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terça-feira, 1 de julho de 2025

SOBRE RELIGIÃO



 Tenho verificado que a humanidade «precisa» de religião. Mesmo os regimes oficialmente ateus, são portadores de uma forma de religião, de culto. 

Mas, aqui irei falar no sentido tradicional de religião: O culto, a adoração de Deus, ou Deuses. 

As religiões são, por regra, crenças codificadas em livros, códices, corpus de doutrina, que se perpetuam como cânon, ao qual se somam ou se agregam textos explicativos e toda uma iconografia, mais ou menos simbólica, mais ou menos descritiva, da forma como os fiéis se identificam aos valores morais, éticos, filosóficos implícitos das supra-citadas doutrinas. 

Para mim, como habitante do Oeste europeu, a religião cristã teve sempre uma influência decisiva, quer na forma como construí os valores morais, quer como apreciava as expressões da arte. As formas sacras efetivamente predominavam, apesar da laicização da arte, ocorrida sobretudo desde o século XIX. 

Isto não significa que tenha vivido numa atmosfera imbuída de religião. A minha religião, se assim se pode chamar, foi sempre a veneração das obras, humanas, mormente as suas expressões cimeiras, na música, na pintura, escultura e arquitetura,  que, no meu universo cultural, eram muitas vezes inspiradas pelo cristianismo. 

A minha curiosidade levou-me a aprofundar, tanto os aspectos formais da arte sacra, como seus conteúdos implícitos ou explícitos. Assim, embora nascido em «berço ateu», fui sempre um «cristão cultural», durante boa parte da minha vida, sem o saber.

O fenómeno religioso é de importância decisiva em relação à compreensão da História, da Sociologia e mesmo, da Psicologia. As construções em torno das suas doutrinas são uma parte importante da própria vida intelectual dos séculos passados. Lembro que há uns três ou mais séculos, as pessoas davam a vida, sacrificavam-se pela sua fé, sem questionar essa mesma fé. 

Os humanos de há pouco tempo atrás, tinham ainda guardado esse sentido do sagrado, que não era questionável, fazia parte de seu ser assim como de toda a sua vivência pessoal, da sua família, da sua nação. O questionamento da religião surge a partir de meados do século XVII, nalguns países europeus, mormente sacudidos recentemente pelas guerras de religião e onde balbuciavam os primeiros avanços do método científico.

A oposição entre religião e ciência tornou-se, justamente nestas sociedades da Europa ocidental, uma questão que apaixonou os espíritos, em particular os mais filosóficos, que vieram a constituir o chamado Iluminismo. Mas, este não trazia verdadeira resposta aos dilemas que ele próprio levantara: o seu paradigma mecânico do Universo era demasiado fruste, podia facilmente ser visto como simplista e demasiado afastado do real. 

As crispações dos dogmas, por um lado e das visões menos convencionais da religião, por outro eram conducentes a posturas  de intolerância. Nessa altura, abundavam os "açaimes" e as "viseiras" do espírito. No século XIX seguinte, rico em polémicas políticas e filosóficas, além de ser palco de muitas transformações políticas e sociais, houve realmente lugar para diversas correntes, como sejam as liberais, anarquistas, comunistas, cooperativistas, nacionalistas, etc, etc, que agregavam à  sua doutrina política uma explicação totalizante da sociedade e do Universo. Em suma: eram sistemas que pretendiam abarcar, não apenas a totalidade das sociedades humanas, como da Natureza. 

As Leis universais que regiam o Cosmos pareciam estar firmemente fundamentadas na observação e na experimentação. Surgiu então um novo tipo de religião, o «cientismo», o qual pretendia reduzir tudo a movimentos mecânicos, desde os indivíduos e o funcionamento dos seus órgãos, até à alma, descrita como sendo uma função eletroquímica complexa do cérebro. Neste paradigma de cientismo ou de dogmatização pseudo-científica, evoluiam muitos dos espíritos mais inclinados para a ciência, nos séculos XIX, XX e mesmo XXI. 

Este cientismo esteve muito presente no  que, nesse tempo, chamavam de «materialismo», cobrindo «do véu da ciência» suas congeminações e teorias mecanicistas. Desgraçadamente, milhões de humanos sofreram uma lavagem ao cérebro, com as ideologias do «materialismo dialético» e «materialismo histórico». Poucos foram as pessoas que se emanciparam dessa doutrinação, ainda menos as que ousaram publicamente pôr em causa este sistema ideológico.

A grande tragédia, quando observamos as coisas do lado dos oprimidos, é que os opressores têm, praticamente, todos os meios de exercer o poder: Assim, os que têm uma visão alternativa, ou a mantêm em segredo ou terão  de sofrer, em consequência de terem desafiado os poderosos.

Na transição para o século XXI, face a uma série de crises e de mudanças em grande escala, algumas ainda em curso no presente, houve oportunidade para afirmar o que antes seriam consideradas heresias, em relação ao establishment. A crise dos sistemas políticos, económicos e civilizacionais, vai sempre de par com crises em termos espirituais, das visões do mundo e dos valores... Neste aspecto, a crise presente não difere, de maneira significativa, de múltiplas outras crises conhecidas na História da Humanidade. 

Com um renovo da espiritualidade, abre-se um leque muito mais vasto, que o das religiões instituídas: Permite a avaliação não-etnocêntrica, de complexos religioso-espirituais diferentes do nosso. Não se deve confundir esta constatação com  relativismo moral ou sincretismo. Tem a ver com a constatação da existência de constantes antropológicas, numa abortagem respeitadora das outras civilizações, ao contrário da etnologia do passado, imbuída de preconceitos coloniais e racistas.

Tudo isto permite que coloquemos a questão central do papel da religião, da noção do sagrado, do reconhecimento da nossa inserção no Universo, que percebemos e que nos ultrapassa. No plano sociológico, nota-se que todas as sociedades têm uma ou outra forma de religião, sendo falsas as narrativas que apresentam tal ou tal povo remoto, como «sem religião»: A visão eurocêntrica e colonial dos antropólogos projetou-se nos povos que vivem (viviam) em simbiose com o ambiente natural. As suas lendas e crenças particulares adotavam uma religião, que não se definia através de objectos sagrados, causando a confusão de etnólogos apressados, ao anunciar uma «sociedade sem religião».

O empobrecimento da espiritualidade, que se traduz na valoração dos aspectos materiais sobre os espirituais, na adoração da riqueza e do poder como metas, para as quais tendem quase todas as pessoas, já para não falar da ausência da ética e de sentido do dever, em favor do princípio do prazer... São sintomas de decadência, de empobrecimento intelectual e espiritual. Dificilmente, veremos uma mutação  civilizacional  que restaure o equilíbrio entre aspectos espirituais e materiais, nas sociedades globalizadas do século XXI.

Se a minha visão do presente estiver correta, tenho de colocar como futuro mais provável, a decadência continuada, a involução, que poderá arrastar-se durante muitos decénios. Muito menos provável é que sobressaltos políticos nos venham trazer alguma modificação substancial neste aspecto. Digo isto, porque somente uma revolução do tipo anti-autoritária e libertária poderia abrir novos caminhos à aventura humana, e não consigo imaginar como uma tal revolução conseguisse brotar e perdurar, no contexto atual. Nenhuma revolução autoritária do passado, nos trouxe, de facto, uma subida do nível espiritual nas massas.


domingo, 25 de maio de 2025

OS MITOS DO PASSADO E DO PRESENTE

 Os mitos atravessam as épocas,  rejuvenescidos pelas narrativas que os sustentam. São uma forma de criação coletiva, que podem ser registados por este ou aquele autor, o qual vai inspirar-se e justificar-se com a respetiva narrativa  original.

Se são  produtos de uma cultura, de uma sociedade, como é possível que eles transcendam as épocas e geografias para se elevarem a mitos globais da humanidade?

- Esta questão pode receber respostas divergentes, mas que não se excluem mutuamente:

A UNIVERSALIDADE resulta de constantes culturais profundas, ou seja, expressões  dos arquétipos profundos da psique humana, existentes nas mais diversas culturas e épocas. 

A expansão dos mitos deriva da ASSIMILAÇÃO  DE MODELO CULTURAL, que é trazido para novos territórios e respectivos povos, por conquista seguida de assimilação cultural ou por absorção  da cultura tecnológica mais avançada pela menos avançada. 

No presente, tal como em relação  a outros aspetos das civilizações (como sejam as religiões), os mitos constituintes das diversas etnias podem estar esquecidos do grande público nalgumas regiões, porém nas zonas que não estão tomadas pela cultura "ocidentalizada", as narrativas mitológicas mantêm- se vivas. 

Quanto às outras sociedades, as industralizadas, que são hoje a grande maioria, estas experimentam uma profusão de mitos análogos ou sucedâneos  dos tradicionais:  Os ídolos do desporto e da cultura "pop", nestes países,  desempenham o mesmo papel de identificadores  tribais e de coesão de grupo que as narrativas míticas de origens nas sociedades agrárias, ou nas de caçadores-recoletores.

Porquê estudar os mitos, em especial os mitos que são forjados e cuja narrativa é reforçada na media? Porque é com narrativas, em especial as que são emitidas pelos poderes, que é justificado para as «massas», o que estes mesmos poderes ordenam. 

Ora nas narrativas correntes surgem, explicitamente ou não, as dicotomias «civilizado/bárbaro», «progressivo/ primitivo», e outras. 

Estas expressões estão omnipresentes desde os textos de há dois ou três séculos, que pretendiam legitimar a «acção civilizadora» do Ocidente, ou seja, dos poderes coloniais. Uma grande parte da antropologia, no século XIX, assimilou estas «evidências», naturalizando e dando assim um estatuto «nobre», «civilizacional» aos empreendimentos brutais de pilhagem e destruição de culturas não-europeias, incluindo os vestígios de diversas civilizações milenares. Para «legitimar» esta colonização, era preciso que o «não-europeu», de uma «raça» diferente da «caucasiana», fosse tipificado como «inferior», «não civilizado», devendo ser tomado a cargo «pelo homem branco, do mesmo modo como um adulto se responsabiliza por uma criança»...

Logo se vê que o mito da superioridade do «homem branco» foi parte integrante da mentalidade colonial e legitimador, «em nome do progresso», das hecatombes, os crimes contra a humanidade, os genocídios e os etnocídios.

Que esta mentalidade colonial ainda esteja profundamente enraízada no substrato ideológico, é dolorosamente patente hoje. Veja-se a indiferença (quando não a aprovação entusiasta) por parte de uma parte do público dito «civilizado», perante o martirizado povo da Palestina, sujeito a genocídio, empurrado para fora do seu território. 

A sua natural resistência, por contraste, é vista como «terrorismo», mas não são assim classificados os atos terroristas, em grande número e constantes, cometidos, por ordem  do governo, pelas forças armadas de Israel. 

Note-se que esta situação está imbrincada com o maior falhanço histórico da ONU, que avançou com uma «solução» ao problema de dar uma pátria aos judeus, à custa de desapossar o povo palestiniano de suas terras e aceitando que estes estivessem sujeitos a uma situação colonial, quer nas zonas designadas como territórios palestinianos (Faixa de Gaza, Território da Cis-Jordânia e Jerusalém- Leste), quer nas zonas territoriais israelitas.

Aqui, não é meu objetivo analisar a complexa situação do conflito Israelo-Palestiniano, mas pretendo ilustrar até que ponto as questões de «raça», de nacionalidade, do estatuto legal, da legalidade internacional, se interconectam entre si e com o não dito, mantido na penumbra. Nos países  «ocidentais», a herança da mentalidade colonial não se extinguiu. Permanece o mito da superioridade civilizacional dos brancos, quando não mesmo da «superioridade» da chamada raça branca ou caucasóide. 

É na monstruosidade disto, que radica o absurdo de se permitir (contra todo o direito e legalidade internacional),  que um povo colonize outro, que o subjugue, o expolie das suas terras, das suas casas, da sua vida... E quem dá a cobertura? - Os tais «civilizados» Estados, que apoiam com armamentos e ao nível diplomático a campanha sionista de extremínio do povo mártir palestiniano. 

Na nossa época, uma série de mitos foram construídos: a ONU, a legalidade internacional, os Estados modernos defensores dos direitos humanos, o direito dos povos à auto-determinação... Tudo isto desaparece, agora, nas situações em que os grandes poderes favorecem uma posição ou outra. Não agem segundo os princípios do Direito ou Legalidade Internacional, mas recobrem suas ações e omissões com narrativas ocas, em contradição direta com os seus atos.