflexão interior, o que o exclui, desde logo, da categoria da dissidência. Obedecer a algum chefe, mostrar fidelidade a um grupo, a uma ideologia, afirmar esta submissão de mentalmente escravizado, são as reais motivações de certos ativismos.
Por contraste, o dissidente pode renunciar, num determinado contexto preciso, a fazer algo sem - por isso - se ter transformado em indiferente: pode muito bem estar a aguardar o melhor momento, a juntar forças para que a ação seja realmente eficaz, etc.
O dissidente pode participar em ações de rua, em comícios, em greves, ou seja lá no que for: Não é o que ele faz, mas a motivação interior com que o faz que o distingue. Se o fizer, é porque está profundamente convicto de que isso corresponde ao que interiormente assume.
Não lhe interessa a ação pela ação, mas sim que, ao agir, o faça por motivos que assume como legítimos, necessários, eticamente imperativos. Além disso, agir não significa fazer uma coisa qualquer, de qualquer maneira: numa guerra global, como é também a guerra de classes, não esqueçamos que existe uma assimetria muito grande entre as forças materiais em presença. O que não significa que os mais fracos, os oprimidos, desbaratem suas escassas forças, antes pelo contrário! Então, o dissidente sabe reconhecer e distinguir, com toda a clareza, a ação fútil, da ação útil e mesmo, esta ação útil, da ação absolutamente necessária.
Sem querer simplificar demasiado as coisas, vemos que existem três categorias diferentes de atitudes interiores com a sua correspondência em comportamentos exteriores. Mas, não devemos esquecer-nos que qualquer pessoa pode ter passado de um tipo para outro (e vice-versa). A natureza não é estática e muito menos a natureza complexa e contraditória dos humanos.
O que nos faz únicos, o que nos faz imprevisíveis ou indeterminados, é a capacidade potencial de fazer, no sentido mais profundo do termo. Fazer algo com peso, com sentido, com estratégia: essa deveria ser a preocupação das pessoas realmente desejosas de transformação social.
terça-feira, 16 de janeiro de 2024
HUMANIDADE E O PARADOXO DA SUA EVOLUÇÃO
sábado, 25 de novembro de 2023
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE VIOLÊNCIA
quarta-feira, 20 de setembro de 2023
APONTAMENTOS SOBRE ARTE POÉTICA
Existem tantas formas de escrever poesia quantas as personalidades dos / das poetas que a escrevem.
A característica que considero fundamental, numa composição poética, é sua música. Música intrínseca, ou seja, o discurso moldado para produzir determinadas sonoridades e ritmos, com suas cadências e andamentos, tonalidades e orquestrações. No fundo, esta foi e continua a ser a matéria-prima poética, o ingrediente principal da magia que nos envolve e surpreende.
Os atributos acima citados, aplicam-se tanto a uma composição musical, como a uma composição poética. É costume classificar-se as duas em categorias diferentes, estão arrumadas em prateleiras separadas, uma das partituras, outra dos livros de poesia. Mas, afinal, são o mesmo, somente utilizando notações diferentes.
As pessoas estão demasiado imersas numa norma estreita, racionalizadora. Uma prova dessa estreiteza, é pretender sempre encontrar «o sentido» num poema. Uma peça musical instrumental, salvo quando classificada como «música descritiva», não suscita um tal afã nos auditores, de encontrar «sentido».
Outra maneira das pessoas passarem ao lado da essência duma obra de arte, seja ela musical, poética ou outra, é estarem interessadas, quase exclusivamente, nas circunstâncias em que o autor escreveu o poema /partitura, que significado essa composição teve na sua vida, etc. Tudo o que é exterior à obra propriamente dita, é esmiuçado como se fosse uma prova de erudição, de bom gosto, até!
Mas, as pessoas passam e a obra fica... Não me refiro, apenas, às que criaram a obra, mas também às outras, contemporâneas, que a aplaudiram ou ignoraram.
Por vezes, está-se perante um «nado-morto», quando a obra é medíocre. Na nossa época, existe muita arte morta, a arte dita comercial, epítome do mau gosto, que se vende bem. E não me estou a referir a determinado estilo, corrente, ou moda. Mas, no que há de mais baixo em qualquer género de música ou de literatura.
A facilidade em escrever e em obter visibilidade (sites na Internet, por ex.) para os escritos, acrescenta uma camada suplementar de ilusão: Porém, não muda em nada a essência do que é produzido, nem a qualidade intrínseca da obra, ou seu valor artístico e literário.
Esta multiplicação do «lixo» obriga a usar critérios muito mais exigentes. A cacofonia impede que se oiça a boa música, a boa poesia, a boa prosa.
A verbalização imatura, despudorada, dos sentimentos é uma pornografia. Distingue-se a pornografia de arte erótica, pelo facto daquela apelar somente ao instinto sexual, sem veicular qualquer forma de beleza.
A destruição das formas de arte, muito em particular da música e da poesia, tem sido levada a cabo pela multiplicação da mediocridade. A produção industrial do que vem intitulado como «música» ou «literatura», torna mais difícil a abordagem da arte e obriga a um elitismo, mesmo quando se defende posições antielitistas, na sociedade em geral.
Vive-se numa época em que muitos perderam as referências do passado e, portanto, deixou de haver possibilidade -para a imensa maioria - de construir um gosto pessoal, usando critérios estéticos próprios.
Atualmente, não existe um «cânon» nas artes, «vale tudo». Não seria necessário, no entanto, (re)instituir um cânon. Supondo que tal fosse possível, nem acharia desejável. O conhecimento das diversas escolas estéticas deveria fazer parte da formação, desde a infância. A educação do público seria o meio mais importante - a meu ver - de restaurar a qualidade nos domínios artísticos; infelizmente, vai-se no sentido exatamente oposto.
segunda-feira, 3 de abril de 2023
MENSAGEM PARA TI
sábado, 31 de dezembro de 2022
A CRISE DA ESQUERDA E PORQUE ISSO É GRAVE PARA TODOS
Neste fim de ano de 2022, gostaria de vos dar, senão uma perspetiva sorridente do ano que vem aí, pelo menos apresentar-vos alguma paisagem com uma nesga de céu azul de esperança. Mas, tal não será fácil de acontecer, pelo menos na transição de 2022 para 2023, apesar de que todos - subjetivamente - nos sentimos atraídos para o otimismo, nestas épocas.
É difícil e penoso explicar-vos a enorme revolta que sinto, quando penso na evolução que o mundo está a tomar. Mas, após esse pensamento inicial, pergunto-me: «como é que chegámos aqui?». Qual o fio condutor que nos leva - durante estes anos todos - a chegar com a quase fatalidade da tragédia, ao estado presente do mundo e das nossas sociedades?
As raízes do mal presente são tão fundas, que preciso recuar no tempo (pelo menos) até aos alvores das democracias. Contrariamente ao que muitos podem pensar, as democracias na Europa e América do Norte, não se instauraram de uma vez, como resultado de uma «revolução». Foi um processo lento, com períodos muito conturbados, é certo, mas com a persistente vontade dos povos a serem representados ao nível das estruturas de poder. Qualquer que seja a democracia que daí decorreu, quer mais «parlamentar», quer mais «presidencial», todas elas se basearam no princípio da representação.
O princípio da representação, como fundamento de um Estado democrático, eis o que nos soa a natural, a óbvio.
Porém, ao nível de grandes conjuntos populacionais, não existe nunca uma representação, sem que o processo ocorra através de representantes políticos eleitos. Então essa pedra-angular da representação (como diziam os revolucionários liberais americanos: não pode haver taxação sem representação) foi substituída por outro critério, muito menos transparente, que é o «princípio da eleição».
Ora, como tenho várias vezes escrito neste blog e noutros locais, a representação é inevitavelmente falseada pelos mecanismos eleitorais, que dão peso - implicitamente - a quem tem mais poder económico. Os magnates «gostam» de entregar milhares ou milhões a partidos e seus candidatos, não porque estes tenham a sua simpatia ideológica. Mas, antes porque assim os têm «na mão». Ou seja, o partido ou candidato que «morder a mão que lhe dá de comer», já sabe que, na próxima eleição, não terá subsídios (meios de corrupção) para conseguir atender às importantes e inevitáveis despesas eleitorais. Não será eleito, porque a campanha de propaganda de seu(s) adversário(s) estava melhor subsidiada, portanto, as campanhas rivais «convenceram» o eleitorado, em detrimento da campanha do «partido ingrato».
Perante este esquema de corrupção estrutural, não existe verdadeira democracia, pois a representação do dinheiro (quem tem mais dólares, mais euros, etc. e que os podem investir nas campanhas) é quem inevitavelmente ganha. Não são mesmo necessárias grandes fraudes, ao nível da votação ou da contagem dos votos. Os partidos que compõem o leque parlamentar e sobretudo, o leque dos elegíveis para cargos de governo, acabam sempre por ser partidos em consonância com o sistema, mesmo que alguns tenham posturas radicais de direita ou de esquerda.
O que se constata da história das democracias, é que não são poucos os casos históricos de partidos de esquerda que chegaram ao poder, para logo - ou passado pouco tempo - governarem, não em função da vontade dos seus eleitores (em geral, da classe trabalhadora e da burguesia mais modesta), mas dos interesses dos grandes capitalistas. Justificam estas viragens com o «interesse nacional», ou outra frase-feita, suficientemente vaga, para que não seja fácil demonstrar a falácia.
A partir de certo ponto, que começou no início do século vinte, deu-se a rendição da social-democracia; eram partidos inicialmente revolucionários, que pretendiam derrubar o capitalismo e instaurar o socialismo. Sucessivas ondas de (ditos) representantes do proletariado, nas democracias ditas liberais, tiveram o mesmo destino; iniciaram a sua atividade parlamentar como forças de «fora» do sistema, mas em pouco tempo integraram-se inteiramente na mecânica parlamentar. Quando vemos isto, podemos ficar desencorajados, pois é um mecanismo que não pode ser mudado facilmente; o mecanismo da cooptação é o que melhor garante a continuidade do status- quo.
Aquilo que se está a passar neste momento trágico na Ucrânia, é devido à rendição das diversas esquerdas, que jogaram o jogo do belicismo. Isto é válido em todos os países da Europa, incluindo claro, a Rússia. Mas, sobretudo, as forças mais poderosas da esquerda, as que se agrupam na chamada 2ª Internacional Socialista, que têm tido governos ou forças parlamentares de oposição fortes em praticamente todos os países da Europa ocidental, todas se alinharam com o belicismo: Marcharam todas integrando o desfile militar, a passo cadenciado, a mando dos que dominam, da oligarquia. Uma guerra, sobretudo destas dimensões (pan-europeia, na verdade), é sempre impulsionada pela ínfima minoria que explora e domina a maior parte da riqueza criada e que tem manobrado os governos, através do seu controlo das finanças, da média, da corrupção dos partidos, dos peritos e especialistas.
O dilema de uma força de esquerda parlamentar é, hoje, bastante claro:
- Ou se retira da fantochada eleitoral e a breve trecho desaparece, como força organizada ao nível nacional, reduzindo-se à dimensão de «seita»;
- Ou se mantém, mesmo que diga que o faz «criticamente», mas o seu objetivo acaba por ser a manutenção e expansão da representação parlamentar, com o objetivo de vir a ser convidada e participar num governo de centro-esquerda.
Não creio que possa existir uma «terceira» via, para partidos de esquerda, que escolheram a via de colaboração com o sistema. É esta a mensagem implícita que nos dão as suas estratégias e táticas, as suas tomadas de posição e declarações. Claro, não vão dizer ao eleitorado, largamente das classes mais pobres, «nós vamos continuar a política de centro-direita/centro esquerda» e «vocês devem votar em nós, porque nós somos os bons, os competentes, etc.» Claro que a sinceridade está fora do jogo do parlamentarismo. São enganadas muitas pessoas, convencidas de que a transição para o socialismo está ao virar da esquina, bastando para isso votar nos partidos que têm advogado o socialismo. É dentro desta alienação que opera toda a esquerda parlamentar, hoje em dia.
Não quero deixar a impressão de que tenho uma saída - de curto prazo - para este problema. Não a tenho e confesso-o sem hesitar.
Porém, a única forma de transformar a realidade política e social em profundidade é através da educação, é pela educação que as pessoas se tornam críticas, que são capazes de raciocinar e de estudar por si próprias, aprendendo não só aspetos «técnicos» dos assuntos, mas também as questões mais profundas. Uma educação verdadeira implica conhecimento, o estudo de livros e artigos sobre Filosofia, Política, Sociologia, Psicologia e História. É de constatar que a escola de hoje está muito longe de encorajar a independência de espírito. As pessoas que organizaram os curricula - desde curricula da escola primária até ao ensino superior- são pessoas da inteira confiança da classe dominante. A escola não é um corpo separado do resto da sociedade, mas é atravessado pelas contradições que nela se exprimem. Apesar disso, a educação, mesmo que não tenha sequer uma réstia de crítica ao poder dominante, é sempre perigosa para este, pois alguns filhos da classe oprimida, conseguem atingir um nível de compreensão aprofundada das matérias e destes, uns poucos, serão críticos da realidade social que se lhes depara.
Concedo que um partido pudesse ser o veículo dessa educação independente, não enfeudada a interesses de classe, que são os tipos de ensino dominantes nas escolas superiores e universidades, controladas por vários arautos da burguesia. Mas, a verdade é que este tipo de educação, muitas vezes, se limita a formar quadros do próprio partido. Assim, a educação popular, em todas as esferas da atividade não pode ser veiculada por qualquer partido, mesmo que este tenha as melhores intenções do mundo. Porém, organizações populares de base, não enfeudadas a nenhum partido, poderiam desempenhar um papel muito mais relevante do que o fazem hoje: Cooperativas, associações populares, associações de vizinhança, sindicatos (não controlados por nenhum partido) etc., podem ser um bom terreno para a emergência duma cultura não-elitista, que proporcione as mesmas oportunidades a todos .
Se o mundo sobreviver entretanto, talvez daqui a muitos anos haja uma transformação qualitativa nas sociedades e seja ultrapassada a etapa capitalista, em que nos encontramos. Parece-me afinal mais construtivo apontar para um objetivo longínquo mas realizável, do que insistir na fórmula vazia (corrompida e corruptora) do parlamentarismo. Os políticos «profissionais» de esquerda, que sabem isso melhor que ninguém, vivem do engano dos seus eleitores.
Não é verdade que a «esquerda», por o ser, tenha uma qualquer vantagem moral sobre as formações políticas de direita, ou de centro. A mitificação da esquerda, como superior moralmente às outras forças, traduz-se numa autoilusão, numa alucinação mesmo (nalguns casos) de militantes de base sinceros; enquanto os outros, sobretudo dos escalões de topo e intermédios, têm sobretudo uma enorme sede de poder e não são de modo nenhum sinceros.
Costumo dizer que a melhor maneira de nos corrigirmos, é olharmos para nós próprios e vermos realmente aquilo que nós fizemos de certo ou de errado. É uma autoanálise praticada pelos filósofos desde a antiguidade greco-romana, pelo menos. Também faz parte do ensinamento de muitas escolas filosóficas do Oriente: do Confucianismo, do Budismo Zen. Está igualmente presente no Cristianismo, no Judaísmo e no Alcorão. Em correntes leninistas e maoistas, encontramos apelos à «crítica e autocrítica»; encontramos semelhante apelo para a introspeção em filósofos influenciados pela psicanálise, ou em pós-modernistas. Podemos encontrar em muitas filosofias, não-europeias, este apelo; a própria «sabedoria das nações», repositório da experiência multissecular dos povos, vai nesse sentido. Seria de esperar que tal fosse praticado pelo povo de esquerda também, ou seja, pelos que não se deixaram corromper e que não têm a soberba de achar que o mundo todo está errado, que eles é que estão certos.
Um bom ano de lutas para 2023!
Uma ilustração de humor satírico de William Banzai
https://www.zerohedge.com/news/2022-12-30/stay-woke
quarta-feira, 31 de agosto de 2022
MITOLOGIAS (cap. X) : CASSANDRA, DA ILÍADA AOS NOSSOS DIAS
Quando falamos de Cassandra, estamos a falar de um mito, independentemente de ter existido, ou não, uma princesa em Troia com tal nome.
A história contemporânea não reconhece a Ilíada como um escrito histórico, que sobreviveu miraculosamente, primeiro oralmente, depois por escrito, relatando a guerra das cidades-estado do Peloponeso contra Troia. Porém, a constante utilização do longo poema pelas artes, poesia e literatura nos séculos após os supostos acontecimentos, tem criado a ilusão de que os episódios da obra atribuída a Homero seriam, senão historicamente exatos, pelo menos, verosímeis.
De facto, o que se sabe seguramente pela arqueologia, é que Troia existiu, mas que houve uma sucessão de cidades, umas sobre as outras. Além disso, não houve uma única guerra de Troia, mas sim várias. O relato de Homero (ou atribuído a Homero) poderia ter condensado, numa única narração, o longo período de guerras de Troia contra exércitos coligados das cidades-Estados gregas.
Podemos - portanto - considerar que Cassandra, tal como está descrita na Ilíada, releva do mito, mais do que da História mitificada.
Eu vejo a história de Cassandra (*) como simbólica dos comportamentos das sociedades, em relação às pessoas com maior visão, mais sábias, corajosas, e sabendo que estão a ir contra a corrente mas - ainda assim - dizendo a verdade, custe o que custar, face aos poderosos e ao povo.
A obra de Luís de Camões contém uma «atualização» de Cassandra, na figura do «Velho do Restelo». Este desempenha, no poema épico «Os Lusíadas», a mesma função que Cassandra, na Ilíada: Profetizar perigos e desgraças que ocorrerão a Portugal e aos portugueses, em consequência do lançamento das ambiciosas e aventureiras viagens marítimas, a partir dos finais do século XV.
Uma caraterística comum nas «Cassandras» que se nos deparam ao longo da História, é que seus vaticínios, embora pareçam sensatos quando são lidos após os acontecimentos, foram descartados como fantasias, sintomas de loucura, palavras vãs, pelos indivíduos que, contemporaneamente, ouviram ou leram tais profecias.
Figura: Aquando da queda de Troia, Cassandra, que se refugiara no templo de Atena, é violada e depois feita escrava.
No mito, Cassandra é abençoada com um dom, que consiste na capacidade de ver o futuro e, em simultâneo, é amaldiçoada com a impossibilidade de que suas palavras sejam tomadas a sério por seus concidadãos, incluindo a sua própria família.
Na nossa época, as «Cassandras» avisaram com detalhe e antecedência e, como na lenda, não foram ouvidas. No âmbito económico, mas com grande repercussão política, a chamada «crise das sub-prime» (2008), levou ao quase desmoronamento do castelo de cartas da economia financeirizada. Esta crise foi prevista - com antecedência - por mais do que um analista dos mercados, incluindo figuras célebres do mundo financeiro.
Mais recentemente, autores de várias escolas de pensamento económico, têm feito avisos muito enfáticos sobre a iminência de um colapso muito superior, em magnitude, ao de 2008. Os avisos são dirigidos ao poder financeiro nos bancos centrais e ministros da economia e finanças dos governos. Estes preocupantes alarmes têm sido também publicados na media, ao alcance do mais amplo público.
Estes avisos, como os das outras «Cassandras» da História, estão a ser completamente ignorados, por quase todos: Desde pequenos especuladores, a gestores de Wall Street e doutros centros financeiros, a políticos - tanto no poder, como na oposição. Para mim, esta situação não só ilustra a enorme miopia dos poderes, especialmente após o quase colapso de 2008, como parece ser uma enésima atualização da história de Cassandra da Ilíada.
As multidões costumam ignorar, escarnecer, ou mesmo, violentamente atentar contra pessoas que vêm contrariar preconceitos e medos obsessivos. A fúria das multidões é estimulada por ditadores e demagogos, que assim defletem a ira e a frustração popular para que, perante as consequências de suas decisões aventureiras e fatais, nunca lhes sejam atribuídas responsabilidades, mas ao «bode expiatório».
As pessoas com lucidez e juízo, nestes tempos conturbados, devem ser discretas. Não se devem expor, pois seriam «arrastadas na lama», ou ostracizadas, no mínimo. Devem preservar-se, pois de nada serve tentar convencer uma multidão fanatizada ou hipnotizda.
Estas tentativas vãs apenas irão exacerbar a vontade de vingança das massas enganadas, que julgam que «o mensageiro das desgraças» é o causador das mesmas. O mensageiro é castigado em vez do tirano, que afinal de contas, é o causador das más notícias trazidas pelo primeiro.
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