TRADUÇÃO POR
MANUEL BAPTISTA, PARA O OBSERVATÓRIO DA GUERRA E MILITARISMO
No seio da
vasta teia burocrática do Pentágono existe um grupo encarregue de monitorizar o
estado geral do complexo militar-industrial e a sua permanente capacidade para
satisfazer as exigências da estratégia nacional de defesa. A secção para aquisição e a secção para política industrial
gastam cerca de $100.000, por ano, para produzir um Relatório Anual para o
Congresso. Ele está disponível para consulta pela generalidade do
público. Está mesmo disponível para o público em geral na
Rússia e os peritos russos têm satisfeito a sua curiosidade mergulhando nele.
De facto, ele
encheu-os de optimismo. Note-se, a Rússia quer paz, mas os EUA parecem
querer a guerra e continuam a fazer gestos ameaçadores contra uma longa lista
de países que recusam seguir a sua escolha, ou simplesmente não partilham seus
«valores universais». Mas, agora, acontece que proferir ameaças (e
sanções económicas, cada vez mais ineficazes) é praticamente tudo o que os EUA
consegue realizar, apesar dos níveis absolutamente astronómicos de despesa com
a defesa.
Vejamos
com o que se parece o complexo militar-industrial dos EUA, visto sob lentes
russas.
É importante
notar que os autores do referido relatório não estavam a tentar convencer os
legisladores a financiar um projecto específico. Isto torna-o mais
valioso do que muitas outras fontes, para as quais o objectivo dos autores é
desencadear a generosidade das verbas federais e que -portanto –
tendem a ser pouco rigorosos nos factos, mas abundantes na propaganda. Sem
dúvida, que a política continua desempenhando um papel, na forma como vários
detalhes são tratados, mas parece limitado o número de questões incómodas, que
os autores descartaram para compor o quadro, na análise da situação e na
formulação de recomendações.
O que mais
chocou os analistas russos foi o facto destes peritos avaliarem o complexo
militar-industrial dos EUA numa perspectiva de …mercado! Na realidade, o complexo militar-industrial russo é
exclusiva propriedade do governo russo e trabalha somente em seu interesse:
qualquer outra coisa seria considerada traição. Mas o complexo
militar-industrial dos EUA é avaliado com base na sua…rentabilidade! De
acordo com o referido grupo de trabalho do Pentágono, tem de – não só fornecer
produtos para os militares – mas, igualmente, adquirir uma fatia de mercado no
comércio global de armamento e, talvez o mais importante, maximizar o lucro dos
investidores privados. Neste aspecto, tem-se saído bem: para 2017, a média da
margem de lucro antes de impostos, dos fabricantes de armas dos EUA, variou
entre 15 e 17%. Nalguns casos – a Transdigm, por exemplo – conseguiram obter
nada menos de 42 – 45%. “Ah!” exclamaram os peritos russos, “descobrimos o
problema! Os americanos legalizaram a agiotagem
de guerra!” (Esta, a propósito, é apenas uma das muitas formas da
chamada corrupção sistémica, que floresce nos EUA.)
Seria normal
que cada empresa contratante na defesa, simplesmente tomasse o seu lucro a
partir do preço final mas, em vez disso, há toda uma cadeia alimentar
de contratantes, os quais – legalmente – são obrigados a maximizar os lucros
dos seus accionistas. Mais de 28000 companhias estão envolvidas, mas
os contratantes de defesa de primeira linha, para os quais o Pentágono dirige
2/3 das encomendas, consistem apenas em Seis Grandes: Lockheed Martin, Northrop
Grumman, Raytheon, General Dynmics, BAE Systems and Boeing. Todos as outras
empresas estão organizadas numa pirâmide de sub-contratantes com cinco níveis
hierárquicos e cada uma delas faz por sugar, o melhor possível, os níveis acima
deles.
A insistência
nos métodos de mercado e a exigência de maximização da rentabilidade, é um
processo incompatível com a despesa na defesa, a um nível muito elementar; a
despesa com defesa é intermitente e cíclica, com longos períodos de baixos
níveis de encomendas importantes. Isto obrigou os Seis Grandes a
fazerem cortes nos departamentos de produção de defesa, para aumentar os
dirigidos à produção civil. Igualmente, apesar do tamanho enorme
do orçamento de defesa dos EUA, este é finito (e havendo apenas um planeta para
fazer ir pelos ares), tal como também o é o mercado global de armamento. Visto
que, numa economia de mercado, uma empresa é colocada perante o dilema de
crescer ou ser comprada, isto precipitou imensas fusões e aquisições,
resultando o presente mercado concentrado em alto grau, onde existem uns poucos
actores principais, em cada domínio.
Em resultado
disto, na maioria dos domínios, como discutem os autores nos 17 domínios – a
marinha de guerra, as forças terrestres, a força aérea, a electrónica, o armamento
nuclear, a tecnologia espacial, etc -, pelo menos num terço das vezes,
o Pentágono tem a escolha de exactamente um contratante, para um dado contrato,
fazendo com que a qualidade e o tempo de entrega sofram por isso e resultando
em subida dos preços.
Num certo
número de casos, apesar do poderio industrial e financeiro, o Pentágono
encontrou problemas insolúveis. Concretamente, acontece que os EUA tem
apenas um estaleiro com capacidade para produzir porta-aviões nucleares (é
apenas um, e o navio porta-aviões Gerald Ford não é propriamente um sucesso). O
referido estaleiro é o «Northrop Grumman Newport News Shipbuilding» em Newport,
Virginia. Em teoria, poderia construir três navios em paralelo, mas dois dos
lugares estão sempre ocupados pelos porta-aviões existentes, que precisam de
manutenção. Isto não é caso único: o número dos estaleiros com capacidade de
construção de submarinos nucleares, de contratorpedeiros e de outros tipos de
navios, é também exactamente um. Portanto, em caso de conflito prolongado com
um adversário a sério, em que uma proporção importante da armada dos EUA tenha
sido afundada, há impossibilidade de substituir os navios afundados, num espaço
de tempo razoável.
A situação é –
de algum modo – melhor quanto às fábricas de aviões. As fábricas existentes podem produzir 40 aviões por mês e, se
necessário, conseguiriam produzir 130. Por outro lado, a situação com tanques e
artilharia é absolutamente deplorável. De acordo com o referido relatório, os
EUA perderam completamente a capacidade de construir a nova geração de tanques.
Já nem é uma questão de faltarem fábricas e equipamentos; os EUA vai na segunda
geração de engenheiros que nunca efectuou o design de tanques e a que o fez,
está prestes a reformar-se. Os da nova geração, que os substituem, não têm
ninguém de quem aprender e só sabem de tanques pelos filmes e jogos vídeo.
Quanto à artilharia, resta apenas uma linha de produção nos EUA que pode
produzir canhões com diâmetro maior que 40 mm e esta seria incapaz de activar a
produção em caso de guerra. A empresa contratante recusa-se a expandir a
produção, a não ser que o Pentágono garanta – pelo menos – 45 % de escoamento,
visto que senão, será não rentável.
A situação é
semelhante para uma longa lista de áreas; é melhor para tecnologias com uso
duplo, que podem ser obtidas a partir de companhias de produtos civis e
significativamente pior para as altamente especializadas. O custo unitário para
cada tipo de equipamento militar tem subido ano após ano, enquanto os volumes
adquiridos são cada vez mais baixos – por vezes atingem zero. Nos últimos 15
anos, os EUA não adquiriu um único novo tanque. Continuam a modernizar os
modelos antigos, mas a um ritmo de não mais de 100 unidades, por ano.
Devido a todas
estas tendências, a indústria de defesa continua a perder, não só engenheiros
especializados, como o pessoal qualificado para executar o trabalho. Os
peritos do estudo citado estimam que o défice em máquinas-ferramentas atingiu
os 27%. No passado quarto de século, os EUA deixaram de fabricar uma vasta
variedade de equipamento para manufactura. Somente metade desses instrumentos
podem ser importados de nações aliadas ou amigas; para o restante, há apenas
uma fonte, a China. Analisaram as cadeias de abastecimento de 600 dos
mais importantes tipos de armas e encontraram que um terço destas têm falhas,
enquanto outro terço está completamente inviável. Na pirâmide de cinco
patamares dos sub-contratantes do Pentágono, as manufacturas de componentes
estão quase sempre relegadas para o terço inferior e as notícias de que
terminaram com certa produção ou mesmo que encerraram totalmente, tendem a
ficar submersas no pântano burocrático do Pentágono.
O
resultado final de tudo isto, é que o Pentágono continua a ser, em teoria,
capaz de efectuar pequenos incrementos na produção de armas para compensar as
perdas correntes em conflitos localizados, de baixa intensidade, num contexto
geral de paz, mas mesmo agora, isto está no extremo limite das suas
capacidades. No caso de um conflito a sério, com uma nação bem armada, aquilo
em que será capaz de dispor será apenas e somente o material e partes
sobresselentes dos stocks, que ficarão rapidamente esgotados.
Uma situação
análoga prevalece na área dos elementos de terras raras e de outras
matérias-primas para produzir componentes electrónicas. De momento, as reservas acumuladas destas matérias, necessárias
para produzir mísseis e tecnologia espacial – nomeadamente satélites – é
suficiente para os próximos cinco anos, à taxa de uso corrente.
O relatório
enfatiza especialmente a situação trágica na área de armas nucleares. Quase
toda a tecnologia para comunicações, escolha de alvos, cálculo de trajectórias
e armamento das cabeças dos mísseis intercontinentais (ICBM) foi desenvolvida
nos anos 1960 e 70. Até hoje, os dados são carregados a partir de disquetes de
5 polegadas, que pararam de ser produzidas em massa há 15 anos. Não há
substituição para elas e as pessoas que fizeram o seu design estão já «a fazer
tijolo». A opção escolhida tem sido comprar pequenas quantidades produzidas, de
todos os consumíveis, a preços extravagantes, e desenvolver a partir do zero a
completa tríade de componentes estratégicos baseados em terra, a um custo de 3
orçamentos anuais do Pentágono.
Existe um
grande número de problemas específicos em cada área, descrita no relatório, mas
a mais importante é a perda de competência entre o pessoal técnico de
engenharia devido ao baixo nível de encomendas para peças suplentes ou para o
desenvolvimento de novos produtos. A
situação é tal que novos e promissores desenvolvimentos saídos de centros de
investigação como o DARPA não podem ser realizados face ao presente conjunto de
competências técnicas. Para um certo número de especializações-chave, existem
menos de três dúzias de especialistas treinados, com experiência.
Esta situação
deverá continuar a deteriorar-se, com uma diminuição de 11-16%, na próxima
década, do pessoal empregado no sector da defesa, principalmente pela ausência
de jovens candidatos qualificados, para substituir os que estão a reformar-se.
Um exemplo concreto: o trabalho de desenvolvimento do F-35 está próximo do fim
e não será necessário desenvolver um avião de combate até 2035-2040; no
intervalo, o pessoal envolvido no seu desenvolvimento estará sub-ocupado e o
seu nível de competência irá deteriorar-se.
Embora, de
momento, os EUA continuem à cabeça das despesas mundiais com defesa ($610
milhares de milhões de um total de $1.7 biliões em 2017, o que perfaz cerca de
36% de todas as despesas militares no planeta) a economia dos EUA já não
tem capacidade para suportar a pirâmide tecnológica completa, mesmo num momento
de relativa paz e prosperidade. No papel, os EUA continuam a aparentar
ser os líderes da tecnologia militar, mas as fundações da sua supremacia
militar foram erodidas. Os resultados disto são plenamente visíveis:
- Os EUA ameaçaram a Coreia do Norte com
acção militar mas, depois, foram forçados a recuar, porque não tinham
capacidade de combater numa guerra contra ela.
- Os EUA ameaçaram o Irão com acção
militar, mas foram forçados a recuar, porque não tinham capacidade de
combater numa guerra contra ele.
- OS EUA perderam a guerra do Afeganistão
contra os Talibãs e quando o conflito mais longo da história dos EUA
estiver finalmente terminado, a situação política reverterá ao «status quo
ante», com os Talibãs no governo e os campos de treino de terroristas
islamitas de novo operacionais.
- Os agentes dos EUA (sobretudo Arábia
Saudita), combatendo no Iémene causaram um desastre humanitário, mas foram
incapazes de vencer militarmente.
- As acções dos EUA na Síria levaram a uma
consolidação do poder e do território do governo sírio e a uma nova
posição de domínio regional por parte da Rússia, do Irão e da Turquia.
- A segunda maior potência militar da
NATO, a Turquia, comprou o sistema de defesa S-400, russo. A alternativa
dos EUA é o sistema Patriot, que custa o dobro do preço e não funciona
realmente.
Isto tudo
aponta para o facto de que os EUA já não possuem um poderio militar propriamente
dito. Isto é uma boa notícia pelas,
pelo menos, quatro razões seguintes.
Primeiro, os
EUA são de longe a mais belicosa nação sobre a Terra, tendo invadido uma data de nações e continuando a ocupar muitas
destas. O facto de que já não possa lutar, significa que as oportunidades para
a paz estão destinadas a aumentar.
Segundo, assim
que entrar na consciência geral que o Pentágono é, nada mais que uma sanita
gigante, por onde se escoam os fundos públicos, estes fundos serão
cortados e a população dos EUA poderá
ver as somas que correntemente engordam os agiotas da guerra serem gastas em
algumas estradas e pontes, embora seja mais provável que vá para pagar os juros
da dívida federal (enquanto houver liquidez).
Terceiro, os
políticos dos EUA vão perder a capacidade de manter a cidadania num estado
permanente de ansiedade sobre a «segurança nacional». De facto, os EUA possuem uma «segurança natural» – dois oceanos
– e não precisam muito de qualquer defesa nacional (desde que se mantenham
dentro das suas fronteiras próprias e não tentem causar distúrbios nos outros).
Os canadianos não irão invadir e embora a fronteira do sul precise de alguma
vigilância, esta pode ser assegurada a nível dos Estados e condados, por alguns
tipos que usam armas e munições, que já estão de ambas equipados. Logo que o
logro da «defesa nacional» a 1,7 biliões de dólares deixar de pesar nos seus
ombros, os cidadãos comuns poderão trabalhar menos horas, ter maiores lazeres e
sentirem-se menos agressivos, ansiosos, deprimidos e paranóicos.
Finalmente,
mas não menos importante, será maravilhoso ver os agiotas da guerra reduzidos a
esgravatar no ferro-velho para obterem
uns trocos. Tudo o que os militares têm sido capazes de produzir desde há longo
tempo é miséria, aquilo que se designa tecnicamente por «desastre humanitário».
Olhem para o rescaldo da intervenção na Sérvia/Kosovo ou no Iémene, e o que
verão? Quer para os seus habitantes, quer para cidadãos dos EUA que perderam
parentes seus na guerra, que tiveram de ser amputados, ou que sofrem de PSTD
(Síndroma de Stress Pós-Traumático), ou de traumatismos cerebrais.
Seria apenas
justiça que a miséria provocada fosse bater à porta daqueles que a causaram e
se aproveitaram dela.