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domingo, 3 de dezembro de 2023

SE ESTAMOS A VIVER NUMA ÉPOCA EXCECIONAL...

 Se estamos a viver numa época excecional, então devemos cuidadosamente rever todos os conceitos aos quais estávamos mais ligados. Devemos analisá-los criticamente, à luz das realidades emergentes e ver quais os que podem ser resgatados, quais devem ser reformulados e quais os que devem ser «deitados para o caixote de lixo».

Quando reflito sobre isto, a minha mente é imediatamente atraída pela palavra «contenção». Com efeito, as circunstâncias gerais, em cada sociedade e cada vida privada, tornaram-se de tal maneira voláteis, que nós devemos nos interrogar sobre a nossa «grelha de leitura» da realidade. 

Com efeito, os parâmetros que considerámos para avaliar a realidade  social, aqueles sobre os quais nos baseámos no passado, até mesmo no passado mais recente, ou se tornaram obviamente caducos, ou têm de ser reformulados, no todo ou em parte. 

As pessoas que não façam esse exercício, irão sofrer, nas condições de instabilidade e perturbação profunda que agora se estão a revelar. Elas irão  ser arrastadas/induzidas a tomar posições sobre as quais não tinham refletido previamente. 

Assim, em todos os aspetos da vida,  deve-se ser particularmente cuidadoso, não tomar os desejos pela realidade, não pronunciar juízos definitivos, sobre aquilo que parece ser, no momento. 

Dito isto, é verdade que as escolhas que fizermos poderão ser decisivas para nós, pessoalmente e socialmente. O que vi acontecer com muitos, é que tentam «encaixar» as inéditas situações, no molde envelhecido das suas ideologias. Seria este um caso para evocar a parábola bíblica do «vinho novo, em odres velhos».

As novas situações não têm «resposta» em escritos de filósofos, políticos ou economistas, que pensaram e escreveram em contextos totalmente diversos da atualidade. A única coisa de que podemos ter a certeza, é que não existem, em sociologia, economia, ou história, teorias preditivas verdadeiras, genuínas. As que são formuladas, correspondem apenas à visão do Mundo e ao desejo dos seus autores. Ora, esta visão do Mundo, mesmo que fosse muito adequada quando a escreveram, não poderia ter em conta toda a panóplia de descobertas e de ideias que se desenvolveram, entretanto. 

Num período de crise, como dizia corretamente Lenine, há semanas que são tão densas em acontecimentos, que parece que passaram anos. Esses acontecimentos são imprevisíveis no seu desenrolar. Mesmo que sejam previsíveis no seu desencadear. Por exemplo: uma guerra, pode ser previsível, ao se analisar as posições e movimentos das diversas potências. Mas, ninguém pode prever que uma tal guerra futura se desenrole desta ou daquela maneira. Que dure apenas uma semana, ou dez anos. Que dê a vitória inequívoca a um dos lados, ou que se arraste e esgote o lado mais forte. Que o lado mais forte inicialmente, mesmo que vença militarmente, acabe por experimentar o princípio da sua derrocada.

As situações de imprevisibilidade nos mercados são ainda mais patentes. Os que «pilotam» os bancos centrais, munidos de poderosos instrumentos para agir sobre mercados financeiros e a economia geral, não têm o poder que se lhes empresta. São o aprendiz do conto do «Aprendiz -feiticeiro». As economias vivem sujeitas ao caos completo, onde sábias e prudentes decisões são impossíveis de tomar. Os dirigentes efetuam meros «passes de mágica», de tal modo que o vulgo acredita que eles detêm enorme poder. 

A atitude mais inteligente - neste contexto- é de garantir aquilo que nós, pessoalmente, a nossa família, a nossa comunidade, possuímos enquanto meios de preservar a vida. Manter e aumentar a nossa capacidade de aguentar nos tempos mais difíceis das nossas vidas, deveria ser a preocupação primeira.  As «sereias» que apelam para investimentos sumptuários, especulativos, que causam um desequilíbrio, ou que diminuem os ganhos e as hipóteses de ganho, são de rejeitar. Por contraste, as iniciativas para preservação do adquirido e para o aumento da nossa autonomia (exemplos: produção própria de alimentos, geração de energia, etc.) tornam-se vitais, neste contexto. Também importa uma atitude mais racional com a saúde: a boa condição física é ainda mais importante, nas circunstâncias em que colapsam as estruturas e os meios de saúde.

A nossa energia deve estar centrada nos pontos acima, sendo também muito importante não olharmos de forma acrítica para as informações que nos chegam aos ouvidos ou aos olhos. Neste contexto, a informação da mídia é mais enviesada do que nas situações anteriores. Estamos perante ondas sucessivas de condicionamento de massas, primeiro com a histeria do «COVID», depois com a violação sistemática da nossa integridade, a imposição de «vacina», a perseguição da dissidência e a instalação duma censura férrea, além de uma vigilância total. Esta fase antecedeu e preparou as pessoas para aceitarem - perante as guerras da Ucrânia e de Gaza - no meio de campanhas de histeria sucessivas, a transformação do enquadramento legal.  A «legalidade democrática» foi varrida de uma penada, para se reprimir "legalmente"  dissidências e glorificar o bárbaro esmagamento de populações civis, incluindo a ressurreição do conceito, medievo e nazi, de  «culpa coletiva».

Com o medo instilado, pretende-se que as pessoas deixem de pensar, apenas reagindo, apenas seguindo os instintos de gregarismo e de xenofobia. Muitas, adotaram um comportamento de simulação, ou ocultaram a sua posição verdadeira, por medo de serem excluídas, de serem apontadas a dedo. 

O cenário está completamente montado e, aliás, a peça de teatro já começou a desenrolar-se diante dos nossos olhos. Mas, como não compreendemos o enredo desta peça, nem queremos fazer um esforço para o compreender, somos incapazes de protagonismo, de sermos proactivos. 

Se algo de verdadeiro existe nas palavras acima, creio que devemos refletir como agir para modificar este estado de coisas. Para agir maduramente, não devemos ocultar a realidade a nós próprios, nem cair na armadilha da propaganda, de uns ou de outros. Precisamos ser capazes de nos distanciar sem trair as nossas convicções. Não devemos tomar a nossa ilusão, o nosso desejo, pela realidade. Sobretudo, devemos guardar abertura a cada momento; não desenvolver sentimentos de ódio, em relação aos que estejam no polo diametralmente oposto. Sermos adultos, propriamente, quer dizer que somos capazes de analisar e não descartar outros pontos de vista, que nos pareçam - à primeira vista - errados, ou equivocados; por vezes, nós é que estávamos equivocados e os outros  tinham - afinal - razão. 

De nenhum modo, uma atitude sectária se justifica, neste contexto: A atitude inteligente é realizar alianças, o mais amplas possíveis, aos vários níveis. 



domingo, 15 de maio de 2022

HOMENAGEM A UM HOMEM, POETA DE CORPO INTEIRO

 


O livro de Poesia de Maximiano Gonçalves, intitulado «Ouvir a Palavra», motivou-me a escrever o texto seguinte. Não atribuo nenhuma responsabilidade ao Autor pelo que eu escrevi. Somente, desejo indicar que este livro é dos poucos (seja de poesia, ou de outro género) que me tem estimulado a pensar. Tentei verter por escrito todo um emaranhado de sentimentos e pensamentos, que me assomam lendo os versos inspirados do seu Autor.      



Como eu amo a música! Como eu amo a poesia! 

Poesia é música, disso não tenho dúvida. Estar à escuta da palavra é somente a primeira e maior virtude do poeta. Estar dentro da palavra significa estar para lá do que explicitamente ela nos transmite: a palavra segundo a «definição do dicionário» é uma coisa, mas a palavra enquanto Verbo é outra. Esta segue até ao infinito, até aos confins que o criador do discurso (poético ou outro) se abalança encontrar-lhe. Por tal motivo, «em busca da palavra perdida», se desfiam horas e dias inteiros. Mas essa vã procura, essa obsessão esquisita, também tem um lado prático. É que a palavra é como o barro; pode ser esculpida com maior ou menor esmero, arte e técnica. Um indivíduo pode esculpir a palavra, como um escultor pode moldar no barro uma obra, que - eventualmente - será transposta para o bronze. Mas, também, encontramos, quase em bruto, pequenas esculturas que são «arte popular», que nos transmitem a vibração genuína duma emoção; aquela que passa misteriosamente das mãos do seu criador, ao indivíduo que dá com tal obra-prima de «arte popular».

É assim que eu vejo a arte em geral, como representação do universo interno do criador, mas em diálogo com a realidade do mundo. Esta noção da realidade, que nos concita a atenção e, mais do que isso, a consciência do que vai pelo mundo, pode ser perdida temporariamente ou permanentemente, mesmo pelos mais talentosos espíritos científicos, artísticos, literários ou filosóficos. Porém, é para mim uma questão muito central da minha produção literária, tanto em poesia, como noutros textos (filosóficos, de análise política, social, etc.). A questão que me parece importante é de estar conectado com o real, com a vida tal como ela é, tal como se pode vislumbrar na aparência, ou apreendê-la nas profundidades. Confundir realismo com materialismo, é um erro crasso; pode-se ser muito realista e ter um fundo de espiritualidade, pode-se ser materialista e estar completamente fora do real!

De tudo podemos discorrer, mas somente ficam as palavras que se vêm inserir na nossa vivência profunda. Só consigo decorar poemas, não apenas que esteticamente me satisfazem como, sobretudo, que me dizem muito, que se adequam aos sentimentos, aos acontecimentos, às vivências da minha vida. 

O poema «É bom inventar rios…». É curto, tem a forma dum epigrama; é daqueles que eu gosto de decorar, de tal maneira exprime na forma sintética da poesia, um humanismo que não necessita de extensas explicações intelectuais, porque é genuíno.


É bom inventar rios

E barcos que os atravessam

Lentos e esguios…


E pontes que levem gente

E não apenas fios

Tecidos por desafios

De material que não sente.


terça-feira, 29 de dezembro de 2020

PIERRE-CHARLES COMTE (1823- 1895) UM MESTRE POUCO CONHECIDO


         Pierre Charles Comte *(1823-1895) - Auto-retrato


Se consultarmos a página da Wikipédia que lhe é dedicada, verificamos que foi um artista muito bem inserido na cultura e nos gostos do século XIX. Em particular, várias obras referentes a episódios da história são realmente notáveis.

Gosto, em particular, de duas:

- A coroação de Inês de Castro (presente no Museé de Beaux-Arts de Lyon), quadro a óleo de cerca de 1849, mostra uma cena esplendorosa, no paço real, com toda a pompa e a múmia de Inês. Um nobre ajoelhado, beija a mão cadavérica, como gesto de submissão ao poder de D. Pedro I.


                       

                         

O contraste do luxo palaciano com a imagem da morta não poderia ser mais surpreendente e faz tremer com o horror da cena. 

A história de Inês e Pedro é um episódio da história de Portugal sobejamente conhecido, descrito por poetas e prosadores, até mesmo usado como tema para ópera.   

O outro quadro, relaciona-se com a história de Inglaterra, o Processo de Jeanne Gray (Lady Jane): Lady Jane, rainha de Inglaterra por 9 dias, foi vítima das intrigas que levaram ao seu encerramento na torre de Londres e ao seu julgamento, tendo a rainha Mary feito executar Lady Jane, por uma suposta conjura, destinada a derrubá-la do trono. 

                   

Esta tela tenta descrever uma cena do processo, como se lá estivéssemos: De pé, Lady Jane, dá a mão a beijar a um cortesão. Este, terá sido encarregue pela rainha Mary de endereçar ao tribunal a acusação de conjura, mas ele sabe perfeitamente que esta é forjada. Isso explica o facto de se ajoelhar diante de tanta nobreza e inocência da jovem Jane Gray. É assim que interpreto a cena, dado que tanto juízes, como eclesiásticos, estão numa postura de expectativa surpreendida.


A pintura histórica foi o forte de Pierre-Charles Comte, mas tal não deve surpreender, se virmos a abundância desta temática, quer na época napoleónica, quer na época imediatamente a seguir. David, Gros, Géricault, Ingres, Delacroix ... foram todos eles pintores célebres e produtores de quadros com temas históricos.
O que me impressiona mais nas obras de Pierre-Charles Comte é o seu tratamento da cor, o seu claro-obscuro e a teatralidade das cenas. O resultado pode ser impressionante, ainda nos nossos dias, pelo seu realismo, como se o artista tivesse presenciado as cenas que pintou.


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*Autoretrato, guardado na família Gandon-Banet.



domingo, 25 de outubro de 2020

A ESTRANHA PROPRIEDADE DE NÃO NOS COMPREENDERMOS

                     

Quando olho através da janela e vejo o céu, plantas, uma cerca... estou a ver algo real. Mas as palavras que escrevi, agora mesmo, não descrevem sequer o real. Não poderia esse real ser descrito por uma filmagem pois, o que uma filmagem mostra, é uma paisagem sob determinado ângulo (escolhido pelo indivíduo que está filmando) e as imagens captadas estão «congeladas» num dado momento do tempo. O filme não capta as transformações que ocorrem ao longo de meses, nem tão pouco pode captar o micro detalhe do que se passa no interior das estruturas, do solo, das plantas, etc... O problema que tenho  -  todos temos afinal - é que o real está para além do trivial. Temos aqui uma situação paradoxal. Não queremos especular, queremos nos limitar ao que «vemos», ao sensível. Mas, sabemos que existe - na realidade - muito, para além do que nos é oferecido conhecer através dos sentidos. Porém, logo que começamos a pensar em processos atómicos ou cósmicos, nas escalas do espaço e do tempo, começamos a especular, entramos no domínio da especulação.  

Há uma distância irredutível do homem à realidade do mundo, mas também à sua realidade interior, afinal a base do seu ser, da sua personalidade. Não nos é suportável a introspecção, senão por breves momentos, a introspecção permanente é caminho certo para a loucura, já é um sinal de loucura. A subjectividade existe, porém: estamos sempre a reelaborar o nosso passado, somos seres dotados de um cérebro extremamente sofisticado, completamente diferente, nos princípios lógicos e no modo operacional, dos computadores da nossa tecnologia. O cérebro é um órgão, é um componente do corpo, nós «raciocinamos» com o corpo todo, não apenas com o cérebro. O cérebro tem a  propriedade única de integração das diversas partes do organismo, permitindo a homeostasia, esse maravilhoso poder de manter um determinado estado interior.

Tal como a homeostasia de funções «orgânicas», como o intervalo de flutuação dos níveis de glucose no sangue, ou de hormonas, a homeostasia das funções emotivas e cognitivas é realizada através de operações no cérebro. Isso traduz-se pela activação ou inibição de certa categoria de circuitos neuronais, etc., mas também pela própria modificação estrutural, visto que estamos sempre a fabricar dentrites e mesmo neurónios, numa arquitectura extremamente complexa e bem organizada. 

A nossa fala espelha de um modo grosseiro a complexidade do mundo. É característico do mais simplista e equivocado pensamento, confundir a «etiqueta», o nome dado às coisas,  com as coisas. Mas, todos nós - insensivelmente - fazemos isso, e com grande frequência, porque o nosso cérebro gosta de atalhos, gosta de poupar energia; evita gastar energia num grande número de operações. 

Talvez o problema da nossa abordagem ao real, esteja relacionado com a hiper sofisticação dos nossos modos de viver e de pensar. Talvez sejamos construídos basicamente com uma estrutura igual ou equivalente à dos primeiros homens modernos, mas o nosso cérebro e o nosso ser de sapiens contemporâneos está confrontado, talvez desde o nascimento - certamente, desde os primeiros anos de vida - com os desafios da complexidade. Falo de complexidade social, relacional, sociológica, cultural... Nós conseguimos, graças à nossa «incompletude» (a propriedade da «neotenia»), nos adaptar ao mundo tal como ele é, evoluir e transformar múltiplos aspectos (físicos, emocionais e intelectuais) do nosso comportamento. Mas, o homem, durante perto de 300 mil anos (e só considerando o homem anatomicamente moderno), viveu num mundo completamente diferente, onde as interacções sociais significativas eram muito poucas, mas - talvez - mais intensas. As questões de sobrevivência eram sempre prementes (não havia um excedente acumulado pelo agrupamento humano). Certamente, os comportamentos e os cérebros destes nossos antecessores estavam totalmente mobilizados para atender às tarefas relacionadas com a sobrevivência.  

No entanto, a nossa capacidade de inovar estava presente, a transformação - progressiva ou brusca - das comunidades humanas, significou uma série de desafios inéditos, para os contemporâneos dessas transformações. A  vertente do conhecimento e exploração da realidade mais desenvolvida na nossa espécie, porque verdadeiramente importante, foi da realidade social. Os indivíduos percebem que pertencem a uma certa comunidade, que têm de lutar dentro dela para que lhes seja reconhecido um dado estatuto: a realidade social foi - desde muito cedo -  apreendida como vital, mais importante que o conhecimento do entorno natural. 

Por mais que certas teorias o neguem ou o menosprezem, o ser humano sempre foi um animal social. O tipo de relacionamento que os humanos estabelecem em sociedade evolui, mas a espécie humana, em si mesma, não é concebível sem uma estrutura social complexa. Graças à plasticidade cerebral, desde os alvores da humanidade (e mesmo das espécies que a precederam, há milhões de anos) e até hoje, podemos dedicar trabalho cerebral a resolver um problema matemático, apreciar uma obra literária, ou a construir um arranha-céus... mas, não perdemos a capacidade de nos relacionar entre indivíduos, de nos apaixonarmos, de termos conflitos pessoais, de sentirmos afecto, ternura, repúdio e aversão... O cérebro emotivo está na base do desenvolvimento do cérebro racional. Somente devido a uma espécie de soberba é que muitas pessoas, incluindo as mais inteligentes, colocam as funções racionais acima das funções de gestão das emoções. A situação, hoje, pode ser menos nítida; mas, ao longo dos últimos 500 anos, foi esta a posição dominante. 

A incapacidade do homem em se perceber a si próprio, apesar de ter usado sua inteligência para resolver tantos mistérios da natureza e desenvolvido tantas técnicas com base nestes saberes, é o que há de mais estranho. Mas, isto não se deve à escassez de obras de psicólogos, filósofos, etc... que se debruçaram sobre os diversos aspectos do problema, avançando com teorias, mais ou menos convencionais ou revolucionárias. A literatura sobre o assunto é enorme e fisicamente impossível de conhecer em pormenor. Somente podemos ter alguma ideia das teorias em voga; podemos intuir como as pessoas assimilam tais teorias; como são referidas na media, nas obras de divulgação e no ensino.

Nos últimos 150 anos, a negação da espiritualidade recebeu o beneplácito do mundo científico-académico, ao contrário das épocas anteriores. O materialismo tornou-se - de facto - a filosofia implícita nos meios científicos. A espiritualidade em si mesma, não implica maior ou mais aprofundado saber sobre a nossa subjectividade, sobre o eu emocional.  Mas, o materialismo bloqueou qualquer progresso neste domínio, insistindo em modelos completamente absurdos. Penso que se pode falar de «obstáculo epistemológico» a este propósito, sobretudo em relação ao reducionismo, associado ao materialismo. Esse modo de proceder consiste em reduzir/degradar ao nível de impulsos electro-químicos, de conexões neuronais e de influências hormonais, tudo o que esteja relacionado com o eu emocional / relacional e seu modo operativo. O modelo da «actividade racional», pelo contrário, foi o do computador, a analogia mais fraca que se possa imaginar, mas que continua, como mito nas sociedades urbanizadas (o nosso «computador interior», o cérebro). 

As neuroses, o fechamento sobre o ego, o narcisismo, o egoísmo, o hedonismo, todas estas patologias dos indivíduos são, em simultâneo, sociais. São características de uma sociedade alienada e alienante. Os indivíduos, hoje em dia, não encontram, nem as referências tradicionais (que  reforçavam as normas sociais, mas também davam segurança ao indivíduo), nem constroem novas referências, adaptadas à época. Por isso, experimenta-se um mal-estar de fim de época. Nestes tempos, tornam-se óbvios sintomas de decadência que surgiram precisamente noutros momentos, dos mais perturbados da História: O relativismo moral impera, confunde-se o dogmatismo com valores, predomina o raciocínio e acção segundo padrões identitários. Estranhamente, ou talvez não, reencontramos atitudes e ideologias muito semelhantes, noutros momentos de crise civilizacional. Nomeadamente, nos últimos tempos de Império Romano do Ocidente, na decadência dos dois super poderes ibéricos no Século XVII, na véspera da Revolução francesa de 1789, da Revolução Russa de 1917, na Europa, durante o imediato pós-guerra de 1918/1919, etc... 

Neste quadro, não admira que as pessoas estejam desorientadas e possam desenvolver comportamentos «anti-sociais», de uma ou outra forma. A desagregação na sociedade dá-se sempre a vários níveis, que se reforçam mutuamente. 

É como um edifício que entra em ruína. A decadência ocorre, em simultâneo, em várias estruturas: tanto na fachada, como nos alicerces; tanto na consistência do cimento, como na podridão das vigas.

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 Não preconizo «um remédio» social, nem individual. Mas gostaria de debater* estes assuntos com pessoas, quer tenham opiniões concordantes ou discordantes comigo. 

[ * Se o/a leitor/a tiver interesse em fazê-lo, pode inserir seus comentários. Pode colocá-los livremente neste blog. Apenas retirarei conteúdos manifestamente insultuosos e ofensivos.... ]


sábado, 17 de outubro de 2020

O COIOTE CAI NO PRECIPÍCIO...

Certas pessoas, auto-designadas especialistas em economia e em tudo o mais, utilizam sempre o futuro condicional, para descrever qualquer cenário que apresentem. Têm de inspirar receio e, ao mesmo tempo, incerteza. Por isso dizem: «a crise virá, se ...». Falam sempre no futuro condicional.
Ora, no mundo económico - como no dia-a-dia corrente - as coisas são ou não são. Aqui, não há "gato de Schrödinger"(1).
A economia mundial está numa rota irreversível de ruptura, depressão, crise sistémica, ou não está. Se não está, existe a possibilidade, mesmo que remota, de evitar o pior ... Mas, se é mesmo uma crise estrutural, sistémica, não há forças, por mais poderosas, que possam reverter esta situação (2). 

                                    
                              Coiote Wile E. caindo num precipício

Há quem esteja ainda na ilusão, porque estamos no início da queda, como o coiote, que fica por um instante em suspensão no vazio e, quando olha para baixo e vê que não existe solo a sustentá-lo, inicia a sua descida a pique no precipício, até se estatelar lá no fundo, com um estrondo...
Os mercados especulativos experimentam euforia, pedalando no vazio - como o coiote - muito felizes(3) por estarem em subida, quando - na verdade - se assiste à queda generalizada do valor de todas as divisas,  ao esvaziamento de seu valor remanescente. 
Mas, num dado momento, é inevitável as pessoas se aperceberem de que não resta qualquer valor nos bocados de papel, quer sejam de dinheiro líquido (cash), acções, obrigações, derivados, ou de outro produto financeiro.  Por essa altura, a crise vai agravar-se, haverá «crashes» e falências em série, a hiper- inflação vai aparecer em cena e não vai ser uma cena boa. 
Este cenário não é condicional: Não é no caso da economia continuar a degradar-se. Pois ele já está inscrito no presente, já está traçado na realidade crua da economia e finança mundiais. 
Poucas pessoas sabem, ou suspeitam sequer, da iminência de uma mudança das "regras do jogo" (4). Provavelmente, irão anunciar as tais mudanças a posteriori, depois de as terem efectuado, reprogramando os computadores num fim-de-semana, como se fosse tudo muito simples e banal. Entretanto, os bancos comerciais, os fundos especulativos, as grandes fortunas, que foram avisados há muito tempo, já tomaram medidas, para que não haja consequências nefastas para eles.
É a realidade das forças a ditar o rumo das coisas. Como a força da gravidade, que faz com que o coiote caia pelo precipício abaixo ...

NB: tudo indica que os poderes globalistas, sob a batuta do FMI, estão a negociar agora  «um novo Bretton Woods». Veja:

https://www.imf.org/en/News/Articles/2020/10/15/sp101520-a-new-bretton-woods-moment


https://www.imf.org/external/mmedia/view.aspx?vid=6200738336001


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(1) O gato de Schrödinger é um gato que este físico imaginou para explicar que - segundo a teoria quântica - um objecto podia estar num estado ou noutro («gato vivo ou gato morto»), em simultâneo. O estado do objecto apenas se concretizava quando o experimentador o observasse.

(2) A não ser que...  laboratórios e  cientistas dos mais avançados, tenham encontrado o processo de reverter o tempo e possam ir, em sucessivos pontos do passado, corrigir os erros cometidos por uns e por outros, e depois regressar ao tempo presente. Isto é uma demonstração pelo absurdo.

(3) Entretanto, os manipuladores não hesitam usar stars da pornografia para convencer as pessoas a jogar na bolsa.

(4) Por exemplo, a transformação de todos os contratos indexados ao LIBOR. Porquê? porque este índice foi de tal maneira manipulado pelo pequeno grupo de grandes bancos que o estabelecia, que as entidades de supervisão decidiram acabar com ele em 2021. Esta transformação vai implicar mudanças... 


sábado, 4 de julho de 2020

MAQUIAVEL OU O DISCURSO DO REALISMO POLÍTICO


Encontra-se, neste vídeo (falado em francês), uma descrição sóbria e lúcida da teoria política de Maquiavel, o filósofo político moderno por excelência. 
O facto dos termos «maquiavélico» ou «maquiavelismo» terem conotação claramente negativa, pelo menos no discurso corrente, mostra como a «elite» pretende ocultar a sua própria forma de agir em política. 
Se bem compreendi, a tese do autor deste vídeo seria a seguinte: 
- Se olharmos para a classe política à luz de «O Príncipe» (a obra-prima de Maquiavel), este manual será o revelador da forma como a elite pensa a «arte de governar». Então, poderemos mais facilmente descodificar as suas acções. 
Basicamente, os discursos de circunstância, ou ideológicos dos políticos, são vertidos na matriz da «República» de Platão: A tarefa do poder político consistiria em tornar a sociedade e os indivíduos mais perfeitos, mais próximos do modelo ideal de «república filosófica». 
Porém, o verdadeiro esteio teórico dos políticos - de direita ou de esquerda, liberais ou autoritários - é o realismo político de Maquiavel: Os homens são assim como são; de nada serve tentar mudá-los, deve-se antes aproveitar o conhecimento que temos deles, para os governar. A arte de governar é aquilo que dá a ilusão de que o líder vai ao encontro dos desejos do povo, quando - na realidade - apenas está a manter as condições de exercer o poder.

sábado, 5 de outubro de 2019

ROTEIRO PARA ESCAPAR DA MATRIX/LABIRINTO [parte III]





Nas espécies animais mais próximas da espécie humana do ponto de vista evolutivo, os grandes símios antropóides, a existência de comunidades estruturadas de modo muito idêntico, de geração em geração, reforça a noção de que existe uma determinação genética nos seus modos de se relacionarem e de se estruturarem em sociedade. 

Nos gorilas, a estrutura social é diferente da sociedade dos chimpanzés, e nestes difere grandemente da dos seus «primos», os bonobos. Porém, a distância genética entre eles não é muito elevada. 
Estão todos muito dependentes do grupo para a criação e integração dos infantes e dos jovens. A sociedade está estruturada de modo hierárquico e familiar nos gorilas, hierárquico e supra-familiar ou de família alargada nos chimpanzés, e não-hierárquico,  sexualmente promíscuo, nos bonobos.

A estruturação dos grupos pré-humanos - ou homininos - pode ser inferida pelos vestígios quer da anatomia, quer de restos arqueológicos, permitindo inferir a estrutura dos bandos, a partir de uma série de parâmetros. 
Mas, só podemos ter a certeza sobre os detalhes dos modos de organização social, na nossa espécie - o Homo sapiens - a qual terá cerca de 300 mil anos, segundo as descobertas mais recentes.
A estrutura familiar foi - em muitos casos-  o único nível de complexidade que muitos humanos das épocas mais remotas conheceram. 
Isto não invalida a existência de agrupamentos supra-familiares, como os clãs ou as tribos, mesmo nas etapas anteriores ao «homem anatomicamente moderno». 
Porém, a estruturação das sociedades em conjuntos maiores é típica das épocas pós-paleolíticas: neolítico, calcolítico, bronze, ferro..
Nas sociedades agrárias e pastoris iniciais, já existia uma hierarquia dos géneros, das idades, do poder e da riqueza. 
As relações eram - no entanto - quase «cara a cara», havia um conhecimento directo dos chefes pelos súbditos e vice-versa. A complexidade crescente e o tamanho dos conjuntos humanos, veio trazer uma distância cada vez maior entre os dominantes e seus subordinados. 
Nas sociedades do paleolítico e do início do neolítico, aquele que se impunha pessoalmente como chefe do bando, do clã ou da tribo, seria quase sempre um homem forte e respeitado pela sua coragem e argúcia. 
Nas sociedades agrárias mais tardias, como no Egipto, a casta de sacerdotes dominava o poder, pondo e dispondo de monarcas divinizados. 
Irrompe, nas sociedades humanas, a partir de há cerca de oito mil anos, a religião organizada e de estado, um elemento decisivo de organização da sociedade. Nesta, o exercício do poder estava integrado na ordem cosmológica havendo, portanto, uma vinculação comum a esse poder, como emanado directamente da ordem divina. 
Só num período muito curto e recente a humanidade não esteve submetida a um poder patriarcal, autoritário, fortemente apoiado na religião. 
O restante, foi o período das sociedades pré-históricas (cerca de 300 mil anos), mais o  longuíssimo período superior a 5 milhões de anos, em que os homininos se foram afastando do ancestral comum a estes e aos grandes símios. 
Claramente, isto mostra-nos que os comportamentos sociais têm uma profunda raiz na nossa história propriamente biológica. 
Também as formas de organização das sociedades humanas, ao longo da História e que antecederam a nossa civilização contemporânea, mantiveram, de alguma forma, relação com este fundo comum da espécie.

Para inúmeras gerações, a questão central da vida não era a liberdade do individuo, mas a subsistência. O conseguir alimento suficiente para si e para os filhos, era a preocupação quase exclusiva de inúmeras gerações de homens e mulheres.  
A questão da submissão ao grupo ou gregarismo nasce dessa situação. 
Nunca foi fácil o ser humano ou hominino sobreviver. Nos primeiros milhões de anos, os homininos tinham de contentar-se com o que os grandes carnívoros deixavam das carcaças das prezas mortas por eles. 
Existem muitas indicações de que a humanidade (e as formas que a antecedem) vivia na carência ou no limiar desta, além de que eram muito mais frequentemente presas do que predadores: não faltam evidências disso, desde marcas de dentes de grandes carnívoros nos ossos fossilizados de homininos, até às composições isotópicas dos dentes, que nos dão uma ideia da composição da sua dieta. 
As estimativas da densidade populacional, correlacionadas com a  abundância ou escassez de alimento, mostram uma humanidade no limiar da fome em vastos períodos históricos. 
Tem de compreender-se então o gregarismo como uma tendência forte, no ramo da evolução animal ao qual pertencemos. Forte, no sentido de ter havido muitas forças no entorno dos indivíduos, que favoreceram este comportamento, que até o reforçaram com dispositivos sociais (as castas, as classes, as ordens...) e com uma super-estrutura ideológica (as crenças, os mitos, as religiões, as ideologias...). 
Mas, as coisas são muito mais complexas, pois em simultâneo, surgem forças que se exercem no sentido contrário. Estou a referir-me à  plasticidade do comportamento humano, que alguns assimilam ao «livre arbítrio» mas que - afinal - se pode resumir à capacidade de auto-determinação do indivíduo, em relação ao grupo no qual está inserido. Esta liberdade face ao grupo, obviamente, tem mais oportunidade de se exprimir e desenvolver numa sociedade onde exista uma certa abundância, ou onde os indivíduos não estejam tão constrangidos, tão dependentes do entorno social, para a sua simples subsistência. 

Os ideólogos do individualismo colocaram as liberdades e garantias individuais como direitos inerentes e inalienáveis de todos os humanos, claramente acima de quaisquer direitos de grupos. 

Os direitos humanos foram assim entendidos como coisa absoluta, independente das sociedades. Nalguns filósofos, foram tidos como independentes da contribuição dos indivíduos para as mesmas sociedades.

Porém, pouco tempo depois, desenvolveram-se regimes totalitários, como o nazismo e o bolchevismo, em que o indivíduo era subordinado ao Estado todo-poderoso.  

As guerras e enormes destruições ocorridas conduziram ao Direito Internacional, aos princípios da ONU, à sua Carta e Convenções, aos organismos supra-nacionais. Infelizmente, todo o edifício está fortemente posto em causa pela própria utilização abusiva dos poderes dominantes, que violam impunemente esta legalidade internacional. 

O gregarismo é um mecanismo biológico e não adianta muito contrariá-lo. Mas, deve-se compreender que a manipulação deste gregarismo, que está na nossa biologia, é um dos ingredientes da propaganda ou das «relações públicas». Esta manipulação está integrada no âmago das nossas sociedades, condicionando de forma inevitável praticamente todas as pessoas. 
Através de mecanismos psicológicos infundem a ilusão nas pessoas de uma liberdade no consumo, na política, na religião, etc. Isto consiste, claro, num processo hábil de neutralizar as salvaguardas racionais e a verdadeira autonomia dos indivíduos, sem que estes tomem consciência disso. 
A questão da propaganda (ou «public relations») na sociedade contemporânea será tratada, em pormenor, noutra parte.   



sexta-feira, 4 de outubro de 2019

ROTEIRO PARA ESCAPAR DA MATRIX/LABIRINTO [parte II]

                           

Quando me decidi a escrever algo do «sumo» da minha experiência, relativamente a questões que só superficialmente são tidas como do foro íntimo - a consciência, a autonomia do indivíduo, a responsabilidade individual e social - não estava querendo dar «lições de moral», mas antes motivado pelo desejo de arrumar - na minha própria cabeça - conceitos e experiências. 
Depois descobri que, ao arrumar este conjunto de questões, estava a tornar tudo muito mais claro, na minha mente. Este era um «fio de Ariadne» que me poderia conduzir, no futuro, para fora de situações embaraçosas e de constrangimento, como acontece nas vidas de quase todas as pessoas. 
Este «fio» talvez seja demasiado frágil e talvez apenas uma hipótese. Porém, se tal hipótese se confirmar, mesmo que só eu consiga recorrer a ele para sair do labirinto, já é muito. 
Para si, leitor/a, isso significa que o/a leitor/a pode encontrar o seu próprio método, também! Não será isto uma boa notícia?  

As pessoas todas precisam de um «vestido aureolar», uma roupa invisível que proteja a nudez do seu ego. Elas deslocam-se na sociedade, exibindo esse traje, embora estejam nuas, face a alguém com o olhar ingénuo duma criança. 
É curioso ver as pessoas imbuídas das suas roupagens e adereços, como se fossem personagens de teatro, ou de ópera. Serão elas capazes de descolar de suas próprias «representações teatrais», verem-se a si próprias e o papel que estão desempenhando?
- Os personagens da história (os monarcas, chefes militares, etc) construíram deliberadamente um «avatar» de si próprios, um ser mítico, que os súbditos adoravam, um símbolo, algo que não tinha realidade, senão na imaginação dos seus adeptos.
Assim procedem, igualmente, os «ídolos» do desporto, do cinema, da música pop, da política-espectáculo, enquanto manipulação hábil desse «vestido-aureolar». 
Do lado dos adeptos, do lado das massas, existe um desejo, não-satisfeito, de amor, de um amor impossível de satisfazer porque é o amor que uma criança com poucos meses de vida possui/recebe do seio materno, que o nutre e lhe dá tudo, calor, carinho, segurança, prazer. 
A nostalgia dos humanos pelo seio materno é universal. 
Aquilo que não é tão universal é um desejo sôfrego pela satisfação do retorno ao seio materno, mesmo que seja de modo totalmente simbólico, ou o mais  irrisório, até. 
Mas devemos compreender que, em larguíssima escala na sociedade, existe uma regressão infantil de certo número de pessoas. São estas pessoas com grande pulsão para «se entregarem», que procuram uma identificação com um ídolo. Elas colocam-se (interiormente) na postura do «bebé que mama o seio materno». Isto não deveria surpreender, pois estas pessoas não conseguem encontrar na sua vida - que, elas próprias desprezam - algo que supere a quase perfeita felicidade do bebé. É como uma droga, como a «soma» do romance de Aldous Huxley.  E a isto, pode chamar-se alienação.

Note-se que, quanto mais frustradas, mais se agarram à sua «droga» preferida: numas, pode ser  mesmo «droga» no sentido usual de substância aditiva. Noutras, pode ser a identificação com e adoração do ídolo. 
Tal mecanismo é patológico, na medida em que vai escamotear a realidade: o ídolo, não é assim na realidade, mas é essa a imagem retida pelos adeptos que o adoram. 
Além disso, o reforço constante da imago do ídolo, na media popular de massas, cria e alimenta em permanência, o mecanismo de identificação com ele: os adoradores recebem através da imago, um pouco de sua aura, do seu poder mágico, etc, etc.

As pessoas podem estar de tal maneira reprimidas ou anuladas, que não têm a coragem - nem pensam sequer - de viver a sua vida, construindo os seus projectos, aceitando desafios, lutando pelos seus objectivos. Assim, um pequeno grupo consegue perfeitamente manter controlo das restantes pessoas, dominadas. A receita é simples e muito velha: 
- Fazer com que a imagem da(s) pessoa(s) dominante(s) coincida com um mito pré-existente, vestindo a mesma roupagem do mito, ou levemente diferente mas facilmente reconhecida pelas massas, o vestido-aureolar de que falei acima.

Mas, nada disto seria possível se não houvesse, profundamente, em todos nós, uma tendência genética, hereditária, para o gregarismo. 
Esta tendência já está presente, antes do aparecimento dos humanos, no mundo animal, não sendo portanto uma contribuição original da evolução humana, mas antes uma herança ancestral, transportada pelos homininos até  Homo sapiens e presente em todas as culturas humanas, passadas e presentes. 

Irei desenvolver este tema no capítulo seguinte.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

ROTEIRO PARA ESCAPAR DA MATRIX/LABIRINTO [parte I]


                        
Por vezes, a mente é levada a construir complexas construções, as quais se apoderam do próprio funcionamento do indivíduo. A sua consciência é auto-adormecida, pela falsa evidência, aparência, ou ilusão, de que a realidade que o cerca se conforma ao modelo interior, por ele construído. 
Por outras palavras, temos a tendência - forte e generalizada - de interpretar as informações, tanto o que nos chega pelos sentidos, como o que entra pela via do «universo medio-cognitivo», duma maneira que se encaixe no modelo interior que construímos (não conscientemente) do mundo e de nós próprios.
Quando nos deparamos com evidência de que assim é (como escrevi acima) e, sobretudo, que o nosso ponto de vista não pode ser senão o ângulo subjectivo do indivíduo, que interpreta as coisas de acordo com a sua conveniência, podemos ser tentados a adoptar uma postura cínica, como: «se as coisas são assim, então irei fabricar a minha narrativa do real, de acordo com a minha conveniência».
Mas, a narrativa do real, não é o real. O real está para além do alcance da mente humana, não porque ele não exista... nem porque a mente humana seja conceptualmente deficiente, para alcançar esse conhecimento. Não, a impossibilidade de ver o real é ontológica. 
É aquilo que nos transmite o «Koan» seguinte: 

   «os olhos não podem ver-se a si próprios». 

Dirás «mas os meus olhos, que se reflectem no espelho e dos quais vejo a imagem, são reais, pois os fluxos de ondas luminosas que chegam aos meus olhos, o são»... 
Para lá da explicação imediata, de que os olhos não podem ver senão o reflexo (ou seja, ondas luminosas) ao espelho, de si próprios.... devemos ter em conta que o próprio tecido do real é composto de uma grande complexidade. 
Estaremos convictos de que «vemos» algo, que os olhos não nos estão a enganar, no instante preciso em que estamos a sofrer uma ilusão. 
Além disso, a realidade física, as leis da reflexão dos objectos num espelho, a luz que incide e é reflectida, o modo como isso acontece, etc...existem, mas, também elas não proíbem que determinados parâmetros variem, e isso fará com que o observador interprete - de modo erróneo - uma determinada imagem. 
Deve-se ler a discussão acima, não meramente no sentido literal, mas também metafórico: compreendemos que estamos permanentemente a nos enganar a nós próprios, com os «olhos da mente» coloridos por lentes, de cores diversas, como um caleidoscópio que varia, consoante nossos estados internos.
Poderia desenvolver e ilustrar longamente o que acima delineei, mas peço ao próprio leitor para fazê-lo, reflectindo, recorrendo a memórias da sua experiência pessoal, ao que tem ocasião de observar no mundo que o rodeia. 

Assumindo pessoalmente os pressupostos acima, como é que eu me poderei libertar desta «teia», desta «matrix», que me impede a ver o real sem «filtro», sem as ilusões de «óptica» decorrentes da minha própria pessoa? 
- Fará sentido procurar «sair de mim próprio»? 
- Será que posso me desdobrar em «observador do real» e «observador do observador do real»... num jogo de espelhos sem fim,  até ao infinito? 
- Não será melhor eu assumir que - faça o que fizer - estarei sempre imerso nesta matriz, neste vai e vem entre o mundo real e a minha percepção do mesmo, a qual não é «mecânica», «automática», mas sim uma construção? 
O meu cérebro tende a procurar «fazer sentido» da informação, porque foi feito para isso, geneticamente. 
Também  foi treinado pela educação, reforçando este comportamento na vivência de todo o tempo de vida... 
Mesmo que tente descolar do realismo ingénuo - a realidade é «aquilo que vemos» - o certo, é que não comando as minhas pulsões, o meu «fundo animal», etc, pelo que - no melhor dos casos, somente poderei «a posteriori», depois duma ocorrência, tentar compreender o que se passou. 
Também neste caso, terei necessariamente de recorrer às experiências passadas e ao armazenamento das mesmas na memória, não poderei raciocinar de outra forma, senão da maneira como me foi ensinado, condicionado, habituado a fazê-lo, etc. 
Em qualquer situação, estará sempre um subjectivismo irredutível, no centro da interpretação do que vejo.  

A consciência da não-distância ao real, da não-descolagem do personagem que observa, em relação à informação que lhe chega pelos sentidos (ou mecanismos cognitivos), poderá ser um princípio. 
Tendo em conta esta complexidade, não deverei ter a veleidade de saber tudo, nem de ter uma clara visão do que vejo. Terei uma grande prudência em relação aos meus juízos. Nomeadamente, de que sendo eu centrado, ancorado, na minha existência (e isto não pode ser de outro modo), não poderei abarcar a realidade numa visão global, como se fosse «Deus».
A impossibilidade de uma parte (nós) ter um total conhecimento e consciência do todo, no qual está incluída (o Universo), foi demonstrada matematicamente por Gödel, um dos mais brilhantes matemáticos do século XX.

Eu adopto a posição de um realismo prudente, não trivial, não «materialista», não ingénuo em relação à ciência, nem à sua ideologia (cientismo) que muitas vezes nela se esconde. 
Mas sou realista e reivindico esta minha opção, pois me parece ser a única que poderá alimentar uma abordagem saudável e construtiva dos problemas éticos, que se me deparam a cada passo.

Se falamos de ética e de consciência, estamos a falar de quê? 
- Estou a fazer algo pelo sentido do dever ou do prazer? 
- Estou a auto-avaliar a minha escolha, a minha acção, por valores que poderão ser adoptados pelo conjunto da sociedade e até do universo, ou estarei meramente a jogar com as palavras, para me «enganar» a mim próprio?

Muito poderia e deveria ser dito e escrito sobre estas questões, mas aqui irei apenas dar uma indicação de caminho:
- A consciência de si e a noção do real, da realidade, são dois aspectos indissociáveis do «ethos» do indivíduo; tal pode também ser aplicado, com modificações, à ética social, à «moral pública».


sábado, 2 de fevereiro de 2019

ALEGORIAS DA VERDADE




                                     
Provavelmente muitos portugueses - e não poucos estrangeiros que visitaram Portugal - reconhecem a famosa estátua, visível da rua do Alecrim, a caminho do Chiado, mais precisamente, no Largo Barão de Quintela. 
A célebre estátua é da autoria do grande escultor António Teixeira Lopes. 
Em primeiro plano, a Verdade, meia desnudada; em segundo plano Eça de Queiroz, que olha para ela e sustenta os seus panejamentos. 
A razão de ser desta composição relaciona-se com o lema do próprio Eça de Queiroz: «Sobre a nudez crua da verdade, o manto diáfano da fantasia». Era esta a definição do seu ideal estético, enquanto romancista da escola realista. 
Uma notícia descritiva detalhada pode ser consultada aqui.

Embora também dispense as roupas, a Verdade do quadro de Gérôme é bem diferente, no carácter:

                                       

Jean-Léon Gérôme (1824-1904), designou a sua composição de «A Verdade Saindo de um Poço Para Castigar a Humanidade». 
A obra data de 1896, da época do escândalo Dreyfus, um oficial do exército francês condenado - com base em falsas provas - por espionagem a favor da Alemanha. 
O dito oficial, de origem judaica, suscitou simpatias em muitos intelectuais, que viram nessa sentença a expressão do carácter anti-semita e reaccionário dos generais do Estado-Maior. 
A Verdade grita, indignada, furiosa, segurando uma chibata com a qual vai fustigar os que calcam aos pés a Justiça...
O facto da Verdade estar a sair de um poço, tem a ver com uma frase atribuída a Demócrito, «da Verdade não sabemos nada, pois ela está no fundo dum poço».

Afinal de contas, tanto Eça como Gérôme estiveram ao serviço da Verdade: não só eram ambos da escola realista, como ambos defenderam a inocência de Dreyfus e denunciaram a infame decisão do tribunal militar. 
Continuam, para além de suas qualidades artísticas próprias, a ser bons exemplos de coragem intelectual. 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

GREUZE: RETRATO DE JOVEM MULHER E OUTRAS OBRAS

The Athenaeum - The Polish Girl (Jean-Baptiste Greuze - )
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retrato de jovem mulher polaca

Encontrei numa coletânea on line este magnífico retrato de uma jovem polaca, por Jean-Baptiste Greuze  [1725 – 1805], cuja vida e obra mereciam ser melhor divulgadas. 

Além de ter retratado célebres personagens, como Mozart em criança, Benjamin Franklin e Napoleão Bonaparte, ele é o mais conhecido cultor de pintura de cunho moralista, que tinha como objectivo a elevação do senso moral, o aperfeiçoamento dos que contemplavam tais pinturas, sendo estas de cenas colhidas no quotidiano, nos meios de camponeses ou de pequenos artesãos. 
Tais escolhas, claramente influenciadas pela escola holandesa, foram incentivadas e objecto de preferência estético-ideológica do enciclopedista Denis Diderot.

                      
                                                         quadro moralizante (os ovos partidos)

Para Diderot, as telas de Greuze eram o modelo a seguir na arte, pois inspiravam o bem através do belo... Penso que esta parte da obra, justamente, envelheceu bastante, embora ela seja interessante para se compreender o «espírito da época». 

Pessoalmente, maravilha-me a qualidade de muitos dos seus retratos. O retrato de jovem polaca, da qual não se sabe sequer o nome, tem uma beleza intemporal pela expressão do rosto e do olhar, não somente pelas feições [ver imagem a encimar este artigo]. 

Greuze, como artista, tinha de ganhar o sustento a retratar aristocratas ou alta burguesia. 

                                       Greuze, Jean-Baptiste: Marquis de Saint Paul. 1765.
                                           O jovem marquês de Saint-Paul

Estas encomendas parecem-me menos cheias de vida, que os estudos com vista aos tais quadros moralizantes, ou os retratos de pessoas amigas

Image result for Jean-Baptiste GreuzeHead of a Young Woman  Jean Baptiste Greuze                                                    
 estudo de camponesa                                                                retrato de Sohie Arnould                                               

Não sou crítico de arte, mas parece-me que Greuze desempenha o papel de elo importante na escola realista francesa ... 
Ele liga o retratista Quentin de La Tour (1704 – 1788) a Camille Corot (1796 -1875), o qual, embora conhecido como paisagista, também produziu excelentes retratos