sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

A CORRIDA AO OURO AINDA AGORA COMEÇOU

 


Seria difícil alguém contradizer Lena Petrova. Ela fundamenta rigorosamente cada afirmação que faz. Independentemente do «recado publicitário» no fim do vídeo,  são apresentados vários indicadores por Lena Petrova. O sentido destes indicadores é perfeitamente claro. 

A corrida ao ouro é impulsionada por bancos centrais, sem dúvida a China e outros países do oriente, ou ligados aos BRICS, mas também do campo ocidental, como é o caso da Polónia. 

Os bancos centrais compram ouro em quantidades tais, que o ouro minerado, anualmente, não chega: Isto significa que o ouro guardado em cofres, está a ser descarregado no mercado por uns e adquirido por outros. Penso que os primeiros são -sobretudo- os bancos comerciais do Ocidente. Estes têm de fazer face à subida rápida dos juros das obrigações e de cobrir suas perdas em apostas feitas nos mercados de derivados. Estes mercados são dos mais opacos em toda a finança, pois suas operações executam-se, geralmente, sem serem incluídas nos balanços das entidades bancárias. 

As grandes fortunas privadas e os "hedge funds", estão - pelo contrário - a imitar os bancos centrais orientais. Não se pode querer sinal mais claro de estarmos próximo dum ponto de inflexão no sistema monetário internacional. 

O que me parece mais provável, é os bancos centrais ocidentais «levarem ao tapete» suas respetivas divisas e tentarem, depois ou em paralelo, o «passe de mágica», da introdução das divisas digitais emitidas pelos bancos centrais (CBDC). 

Isto não vai resolver nada: Quanto muito, vai dar a ilusão ao público não-esclarecido, de que se entrou num novo paradigma. Na realidade, estão a camuflar as dívidas incorridas pelos Estados e outras entidades. O incumprimento destas dívidas e diversas obrigações irá sobretudo impactar os pobres e as classes médias. A classe financeira e os Estados entrarão em incumprimento, mas farão o jogo de apagar ou baralhar as pistas. 

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PS1 (15/12/2023): Dentro de pouco tempo, vamos ver a FED anunciar a inversão da política de subida das taxas de juro - ou seja - de restrição do crédito. Irá iniciar novo ciclo de expansão monetária, ou «Quantitative Easing»: A retoma da impressão monetária irá aumentar a pressão inflacionista. 

Em ambos os casos (restrição ou expansão do crédito), a economia real irá sofrer, com terríveis consequências para todos nós (ver AQUI , ou AQUI , entre vários outros artigos publicados).

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

DECADÊNCIA E MORTE DA «CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL»

 Quando as pessoas permitem que ocorra um genocídio em direto, sem mexer um dedo, até ficando tranquilizadas com o estribilho de que Israel «tem direito a defender-se», o que significa isso?
- Significa que os valores morais da civilização cristã e democrática desapareceram. Que as várias centenas de anos de combates pela dignidade humana, que culminaram com a titânica luta contra o nazismo e as outras formas de fascismo, se evaporaram totalmente da consciência dos povos respectivos. 
O consentir e encorajar um crime contra a humanidade em Gaza oblitera definitivamente o regime de Biden nos EUA e dos lugares-tenentes que ocupam o poder em países vassalos da OTAN. 
Na verdade, existe uma ignorância muito grande e uma ausência de curiosidade, da parte do público: Não se pode pretender participar num processo democrático ignorando tudo das políticas concretas que os dirigentes políticos levam a cabo e se propõem continuar. 
Isto não é democracia, seja qual for o critério utilizado para defini-la. Os que se permitem dar apoio, pelo voto ou por outros meios, a genocidas são também eles genocidas. Os que deixam uma ação nitidamente genocida ser levada a cabo sem mover um dedo, quando podiam fazer algo para a parar ou dificultar os planos dos criminosos são, obviamente, comparsas do crime. Os que permitem esta monstruosidade deixaram de ser humanos, tal como os executantes da mesma. Passaram a ser monstros morais, com aparência física de humanos, apenas. 

Inventam motivos falsos, falsidades óbvias, mentiras descaradas, para que as pessoas engulam e se auto-absolvam de sua total falta de coragem e de ética. É que, apesar de tudo, as pessoas sabem que massacrar inocentes - e na escala em que é feito - é uma perversão total. Os nazis cometeram muitas atrocidades contra populações civis. Hoje, membros do povo judaico, cujos avós e bisavós sofreram o Holocausto às mãos dos nazis, são executores do Holocausto do povo de Gaza. Os governos e aparatos políticos que apoiam isto, estão realmente a justificar a descida aos infernos, o mergulhar nas trevas! 

A minha surpresa é grande, embora não tivesse ilusões sobre os sistemas políticos ditos de «democracia liberal» do Ocidente. Acho que ninguém - ou quase - previu o mergulhar de tantos países em simultâneo, no que só pode ser designado por "totalitarismo de novo tipo". 

As «elites» do dinheiro que estão no poder nos países ocidentais, manipulam as consciências. Mas, certos grupos de pessoas, deveriam ser mais difíceis de manipular: professores universitários, dirigentes políticos, membros destacados de igrejas, etc. Eles não podem, pela sua própria formação, ignorar o que se passa, nem qual é o seu dever. Mas, por cobardia, porque estão bem instalados na vida, fingem que não conhecem os factos chocantes ou descartam estes, como se fossem «mentiras dos inimigos da democracia». Os piores inimigos da civilização e da democracia são eles mesmos pois falham no seu dever, são cúmplices. 

Os outros povos, não envolvidos na matriz imperial e neocolonial do «Ocidente», estão atónitos perante os comportamentos dos ocidentais. É sua convicção de que não existe outra solução, senão viverem afastados dessa minoria de países do Ocidente, perversa, contrária a Deus e aos valores cívicos que dizem defender. 

Os governos e os oligarcas ocidentais estão a isolar-se a si próprios do resto do Mundo. Porém, estão tão ébrios da sua «superioridade», que não se apercebem disto. Nada pior do que um sistema que proclama num dado momento, certos valores para logo os trair no momento seguinte. É que ele nunca teve realmente os valores que apregoa. Eram apenas adornos de retórica ou propaganda para melhor executar seus crimes.  

Não irei chorar nem uma lágrima pela «civilização» ocidental: Ela - afinal - já estava morta. Estou só à espera que se realize o funeral e que seja enterrada numa cova bem funda. 


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

LÉO FERRÉ : «PAUVRE RUTEBEUF»

«Rutebeuf» (ca. 1245 - 1285) é um pseudónimo derivado de «Rudebœuf» (boi vigoroso), que o próprio poeta utiliza na sua obra.
Era provavelmente originário da província de Champagne (descreve conflitos em Troyes, em 1249), mas viveu a maior parte da sua vida adulta em Paris. Ele era clérigo, ou seja, alguém que fez estudos, os quais preparavam, não apenas para funções eclesiásticas, como para funções laicas diversas. 
A sua obra rompe com a tradição cortesã dos trovadores do Norte (ou "trouvères"). É uma obra diversificada, que inclui poemas hagiográficos (vidas de santos) e obras de teatro, assim como poemas polémicos e satíricos, dirigidos contra os poderosos do seu tempo. É excecional - para produções daquela época - que subsistam 56 manuscritos originais dos seus poemas.
Rutebeuf foi um dos primeiros autores a falar na primeira pessoa na sua obra. É o caso do célebre poema «Complainte de Rutebeuf» ou «Pauvre Rutebeuf», adaptado e musicado por Léo Ferré. Esta peça, que podemos traduzir como «O lamento de Rutebeuf» faz parte da recolha dos «Poemas do Infortúnio».


Transponho abaixo uma versão modernizada do poema que se encontra em Poesie.net 


Que sont mes amis devenus
Que j'avais de si près tenus
Et tant aimés
Ils ont été trop clairsemés
Je crois le vent les a ôtés
L'amour est morte
Ce sont amis que vent me porte
Et il ventait devant ma porte
Les emporta

Avec le temps qu'arbre défeuille
Quand il ne reste en branche feuille
Qui n'aille à terre
Avec pauvreté qui m'atterre
Qui de partout me fait la guerre
Au temps d'hiver
Ne convient pas que vous raconte
Comment je me suis mis à honte
En quelle manière

Que sont mes amis devenus
Que j'avais de si près tenus
Et tant aimés
Ils ont été trop clairsemés
Je crois le vent les a ôtés
L'amour est morte
Le mal ne sait pas seul venir
Tout ce qui m'était à venir
M'est advenu

Pauvre sens et pauvre mémoire
M'a Dieu donné, le roi de gloire
Et pauvre rente
Et droit au cul quand bise vente
Le vent me vient, le vent m'évente
L'amour est morte
Ce sont amis que vent emporte
Et il ventait devant ma porte
Les emporta

  Rutebeuf (1230-1285)
Adaptation en Français moderne
de la Griesche d'Hiver.

 

Penso que os dois versos finais* da canção "Pauvre Rutebeuf" são de Léo Ferré, mas não tenho a certeza:

*) L'espérance de lendemain  /  Ce sont mes fêtes


domingo, 3 de dezembro de 2023

SE ESTAMOS A VIVER NUMA ÉPOCA EXCECIONAL...

 Se estamos a viver numa época excecional, então devemos cuidadosamente rever todos os conceitos aos quais estávamos mais ligados. Devemos analisá-los criticamente, à luz das realidades emergentes e ver quais os que podem ser resgatados, quais devem ser reformulados e quais os que devem ser «deitados para o caixote de lixo».

Quando reflito sobre isto, a minha mente é imediatamente atraída pela palavra «contenção». Com efeito, as circunstâncias gerais, em cada sociedade e cada vida privada, tornaram-se de tal maneira voláteis, que nós devemos nos interrogar sobre a nossa «grelha de leitura» da realidade. 

Com efeito, os parâmetros que considerámos para avaliar a realidade  social, aqueles sobre os quais nos baseámos no passado, até mesmo no passado mais recente, ou se tornaram obviamente caducos, ou têm de ser reformulados, no todo ou em parte. 

As pessoas que não façam esse exercício, irão sofrer, nas condições de instabilidade e perturbação profunda que agora se estão a revelar. Elas irão  ser arrastadas/induzidas a tomar posições sobre as quais não tinham refletido previamente. 

Assim, em todos os aspetos da vida,  deve-se ser particularmente cuidadoso, não tomar os desejos pela realidade, não pronunciar juízos definitivos, sobre aquilo que parece ser, no momento. 

Dito isto, é verdade que as escolhas que fizermos poderão ser decisivas para nós, pessoalmente e socialmente. O que vi acontecer com muitos, é que tentam «encaixar» as inéditas situações, no molde envelhecido das suas ideologias. Seria este um caso para evocar a parábola bíblica do «vinho novo, em odres velhos».

As novas situações não têm «resposta» em escritos de filósofos, políticos ou economistas, que pensaram e escreveram em contextos totalmente diversos da atualidade. A única coisa de que podemos ter a certeza, é que não existem, em sociologia, economia, ou história, teorias preditivas verdadeiras, genuínas. As que são formuladas, correspondem apenas à visão do Mundo e ao desejo dos seus autores. Ora, esta visão do Mundo, mesmo que fosse muito adequada quando a escreveram, não poderia ter em conta toda a panóplia de descobertas e de ideias que se desenvolveram, entretanto. 

Num período de crise, como dizia corretamente Lenine, há semanas que são tão densas em acontecimentos, que parece que passaram anos. Esses acontecimentos são imprevisíveis no seu desenrolar. Mesmo que sejam previsíveis no seu desencadear. Por exemplo: uma guerra, pode ser previsível, ao se analisar as posições e movimentos das diversas potências. Mas, ninguém pode prever que uma tal guerra futura se desenrole desta ou daquela maneira. Que dure apenas uma semana, ou dez anos. Que dê a vitória inequívoca a um dos lados, ou que se arraste e esgote o lado mais forte. Que o lado mais forte inicialmente, mesmo que vença militarmente, acabe por experimentar o princípio da sua derrocada.

As situações de imprevisibilidade nos mercados são ainda mais patentes. Os que «pilotam» os bancos centrais, munidos de poderosos instrumentos para agir sobre mercados financeiros e a economia geral, não têm o poder que se lhes empresta. São o aprendiz do conto do «Aprendiz -feiticeiro». As economias vivem sujeitas ao caos completo, onde sábias e prudentes decisões são impossíveis de tomar. Os dirigentes efetuam meros «passes de mágica», de tal modo que o vulgo acredita que eles detêm enorme poder. 

A atitude mais inteligente - neste contexto- é de garantir aquilo que nós, pessoalmente, a nossa família, a nossa comunidade, possuímos enquanto meios de preservar a vida. Manter e aumentar a nossa capacidade de aguentar nos tempos mais difíceis das nossas vidas, deveria ser a preocupação primeira.  As «sereias» que apelam para investimentos sumptuários, especulativos, que causam um desequilíbrio, ou que diminuem os ganhos e as hipóteses de ganho, são de rejeitar. Por contraste, as iniciativas para preservação do adquirido e para o aumento da nossa autonomia (exemplos: produção própria de alimentos, geração de energia, etc.) tornam-se vitais, neste contexto. Também importa uma atitude mais racional com a saúde: a boa condição física é ainda mais importante, nas circunstâncias em que colapsam as estruturas e os meios de saúde.

A nossa energia deve estar centrada nos pontos acima, sendo também muito importante não olharmos de forma acrítica para as informações que nos chegam aos ouvidos ou aos olhos. Neste contexto, a informação da mídia é mais enviesada do que nas situações anteriores. Estamos perante ondas sucessivas de condicionamento de massas, primeiro com a histeria do «COVID», depois com a violação sistemática da nossa integridade, a imposição de «vacina», a perseguição da dissidência e a instalação duma censura férrea, além de uma vigilância total. Esta fase antecedeu e preparou as pessoas para aceitarem - perante as guerras da Ucrânia e de Gaza - no meio de campanhas de histeria sucessivas, a transformação do enquadramento legal.  A «legalidade democrática» foi varrida de uma penada, para se reprimir "legalmente"  dissidências e glorificar o bárbaro esmagamento de populações civis, incluindo a ressurreição do conceito, medievo e nazi, de  «culpa coletiva».

Com o medo instilado, pretende-se que as pessoas deixem de pensar, apenas reagindo, apenas seguindo os instintos de gregarismo e de xenofobia. Muitas, adotaram um comportamento de simulação, ou ocultaram a sua posição verdadeira, por medo de serem excluídas, de serem apontadas a dedo. 

O cenário está completamente montado e, aliás, a peça de teatro já começou a desenrolar-se diante dos nossos olhos. Mas, como não compreendemos o enredo desta peça, nem queremos fazer um esforço para o compreender, somos incapazes de protagonismo, de sermos proactivos. 

Se algo de verdadeiro existe nas palavras acima, creio que devemos refletir como agir para modificar este estado de coisas. Para agir maduramente, não devemos ocultar a realidade a nós próprios, nem cair na armadilha da propaganda, de uns ou de outros. Precisamos ser capazes de nos distanciar sem trair as nossas convicções. Não devemos tomar a nossa ilusão, o nosso desejo, pela realidade. Sobretudo, devemos guardar abertura a cada momento; não desenvolver sentimentos de ódio, em relação aos que estejam no polo diametralmente oposto. Sermos adultos, propriamente, quer dizer que somos capazes de analisar e não descartar outros pontos de vista, que nos pareçam - à primeira vista - errados, ou equivocados; por vezes, nós é que estávamos equivocados e os outros  tinham - afinal - razão. 

De nenhum modo, uma atitude sectária se justifica, neste contexto: A atitude inteligente é realizar alianças, o mais amplas possíveis, aos vários níveis. 



quinta-feira, 30 de novembro de 2023

O CAMINHO DO FUTURO E A SABEDORIA

 Nós costumamos, a partir desta altura do ano, ouvir e ler «previsões» para o ano seguinte, como será no campo da política, da economia, etc. 

Realmente, estas ditas previsões apenas se baseiam na perceção dos que as emitem, sobre qual é a expectativa dos seus leitores  em relação a esses assuntos. Quanto mais uma «previsão» se conformar com o que passa por senso comum, mais aceitação terá. 

Alguns «analistas» porém, fazem uma ou duas previsões completamente fora do que é previsível, mas assinalando porém, que a sua «probabilidade de se efetivar» é diminuta. 

Este ritual é destinado a tranquilizar as pessoas, que ficam na ilusão de que «compreendem» o Mundo - esse Mundo cada vez mais complexo, contraditório, opaco - e, a partir desse momento, vão projetar a ilusória compreensão dos acontecimentos mundiais, regionais ou locais, na trama simplista desses gurus.  Satisfazem-se ou desce a sua ansiedade, pelo menos, quando podem dizer: «eu já sabia que isto iria acontecer», ou «veem, as coisas passam-se conforme eu previ».

Conscientemente ou não, está-se a perpetuar a longa tradição das profecias. A «Arte divinatória» existiu e existe em todas as civilizações e religiões passadas e presentes. É pois uma invariante profunda do ser humano. Transcende as culturas, as condições socioeconómicas e tecnológicas, existentes nas diversas sociedades. 

A mente humana «precisa» de continuidade. Precisa de imaginar que o dia de amanhã será semelhante ao de hoje. Os pressupostos de que parte um indivíduo, uma família para realizar os seus investimentos ou planos futuros, baseiam-se quase somente nos seus desejos. Mas, têm de «teorizar» tais impulsos (perfeitamente legítimos na imensa maioria dos casos) com as tais «projeções» do futuro. Estas são mais o resultado de uma racionalização, do que a conclusão de um processo frio, racional de análise.

Pessoalmente, não farei projeções para o próximo ano. Espero que as grandes desgraças que afetam a humanidade sejam um bocado aliviadas; espero que haja menos violência; menos depredação dos ambientes naturais; um maior entendimento entre culturas... Eu «espero», não no sentido de prevejo, mas somente que desejo. 



terça-feira, 28 de novembro de 2023

OS EUNUCOS UNIDOS DA EUROPA* por Laura Ruggeri

                         Imagem: Interior de Harém no Império Otomano


Uma “UE geopolítica” continua a ser pouco mais do que uma fantasia consoladora baseada no seu poder de atracção – a fila para entrar.



“Se um país olha para a Europa, então a Europa deveria abrir bem as suas portas. O alargamento sempre foi o instrumento geopolítico mais forte da União Europeia.»

Embora Metsola tenha simplesmente reformulado as declarações feitas pela chefe da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, e pelo presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, a sua escolha de palavras oferece uma excelente visão sobre os fundamentos ideológicos do expansionismo da UE.

Metsola funde a Europa e a União Europeia, mas isto não é simplesmente um lapso de língua, Bruxelas tem uma longa tradição de assumir que a UE é igual à Europa e que os países situados fora das suas fronteiras não são verdadeiramente europeus, caso contrário não estariam "procurando Europa'. Tornar-se europeu é tornar-se “civilizado”, uma vez que fora do “jardim da Europa” as pessoas vivem numa “selva”, pelo menos de acordo com o chefe dos negócios estrangeiros da UE, Josep Borrell. A UE, considerada a personificação de valores superiores, tem o dever moral de abrir as suas portas e admitir aqueles infelizes países que estão actualmente excluídos deste jardim de delícias e, ao fazê-lo, resgatá-los de algum perigo não especificado. Basicamente, uma variação do tema colonial do salvador branco. Depois Metsola apresenta o argumento decisivo em apoio ao alargamento: bem, claro, é uma ferramenta geopolítica para tornar a UE mais forte.

Se o alargamento tornaria o bloco mais forte, como afirmam os seus proponentes, ou, pelo contrário, aceleraria a sua implosão, tem dividido opiniões durante duas décadas. Metsola convenientemente esquece-se de mencionar que sem um acordo unânime as negociações de adesão não podem sequer ser iniciadas, mas é claro que os eurocratas não podem permitir que os factos atrapalhem uma boa narrativa.

As metáforas utilizadas por Metsola (a porta) e Borrell (jardim/selva) reforçam a dicotomia espacial dentro/fora que reflete culturalmente a oposição entre valores positivos e negativos, civilização e barbárie. Sem uma esfera externa “caótica”, real ou imaginária, a estrutura interna não pareceria ordenada, na verdade nem apareceria: figura e fundo fundiriam-se num continuum. Postular a existência de uma selva perigosa habitada por bárbaros é essencial para manter a ilusão de ordem e civilidade no seu interior. O problema é que a cada ronda de alargamento a entropia do sistema aumenta. A história tem mostrado que quando a expansão imperial é tentada sem as pré-condições necessárias – forças armadas suficientemente fortes e uma economia capaz de sustentá-la, uma liderança eficaz, uma ideologia que estimula o desejo de império e laços institucionais saudáveis ​​entre o centro e a periferia – o resultado é inevitavelmente exagero, fracasso e derrota. Mas não pergunte aos nossos eunucos sobre impérios, especialmente aquele sobrecarregado a que servem. Acreditam na sua própria propaganda e estão empenhados em “proteger, promover e projetar os valores europeus, defendendo a democracia e os direitos humanos no interesse do bem público comum. Promover a estabilidade e a prosperidade no mundo, protegendo uma ordem mundial baseada em regras, é uma condição prévia básica para a proteção dos valores da União.» Quando se trata de declarações da UE, a paródia é desnecessária, o original atinge o mesmo efeito cômico.

Se uma maior expansão é boa ou má para a UE tornou-se o equivalente moderno da velha discussão bizantina sobre o sexo dos anjos e, embora não tenha sido possível chegar a acordo, o processo ficou em grande parte paralisado após a adesão da maior vaga de novos membros em 2004 e Croácia em 2013. Então porque é que o país esteve no topo da agenda de tantos eurocratas nos últimos dois anos? Principalmente porque os apoiantes da expansão esperavam poder aproveitar a unidade que a UE reuniu face ao conflito na Ucrânia para impulsionar um projecto imperialista por procuração alimentado pelo pensamento mágico de Washington. A pedra angular deste projecto era a captura total da Ucrânia, cujo exército treinado pela NATO deveria ter desferido um golpe decisivo na Rússia. Como sabemos, as coisas não estão a correr exactamente como planeado e essa unidade de objectivos parece agora tão precária como o futuro da Ucrânia.

Durante anos foi prometido à Ucrânia o estatuto de candidato à UE e finalmente recebeu-o em troca de um sacrifício de sangue. Obviamente, não se qualifica para adesão, e não vale a pena morrer pela perspectiva de ficar sentado numa sala de espera lotada com outros candidatos num futuro próximo. Bruxelas tem primeiro de encontrar e depois apresentar uma cenoura mais atraente, numa altura em que as sondagens de opinião mostram que o apoio à Ucrânia está a diminuir.

Depois de defender a “ordem baseada em regras” dos EUA, a UE tem um saco cheio de notas promissórias, uma economia enfraquecida, e o jardim de delícias terrenas de Borrell assemelha-se cada vez mais ao painel escuro do famoso tríptico de Hieronymus Bosch.

Pode-se pensar que discutir o alargamento da UE enquanto o bloco enfrenta grandes crises que o testam até ao limite é o epítome da insanidade. Na verdade, alguns comentadores já traçaram paralelos entre a liderança da UE e Nero a mexer enquanto Roma ardia. Mas supostamente Nero fez outra coisa além de brincar, ele culpou os cristãos pelo incêndio. Oferecer um inimigo interno ou externo é uma tática experimentada e testada para esmagar a dissidência e consolidar o poder. E foi exactamente isso que a ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Annalena Baerbock, tentou numa recente conferência em Berlim dedicada ao alargamento da UE. Ela disse a 17 ministros dos Negócios Estrangeiros da UE e de países candidatos, incluindo o ucraniano Dmytro Kuleba, que a UE deve expandir-se para evitar tornar todos vulneráveis.

“A Moscovo de Putin continuará a tentar dividir de nós não só a Ucrânia, mas também a Moldávia, a Geórgia e os Balcãs Ocidentais. Se estes países puderem ser permanentemente desestabilizados pela Rússia, isso também nos tornará vulneráveis. Não podemos continuar a permitir zonas cinzentas na Europa”. O que aconteceu com as promessas de crescimento económico, investimentos e acesso a um mercado rico? Como todos parecem vazios em 2023, Baerbock invoca o bicho-papão. Acabou-se toda a pretensão de que a UE e a NATO prosseguem estratégias diferentes.

Com a porta da NATO fechada à Ucrânia e Washington a mudar o seu foco para o Médio Oriente e a Ásia-Pacífico, o fardo de apoiar a Ucrânia “para defender a Europa” foi despejado sobre a UE.

Se a pintura da Rússia como uma ameaça tem sido usada há muito tempo pelos EUA para manter viva a NATO, nos anos mais recentes tem sido explorada para unificar a política externa e de defesa dos Estados-membros da UE. Washington promoveu e facilitou uma consolidação vertical do poder na UE, a fim de externalizar para Bruxelas algumas das funções policiais e punitivas que permitem a sua acumulação global de capital e sustentam a sua hegemonia. De acordo com o seu cálculo, lidar com um vassalo colectivo, a UE, seria mais fácil do que gerir vários vassalos europeus em disputa e concorrentes. Esta estratégia reflecte a fraca compreensão que Washington tem da história e da complexidade da Europa e é por isso que é pouco provável que produza os resultados desejados, especialmente porque os interesses europeus foram sacrificados no altar dos americanos. Depois de desviar a riqueza dos países da UE e de restringir a sua margem de manobra, o bolo encolheu e é natural que a corrida para obter uma fatia se intensifique. Saquear e canibalizar os seus aliados não é exactamente uma jogada inteligente, cheira a desespero e é um sinal claro de que os EUA estão sobrecarregados financeira e militarmente.

O declínio económico e industrial nos países da UE parece agora incontrolável. Não poderia ser de outra forma quando você está preso em um relacionamento abusivo e explorador que lhe nega a liberdade de escolher seus amigos e parceiros de negócios. O centro de gravidade económico e geopolítico deslocou-se para Leste, a ordem mundial unipolar que emergiu na década de 1990 está a desfazer-se e uma nova ordem multipolar está a tomar forma diante dos nossos olhos. Em vez de seguir o caminho pragmático da integração eurasiática e de reforçar os laços económicos mutuamente benéficos com a China e a Rússia, a UE embarcou numa missão suicida para os seus curadores em Washington, na tentativa fracassada de enfraquecer a Rússia e conter a China.

Durante anos, a UE foi autorizada a beneficiar do esforço de globalização liderado pelos EUA; desenvolveu relações comerciais e cooperação multilateral com os países vizinhos e o resto do mundo. Os EUA, em vez de aceitarem a emergência de uma nova realidade multipolar, optaram por inverter a globalização e dividir o mundo em dois blocos, enquadrando criativamente a competição como um confronto ideológico entre democracia e autocracia. O proteccionismo comercial aumentou, os investimentos internacionais foram sujeitos a um escrutínio reforçado por razões de segurança nacional, as restrições ao fluxo de dados proliferaram, as sanções tornaram-se a norma.

Depois de terem sido condenados à irrelevância geopolítica, os países europeus são chamados a pagar a factura das ambições imperiais dos EUA e a fornecer assistência militar. Um relatório publicado pela empresa RAND em Novembro reconheceu que a estratégia e postura de defesa dos EUA tornaram-se insolventes e recomendou uma abordagem diferente:

“As tarefas que o governo dos EUA e os seus cidadãos esperam que as suas forças militares e outros elementos do poder nacional realizem a nível internacional excedem em muito os meios disponíveis para realizar essas tarefas.

Os Estados Unidos não podem e não devem, por si próprios, tentar desenvolver os conceitos operacionais, as posturas e as capacidades necessárias para concretizar esta nova abordagem para derrotar a agressão. O imperativo para a participação de aliados e parceiros é mais do que apenas gerar os recursos necessários para uma defesa combinada credível. Dado que a dissuasão envolve mais do que o poder militar bruto, a solidariedade entre as principais nações governadas democraticamente é necessária também nas dimensões diplomática e económica. E uma cooperação e interdependência mais estreitas na área da defesa terão efeitos benéficos noutras áreas, ajudando a facilitar uma acção coordenada para enfrentar desafios comuns.”

Para melhor ajudar a hegemonia moribunda, a UE está a ser instruída a alargar-se e a reformar-se. Na verdade, a reforma é considerada ainda mais urgente do que o alargamento porque os EUA temem que a capacidade da UE para levar a cabo a tarefa prescrita possa ser prejudicada por um punhado de países que exercem o seu poder de veto. No centro da conversa está a regra da unanimidade da UE, o que significa que todos os países devem chegar a acordo antes que o bloco possa tomar uma decisão sobre questões como a política externa, a assistência à Ucrânia ou as regras fiscais.

Não é por acaso que os argumentos mais ruidosos a favor da expansão da UE e do voto maioritário em vez da unanimidade estejam a ser ouvidos nos círculos atlantistas. Washington precisa de reforçar o controlo sobre as políticas externas e de segurança da Europa e é por isso que intensificou a pressão sobre a França e a Alemanha, bem como sobre outros Estados europeus que resistem à perspectiva de a Ucrânia, a Moldávia e os Estados dos Balcãs Ocidentais aderirem ao clube no futuro.

A captura da Europa

No tipo de UE com que Paris e Berlim sonharam há 30 anos, os países bálticos e da Europa de Leste forneceriam terras e mão-de-obra baratas, e novos mercados inexplorados para as suas empresas – o Lebensraum ideal para europeus ocidentais ambiciosos e empreendedores. Este cenário neocolonial seria auxiliado pelo imperialismo cultural e facilitado pela proximidade geográfica.

Mas na euforia pós-Guerra Fria, o conjunto franco-alemão não prestou atenção ao Convidado de Pedra: a expansão da NATO prosseguia a um ritmo muito mais rápido do que o alargamento da UE. Apesar da dissolução da União Soviética e do Pacto de Varsóvia, a OTAN não tinha sido dissolvida, pelo menos a sua missão de “manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães abaixo” tinha recebido um novo ímpeto depois da OTAN acolher estados cujos novos as elites políticas foram preparadas exatamente para essa missão.

Os americanos não só dariam as ordens mais alto do que antes, como também poderiam contar com mais aliados para fazer exactamente isso. À medida que novos Estados-Membros aderiram à UE, o seu sentimento anti-Rússia também começou a desempenhar um papel desproporcional na definição das relações da UE com a Rússia. Na verdade, a russofobia foi activamente cultivada nos estados pós-soviéticos para sustentar identidades nacionais frágeis e, em alguns casos, totalmente artificiais, e para dar legitimidade a novos governantes.

Para unir novos e antigos membros e atrair mais candidatos, a UE transformou os problemas políticos em problemas tecnocráticos, baseou-se em procedimentos legais e alocou ou retirou recursos financeiros para impor a sua “visão”, tornou-se um actor idealista e um “professor global”. dos princípios neoliberais, dos “valores” ocidentais e dos padrões da UE. Para esconder a sua natureza antidemocrática e legitimar um aparelho burocrático invasivo completamente desvinculado da sociedade em geral, a UE transformou-se numa gigantesca máquina de relações públicas que drenou recursos para projectar autoridade moral e manter as aparências.

Na falta de legitimidade democrática, a UE teve de investir recursos consideráveis ​​na criação de um simulacro de democracia. Na falta de um demos, teve que inventá-lo através de uma “missão civilizadora” que foi empreendida com zelo missionário. Para criar as novas “demos europeias”, as identidades nacionais, culturais e religiosas tiveram de ser primeiro diluídas (ou infladas artificialmente quando desempenhavam uma função anti-russa), um passo de cada vez, começando no jardim de infância, e depois substituídas por alguns consensuados ersatz, fornecidos por organizações como o WEF e Open Society Foundation - o caminho da engenharia social para a civilização!

Deve-se ter em mente que a UE não é um actor geopolítico independente, nem uma “potência geopolítica”, independentemente do que Borrell ou Von der Leyen proclamem. A UE foi criada para drenar o poder dos Estados-membros, corroer a sua soberania, para que nunca se tornem um desafio aos interesses e ao poder dos EUA. Como resultado, a UE não é maior do que a soma das suas partes, é o equivalente geopolítico de um buraco negro. A sua arquitectura institucional, uma intrincada rede de locais de discussão, é tão surpreendente e entorpecente que Henry Kissinger, quando era Secretário de Estado dos EUA, pronunciou a famosa frase: “Para quem devo ligar se quiser ligar para a Europa?”

Nem uma organização internacional nem um Estado-nação, a UE pode ser descrita como uma política supranacional artificial. Isto assume a forma de numerosas redes mutuamente penetrantes de interconexões sociais, económicas, políticas e ideológicas que incluem, em diferentes níveis e fases, mecanismos supranacionais, governos nacionais, administrações regionais, empresas multinacionais e grupos de interesse cujo alcance é internacional.

Por isso, quando falamos sobre a UE, devemos lembrar-nos de que esta é gerida como um clube privado para um grupo de empresas transatlânticas e elites financeiras. Os seus lobbies e grupos de reflexão controlam o conhecimento e a informação que moldam a opinião pública e sobre os quais as figuras de proa actuam – os líderes da UE são invariavelmente políticos falhados e mediocridades cujas carreiras políticas foram facilitadas pelos mesmos lobbies que os possuem e ditam a sua agenda.

À medida que estas elites transatlânticas se envolvem numa luta global para manter e aumentar o seu poder, apreender e controlar recursos, desde dados digitais até recursos naturais, formam cartéis quando os seus interesses coincidem, ou competem pela influência política quando os seus interesses divergem. As “guerras culturais” que tornaram o debate racional virtualmente impossível no Ocidente são muitas vezes alimentadas por estas elites, uma vez que dispõem dos meios para mobilizar recursos políticos – pessoas, votos e partidos – em torno de certas posições sobre questões culturais.

O processo de integração europeia é um projecto imperialista tanto no sentido da relação da UE com o resto da cadeia imperialista, mas também dentro da UE nas relações desiguais entre os diferentes países.

Os sinais de uma crise profunda de integração europeia multiplicaram-se, sendo o Brexit o exemplo mais óbvio, mas não o único. A crescente crise de legitimidade também é exemplificada na reacção dos eleitores nos países da UE. Contrariamente às acusações de “populismo” e “nacionalismo” dirigidas a qualquer pessoa que seja crítica da integração europeia, o que emerge é antes a ansiedade causada pelo sentimento de falta de controlo das pessoas sobre as suas próprias vidas, pela descrença relativamente ao quadro institucional e político antidemocrático da UE.

Dado que os padrões de vida continuam a cair e as promessas de prosperidade e bem-estar social no jardim europeu não são em grande parte cumpridas, a insatisfação e a dissidência estão a aumentar, e não apenas entre as pessoas comuns. Algumas elites nacionais também se tornaram mais inquietas porque são penalizadas pela hostilidade da UE contra a Rússia e, cada vez mais, contra a China. O potencial de crescimento económico da UE foi esgotado e a maioria dos membros do bloco sofre de deficiência orçamental crónica e de dívida estatal excessiva.

Mas uma vez que os EUA precisam de toda a ajuda para sustentar a sua hegemonia em rápido declínio, a UE redobrou o seu papel de aplicador das regras dos EUA, entrelaçando a NATO e a UE numa arquitectura de controlo e propaganda - a guerra híbrida foi desencadeada contra a população europeia sob o pretexto de a defender da desinformação russa. Num tal contexto, mais recursos estão a ser desviados para o orçamento da defesa e segurança e para representantes dos EUA, como a Ucrânia. Não importa como se interprete a questão, é óbvio que apenas um punhado de empresas bem relacionadas beneficia de um aumento nas despesas militares e em I&D dos Estados-membros.

A emergência da Covid-19 ofereceu aos EUA a oportunidade perfeita para verificar se todos os seus patos europeus estavam enfileirados. Pela primeira vez na sua história, a UE adoptou uma estratégia de aquisição conjunta de vacinas: a aquisição conjunta de vacinas não só testou a coesão, a coordenação, a capacidade de «agir rapidamente» e mobilizar recursos financeiros, mas também constituiu um precedente que mais tarde facilitou a aquisição conjunta de armas para a Ucrânia e a imposição de sanções à Rússia. A exclusão das vacinas russas e chinesas mostrou que se podia confiar na UE para obedecer às ordens, mesmo que estas entrassem em conflito com os seus interesses económicos – as vacinas mRNA dos EUA eram mais caras do que a alternativa e dependiam de uma tecnologia cuja segurança não tinha sido comprovada. Os meios de comunicação social e os debates políticos da UE utilizaram a linguagem da guerra, referindo-se a uma “guerra” contra a Covid-19, o vírus foi “combatido”, os médicos e paramédicos foram descritos como “soldados da linha da frente”.

Uma metáfora cognitiva da guerra ajudou a estruturar a percepção da realidade. O estado de exceção foi normalizado, levando à suspensão dos direitos constitucionais. A pandemia ofereceu o pretexto para levar a cabo a operação psicológica de maior alcance alguma vez tentada em tempos de paz: qualquer manifestação pública de dissidência ou incumprimento de regras absurdas foi duramente reprimida, os meios de comunicação social e as redes sociais foram transformadas em armas para fazer lavagem cerebral e censurar o público, a capacidade do novo exército de «verificadores de factos» da UE foi reforçada e o âmbito da vigilância digital foi alargado.

Os confinamentos levaram a enormes perdas económicas (e ganhos para um punhado de empresas tecnológicas e farmacêuticas, na sua maioria americanas), mas também a uma mudança de paradigma nas políticas fiscais, monetárias e de investimento da UE, nomeadamente através da adaptação dos auxílios estatais para permitir que os Estados-Membros apoiassem suas economias através de uma intervenção mais direta. Sinalizou uma ruptura com a política de austeridade adoptada após a crise financeira de 2008. À medida que os Estados se tornaram mais endividados, tiveram de ceder ainda mais soberania à UE: As estratégias e objectivos de desenvolvimento dos Estados-membros tiveram de se alinhar com as prioridades definidas pela UE e beneficiando principalmente os EUA. A armadilha da dívida foi apresentada como um plano de recuperação com nomes sonantes como Next Generation EU (NGEU) — 360 mil milhões de euros em empréstimos e 390 mil milhões de euros em subvenções.

Como se costuma dizer, nunca deixe uma crise ser desperdiçada. Uma emergência cria um sentido de urgência e a necessidade de agir rapidamente, o que reduz seriamente a capacidade de pensar cuidadosamente. Esta abordagem abriu caminho à aceitação de perdas ainda maiores mais tarde, quando a UE impôs sanções à Rússia, que se transformaram num bumerangue. Qualquer hesitação em desistir do gás russo foi prontamente anulada pelo seu “parceiro” americano, através da sabotagem dos gasodutos Nord Stream.

Os eurocratas que adoram ser amados, especialmente a manifestação de amor "paga para jogar", são agora mantidos sob rédeas mais curtas. Estima-se que existam cerca de 30.000 lobistas registados em Bruxelas e que espalham o amor há décadas. Mas, em tempos mais recentes, apenas os lobistas aprovados pelos EUA tiveram rédea solta. Parece que as detenções que se seguiram ao Qatargate foram um aviso aos eurocratas: aceitar subornos de certos actores estrangeiros como o Qatar, já não será tolerado. Os interesses transatlânticos devem estar sempre em primeiro lugar.

Alargamento da UE – cui prodest?

Embora a expansão tenha sido consagrada em documentos oficiais da UE como um imperativo geoestratégico, a UE enfrenta agora desafios muito maiores do que nos anos pós-Guerra Fria. No início dos anos 90, os líderes europeus discutiram se deveriam alargar a união, absorvendo os países do bloco oriental, ou aprofundar a sua integração. Tentaram ambas as coisas e o resultado é uma confusão insustentável de acordo com todos os indicadores socioeconómicos, mesmo antes de se ter em conta o custo alucinante do apoio à Ucrânia, a perda de recursos energéticos acessíveis da Rússia e as sanções bumerangue.

Os grupos de reflexão, os eurocratas e os meios de comunicação social intensificaram recentemente os seus esforços para transformar exemplos passados ​​de alargamento da UE como um sucesso e o alargamento futuro como uma oportunidade, mas fora das suas câmaras de eco, o cepticismo está a crescer e a fadiga do alargamento instalou-se.

Se o alargamento está a ser discutido, é porque falar é fácil. Pergunte à Macedónia do Norte, um país ao qual foi concedido o estatuto de candidato em 2005 e que ainda está na lista de espera. Os pedidos da Ucrânia e da Moldávia foram aceites às pressas em 2022 para lhes apresentar uma cenoura, sabendo perfeitamente que nenhum dos países cumpre os critérios para aderir à União. Além disso, ainda é melhor para a UE mantê-los sob controle, nunca selando o acordo. Nove países receberam formalmente a mesma promessa e não é possível acelerar a adesão da Ucrânia e da Moldávia, sem causar ressentimento.

Mas como Washington teme que os “países política e economicamente vulneráveis” percam a paciência com a UE e encontrem parceiros mais atraentes para apoiar o seu desenvolvimento, nomeadamente a China e a Rússia, a UE tem de continuar a fazer promessas e, o que é mais importante, financiar as elites políticas dos países vizinhospara reforçar o seu poder e a sua clientela. Os EUA também contam com a UE para financiar os esforços de guerra da Ucrânia e a reconstrução do que restará deste país falido quando o conflito militar terminar. Deixemos que os contribuintes europeus paguem a conta: o apoio da UE ao regime de Kiev atingiu agora 85 mil milhões de euros e Von der Leyen prometeu que mais virão. Um montante adicional de 50 mil milhões de euros para o “Mecanismo para a Ucrânia” foi proposto pela Comissão Europeia para os anos de 2024 a 2027. Em 2022, o Parlamento Europeu aprovou 150 milhões de euros para apoiar o governo fantoche da Moldávia.

Como a UE não pode expandir-se sem implodir, a França e a Alemanha convidaram 12 especialistas para formar um grupo de trabalho sobre as reformas institucionais da UE. Apresentaram um conjunto de propostas para uma construção a múltiplas velocidades que permitiria a alguns Estados-membros uma integração mais profunda em determinadas áreas e evitaria que outros os impedissem. O relatório propõe eliminar os requisitos de votação unânime, mesmo que a eliminação dos vetos implique a aceitação de diferentes níveis de compromisso. Prevê quatro níveis de adesão, estando os dois últimos fora da UE. Estes “círculos concêntricos” incluiriam um círculo interno cujos membros poderiam ter laços ainda mais estreitos do que aqueles que unem a UE existente; a própria UE; adesão associada (apenas mercado interno); e o nível mais flexível e menos exigente da nova Comunidade Política Europeia.

A principal “vantagem” para o Ocidente Coletivo é que todos os países desta “Europa” ficarão isolados da Rússia e da Bielorrússia, mas não está claro quais são as vantagens para os países da camada externa, uma vez que terão acesso limitado ou nenhum acesso ao Mercado Único, mas espera-se que abdiquem de parte da sua própria soberania nacional em favor de Bruxelas, perdendo autonomia e espaço de manobra num mundo multipolar.

Em Outubro passado, a Comunidade Política Europeia – um espaço de discussão que inclui líderes de países da UE, candidatos à UE, Suíça, Noruega, Reino Unido e até Arménia e Azerbaijão – reuniu-se em Granada para discutir um potencial alargamento do bloco. A reunião deveria reforçar a determinação, mas em vez disso aprofundou as reservas daqueles que nunca aceitaram a ideia de alargar a UE à custa dos actuais membros. Alguns membros já fizeram as contas e perceberam que, se o proposto alargamento da UE avançar, terão de pagar mais e receber menos do orçamento da UE: Os beneficiários líquidos tornar-se-ão contribuintes líquidos. Compreensivelmente, eles não estão muito entusiasmados com a perspectiva.

Embora o aumento da integração UE-NATO e a expansão para leste tenham criado novos lobbies poderosos e uma nova classe de eurocratas ultra-atlantistas, os estados membros da UE perderam qualquer aparência de autonomia estratégica e, portanto, qualquer oportunidade de proteger ou promover os seus interesses económicos e geopolíticos. Inicialmente, foi a classe trabalhadora dos países da Europa Meridional e Ocidental que suportou o peso da expansão da UE; depois, também a classe média começou a sentir o aperto. Actualmente, o PIB per capita da Itália caiu para o nível do Mississippi, o Estado mais pobre dos EUA; A da França é um pouco melhor, fica algures entre Idaho  e Arkansas, enquanto a Alemanha, o motor da economia europeia, se equipara ao de Oklahoma. Não é exatamente uma história de sucesso .

Embora os cépticos da UE se tenham tornado mais numerosos e expressivos nestes países, a sua influência política é limitada. Os seus adversários representam os interesses de uma nova elite política e económica que emergiu através da co-constituição material e simbólica do aparelho administrativo e burocrático da UE. Esta elite, através da repartição e desembolso de fundos, pode induzir o cumprimento ou recompensar a lealdade dos políticos. Ao controlar os cordões à bolsa, pode agir como rei em qualquer país da UE.

Escusado será dizer que esta elite partilha o habitus e a ideologia neoliberal das elites transnacionais mais à vontade em Londres e Nova Iorque, do que em Bruxelas. Seria ingénuo esperar que defendesse os interesses europeus. Na verdade, isso não acontece. Os países da zona euro, que há 15 anos tinham um PIB de pouco mais de treze biliões de euros, hoje aumentaram-no em dois miseráveis ​​biliões, enquanto os EUA quase duplicaram o seu PIB (de 13,8 para 26,9 biliões de euros), apesar da sua população ser menor. Segundo o Financial Times, em termos de dólares, a economia da União Europeia representa hoje 65% da economia dos Estados Unidos . Este valor é inferior aos 91% registados em 2013. O PIB per capita americano é mais do dobro do europeu e a disparidade continua a aumentar. Trabalho brilhante!

Se os líderes da UE são rotineiramente ignorados em favor dos líderes nacionais nas negociações internacionais, é porque a UE se enquadra na definição de tigre de papel. A unidade demonstrada face à guerra por procuração na Ucrânia não poderá ser sustentada por muito tempo e os seus principais arquitectos americanos e europeus deixarão de estar em funções dentro de um ano. A configuração política da Europa milita contra uma política externa e de defesa pró-activa. Assim, quando Borrell elogia a necessidade da Europa passar de um poder brando para um poder duro, ele convenientemente esquece que a UE não é um actor estatal. Tem alguns dos atributos de um Estado — personalidade jurídica, algumas competências exclusivas, um serviço diplomático e alguns países da UE têm uma moeda comum — mas, em última análise, é um híbrido e, como tal, não está equipado para jogar o “grande jogo”, como era designada no século XIX, a política de poder. E, francamente, não estará equipado para o fazer durante muitos anos. Uma “UE geopolítica” continua a ser pouco mais do que uma fantasia consoladora baseada no seu poder de atracção – a fila para entrar.

Laura Ruggeri, Nascida em Milão, mudou-se para Hong Kong em 1997. Antiga académica, nos últimos anos tem investigado revoluções coloridas e guerras híbridas.