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domingo, 29 de dezembro de 2024

OPUS. VOL. III, 33: SOBRE A ARTE POÉTICA

Parede, 29/12/2024




A escrita é uma disciplina do espírito: Este, perante a página branca, pode hesitar porque tanta coisa está encerrada no coração e na mente que só tem embaraço na escolha. Esta página em branco, é como o silêncio em relação à música: Está na mesma relação.

Entre fileiras das linhas, as interrupções são como pausas musicais, são formas de destacar ou de isolar as ideias e os sons associados. A música também é feita de silêncios. A poesia está presente no aspecto gráfico. Na realidade, uma página de poesia é uma partitura implícita.

A originalidade do escritor ou do poeta reside na forma como molda a matéria. Essa matéria é a palavra, antes de mais; é mais a emoção da música que se desprende de uma frase, de uma estrofe, de uma peça, do que a emissão de um conceito ou sentimento. Pois o conceptual, o filosófico, o analítico são de outro domínio do discurso.

Quanto à poesia que integre aspectos filosóficos, ou até científicos, estes serão antes um ingrediente para a criação de uma atmosfera poética. Aliás, a «poesia racional», é quase sempre medíocre. Note-se que o discurso poético é dirigido à emoção. Se o objetivo do autor dum poema é veícular demonstrações racionais, o seu âmbito fica demasiado restricto, reduzido (auto-reprimido), porque a sua intenção primeira é outra: ele quer expor um conceito, ou uma moral, ou um ideário...

A verdadeira poesia pode estar patente num texto que não se apresenta enquanto poema, mas que dá largas ao sentimento e à musicalidade e que nos guiam na sua leitura. Os termos descritivos, racionais, ou lógicos, quando presentes, não constituem a trama do poema. São como a utilização de tais elementos durante o sonho. No sonho, as imagens e as ações são simbólicas.

Neste sentido, a poesia, tal como o sonho, é pessoal e intrasmissível. Muito do que se consome como sendo poesia não o será, verdadeiramente. Tem muito pouco a ver com as características que descrevi acima. Não existe poesia verdadeira, que não seja uma porta aberta para o subconsciente, para o sonho. Resta ela encontrar o leitor capaz de a decifrar. Não é um «desporto de massas». O que não a invalida, nem a diminui.

Tive ocasião de ler várias obras descritas como «poemas» ou «versos» que são apenas um artifício, mais ou menos conseguido. Mas a poesia precisa de verdade. Pode ser uma verdade interior, como em modo de confissão ou de introspeção. Para eu sentir o sopro poético numa obra, tenho de sentir que existe nela vibração e que esta vibração em mim ressoa.

Pode tentar-se descrever ou analisar criticamente as emoções associadas ao poema. Pode-se conseguir analisar, sem o sentir. Mas isto não significa que o texto, em si mesmo, não possua teor poético. É que a poesia resulta de ligação especial entre o emissor e o recetor. Talvez a poesia esteja sobretudo na cabeça do recetor (auditor, leitor). Talvez a emoção suscitada, seja afinidade fortuita entre o leitor e o texto poético.

Contrariamente aos textos destinados a convencer, a persuadir, a verdadeira poesia apenas suscita uma adesão emocional, é um fenómeno da ordem da sedução. Podemos analisar um texto poético com muita profundidade e inteligência, mas este exercício não é a fruição poética, em si mesma. Embora a análise possa existir, ela é posterior, ela sucede ao enamoramento inicial, que suscita tal ou tal obra.

Mesmo assim, existe um certo número de características gerais, próprias de obras-primas poéticas: A sua abertura, polissemia, ambiguidade, a adequação da forma ao conteúdo, as imagens mentais que suscita, a originalidade sem artifício, a beleza musical da linguagem utilizada, o rítmo, etc. Não é o facto de se espartilhar a obra numa fórmula (o soneto, a canção, o rondel...) que nos seduz; isso é o artifício técnico.

O que é construído deve aparentar ser como um improviso, como algo espontâneo. O artifício que não se vê, é a arte poética mais consumada. Arte subtil, que escapa a grande número de pessoas. Só algumas pessoas poderão captar esta criatividade diante dos seus olhos ou ouvidos. Em geral, poucas o fazem: terão de ser - também elas - poetas e com total disponibilidade para acolher a criatividade de outrém.

[P.S. , AS PALAVRAS POÉTICAS E SUA INTERPRETAÇÃO]


POESIA E JOGO


 Na continuidade da pesquisa sobre aquilo que faz com que algo seja considerado poesia ou não, há uma característica que não é demais enfatizar: O efeito do inesperado. 

Um poema pode ser muito bem construído, harmonioso, etc, mas não estimular a atenção do auditor/leitor. Essa coisa que falta, chama-se imprevisto, aleatório, surpresa... Uma quebra no discurso, assim como nos acontecimentos descritos. O imprevisto é fundamental,  tanto em poesia como em música. E a poesia é, no fundo, uma forma de música. 

Outra circunstância esclarecedora em relação à importância do acaso em poesia, é o mecanismo do riso. Certas histórias são engraçadas,  desencadeiam o riso: Reconhecemos-lhes qualidade humorística, enquanto outras, não. Aquilo que torna uma história humorística,  é possuir elementos completamente imprevisíveis, mas da ordem do verosímil. Temos aqui uma componente poética frequente em narrativas em prosa, o conto ou o romance. 

Afinal, nem o conteúdo,  nem a forma, nos permitem concluir da qualidade poética duma produção. O "tour de force" poético, consiste na formulação, em apenas um verso ou estrofe, de algo complexo ou subtil, que precisaria de mil palavras para ser descrito analiticamente. Neste último caso, haveria perda total do  encanto poético. 

É por isso que, embora seja possível traduzir automaticamente através de algoritmos, uns pedaços de prosa, tal é impossível com poesia verdadeira: Nesta forma mais elevada de literatura, quase nao sera possivel uma tradução. Só por analogia ou semelhança, mas não literalmente, poderá a obra-prima poética ser traduzida.  Mesmo que a tarefa seja levada a cabo por alguém com profundo conhecimento de ambas as línguas; a língua original e a da tradução. 

Empiricamente, podemos confrontar uma tradução realizada por «robot», com a de um humano, tradutor  qualificado: Se o texto poético traduzido for «pesadão», sem as subtilezas do texto original, podemos apostar que é produto de um algorítmo; se não colar exatamente ao texto original, mas  transmitir a atmosfera poética deste,  então terá «mão humana».  Uma boa tradução  é também um ato de criação literária. 



POESIA E INTERPRETAÇÃO

Há que diferenciar entre interpretação e adaptação: 

- É uma diferença muito evidente em música: Pode haver fidelidade à obra musical, com a sua execução noutros instrumentos, que não aqueles para os quais o compositor ideou a partitura. No domínio musical, fala-se então duma adaptação

A interpretação de uma peça musical, refere-se a algo muito diferente: Será a forma de traduzir em discurso musical  o que está na partitura; a interpretação pode servir bem a  ideia do compositor, ou pode afastar-se, ao ponto de deturpar a peça em causa. Por isso, ao estudar-se música antiga, é indispensável conhecermos  as convenções interpretativas, as regras implícitas de uma dada época. 

Na poesia declamada, deve procurar-se a inteligibilidade imediata do texto. Nos textos antigos, é lícita a atualização de certos termos, assim como da fonética. O poema tem de ser inteligível. Deve dar-se prioridade à articulação  da palavra, em relação aos efeitos expressivos. Nos textos cantados, porém, esta prioridade pode não existir, em certos casos: Por exemplo, em cantos litúrgicos com textos em latim, as palavras podem ser incompreensíveis, devido às  complexidades da polifonia. Nas óperas, a compreensão  imediata das palavras não  é  essencial,  pois supõe-se que o público conheça o enredo e que vai ao espectáculo mais pelo seu lado musical, do que pelo teatral. 


 


sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

OPUS VOL. III. 32: MEDITAÇÕES FILOSÓFICAS


VAI O PEIXE NA CORRENTEZA, ASSIM EVITA GASTO EXCESSIVO DE ENERGIA.

ALIÁS, OUTROS SEGUEM O MESMO CAMINHO. 
FORMAM IMENSOS CARDUMES SEM PÁTRIA. SEU TERRITÓRIO É A CORRENTEZA. POUCOS SÃO OS TRANSGRESSORES DA CORRENTEZA.

ELES ARRISCAM MUITO, MAS QUANDO ATINGEM DETERMINADO TAMANHO, CONSEGUEM DEFENDER-SE MELHOR DOS OUTROS PREDADORES.

MAS, TODOS OS PEIXES, PEQUENOS OU GRAÚDOS, SÃO CONSUMIDORES.

Podes ignorar a questão, admitir que não nos diz respeito. Ficamos a olhar o rio escoar-se suave ou agitado.  Muitos ignoram a complexidade dos ecossistemas, que não  sejam o seu. 

Por que  se preocuparia um bovino com o que há na profundeza do rio?  Só  lhe interessam os pontos onde pode beber ou os vaus, para  chegar à  outra margem, onde se encontram ervas frescas. 

A CRIAÇÃO  É  DESVIO CRIATIVO, MAS  A SOCIEDADE PRECISA DE ESTABILIDADE. ISSO NÃO É  O MESMO QUE RIGIDEZ,  ESTA É O ATRIBUTO DOS CADÁVERES.  

PORÉM,  A RUPTURA CRIATIVA ARRISCA TORNAR-SE NUMA DERIVA CAÓTICA. ENTÃO, É NECESSÁRIO UM HOMEM AO LEME.

 SEREMOS OS TIMONEIROS DA BARCA DO NOSSO SER. 




quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

OPUS. VOL. III. 31: AS PALAVRAS SÃO NOSSAS AMIGAS

 


As palavras são nossas amigas

Mas, como nossas amigas também

Podem levar-te ao engano

Não por maldade, nem perversidade,

Mas porque a complexidade 

É tal que nós cremos numa coisa

E, afinal, não era nada disso


Igualmente, as máquinas são nossas

Amigas, foram feitas e concebidas 

Por mãos e cérebros humanos

Para nos ajudar nas mais diversas

Atividades:  resultaram

De muito esforço e inteligência.


Desprezar as máquinas é 

Não compreender o que são

Desprezar a cultura, a arte, a ciência

São atitudes equivocadas

Elas baseiam-se numa visão

Mágica; a de que as coisas

Têm vontade própria

Que têm intenção

Que são animadas

As crianças pequenas

Podem pensar assim.

Mas os adultos, como é

Possível?


Eu creio que o auto-engano

Leva as pessoas a crer

Naquilo que lhes dá

Mais conforto intelectual

Ou emocional

Aquilo que lhes diminui 

O sofrimento 


- Mas Saber

É ser modesto, humilde

Porque saber é como

Uma faísca que ilumina

Brevemente a escuridão.



12 de Dezembro de 2024



quarta-feira, 27 de novembro de 2024

OPUS VOL. III, Nº30: DESTINO ERRANTE




Sonhos inacabados embotaram a memória

deste imóvel viajante de viagens estelares

Arrastando ilusões entre fantasmas irónicos

destroço de barca encalhada em praia remota



Cego contando contos à criança sábia

em dias iguais confundindo os passos

Ou voando com as aves migratórias

sobre horizontes em brasa de ocaso



Cumprindo a promessa de peregrino

de ir por bosques, rios e mares, sempre

pela senda sem parar, até ao seu destino

Coração e alma nus, na ficção do real.










sexta-feira, 8 de novembro de 2024

OPUS VOL.III Nº29: DESALMADA



 Caminha pela rua, bamboleia-se 

Ao ritmo da música dos auscultadores

Imagina-se a deslizar numa onda, 

Surfando sobre a música, quase voando

Voando pelos ares irradiando energia

Não vê nada além do sonho

O sonho sem os limites do mundo


Tudo o que tem de fazer

É mover o corpo, esse avatar

Obedecendo ao ritmo 

Que se desprende incessante

Obsessivo, hipnótico

E, muito mais que isso,

Um espesso vidro, inquebrável


Vive no simulacro do corpo

Mas habitado pelo som 

Em todas as moléculas

Vibra e ondeia no espaço

No interior/exterior

Da sua fantasia


Evolui em espirais

Pelo espaço-tempo

Ao ponto muito elevado

De onde observa a rua

Com a sua banalidade


E as pessoas cansadas

Ou vagarosas, distraídas

Ou pensativas, raivosas

Ou sorridentes, enfim

Se elas soubessem 

Se elas acordassem

Se elas escapassem

Coitadas...

Só que nunca o fazem!


Um vulto no passeio

Avança com passos

Cadenciados gestos

Nos dedos e nas mãos

Trejeitos na boca

Oscilando a cabeça

Possuído pela música

Indiferente ao resto 





 

sábado, 26 de outubro de 2024

OPUS VOL. III nº 28: IMPENITENTE

 


Há um cadafalso que te espera

Impenitente verdadeiro

Fugidio relapso 

Insensato herege

Amante da vida 'té à morte

"Ela que entre" dizes, sorrindo

"E nos teus braços se extinga 

O fraco pulsar do coração".


Murtal, Parede

Outubro, 2024


OPUS. VOL. III nº27: REGISTO



Vivi em parte incerta, em tempo remoto

Dos humanos desprezado, confidente dos bichos

Sua língua falei;  foi também a minha

Desenhei quantas nuvens se desdobram no céu

Fui escrivão de sonhos, as palavras eu comi

E o vento, d'erva fresca temperado, eu bebi 

Debaixo de terra permaneço; aqui fico

Tranquilo espero a eternidade.


quinta-feira, 24 de outubro de 2024

OPUS VOL. III. Nº26: METAFÍSICO




 Ah,  pudesse eu mais que em sonho abraçar-te

Se estivesses comigo agora, sentindo teu respirar 

Ser ou não ser, não importa mais qu'este  sofrer

O destino frio desta matemática ausência


Por que persigo o impossível com a aplicação

Dos loucos ou dos heróis, não posso desculpar-me.

A sombra que somente eu vejo não me esconde

É um sudário que recobre levemente o cadáver


Mas no espaço de infinitas dimensões, quem sabe?

Talvez nos encontremos, um átomo, um instante

Na impulsão de sonhar que nos propulsiona


Talvez nos encontremos em uma vida paralela

Á beira mar, com suave brisa e serena plenitude

Unida alma fluirá, bailando no céu de estrelas




domingo, 13 de outubro de 2024

OPUS VOL. III, nº25: SECRETOS PENSARES


SE outrora vivera em redoma de amor, há muito dela me esqueci

SE nosso espírito no corpo se compraz, é que estamos de boa saúde

SE pudesse voltar ao passado, já não seria o passado mas outro presente

SE hoje sou como sou, à história do mundo e do universo o devo

SE caminho pelos bosques e veredas, não admira que seja bicho do mato

SE a felicidade é ausência de dor, escolhi não ser feliz e loucamente amar

SE estes versos te parecem estranhos, percorre mais um pedaço da vida

SE o espanto da Natureza te assalta, é porque a criança em ti não morreu

SE alguém me ignora, eu não levo a mal; ele será incompatível comigo

SE a vida duns vale mais ou menos que a doutros, só Deus o sabe.

SE , no entanto, queres um conselho meu, segue o teu caminho




terça-feira, 8 de outubro de 2024

OPUS VOL. III, nº 24: VERSOS RECOLHIDOS NOS ESCOMBROS




Tantas luzes se consumiram

Nos fogos fátuos, na escuridão

Tantos corpos se quebraram

Num sopro, rente ao chão

Tantas vidas viveram

No Universo eterno

Tantos amores escolheram

Serem felizes no instante

Tantos falharam. Dizem

Aqueles que nem tentaram

Descolar os pés do chão

Promessas de Prometeus

Brotaram obras nos cumes

Que os deuses para si

Mesmos reservavam

Por tudo isto e muito

Mais, nos confrontam

Águias depenadas

Mas com fortes garras;

Dominam

Ovelhas humanas

E aos penhascos as lançam

Pelo prazer de rasgar

Suas carnes tenras

Algum dia virá o fim

Das pulsões de morte

Algum dia chegará

Em segredo, o Eros

Que vencerá o obscuro

Dentro dos humanos

Algum dia regenere

A Terra-Mãe

Dos estragos

Causados apenas

Por alguns, poucos

Mas que todos

Estamos sofrendo

Só há dois possíveis:

Ou projetas teu ser,

Tua energia no futuro

Ou constróis, instante

A instante, o presente

De cada um e de todos

A construção, aqui e agora

Do Mundo Humano

É sempre possível

Mas fizeram-nos descrer

Homens, desta saída

Atirando a felicidade

A justiça e igualdade

Para o futuro incerto

Os poderosos enganam

Os povos, arrastados

Por novas/velhas utopias

Á procura de paraísos

Na Terra ou no Céu

Só se podem libertar

Aqueles que percebem

Como seus corações

Foram escravizados

Logo, libertos

No cosmos infinito

Voarão como anjos

Mas de carne e osso

Ensinando aos outros

A voarem, também
































quarta-feira, 25 de setembro de 2024

OPUS VOL III, 23: ILUSÃO

 


Peguei no telemóvel 

Marquei aquele número que me disseram 

Uma voz maviosa respondeu

Ouvi um longo desfiar de frases

Que me preveniram supostamente

De todas as infrações / penalidades 

Eximia-se de qualquer responsabilidade 

E eu apenas tinha de dizer "sim"

Por fim, após uma musiquinha

Que se repetiu quinhentas vezes 

Veio a voz (real) de alguém 

Um homem que se identificou 

Mas não percebi seu nome

Da maneira como o pronunciou 

Apenas queria saber o meu nome

Completo, meu número da Seg. Social

Número fiscal, data de nascimento 

E depois perguntou-me:

"O que deseja?"

Já não sabia se desejava

Falar com alguém assim.

Afinal, tinha sido impulsionado

Por um agudo sentimento

Como se fosse uma vertigem,

Um mal-estar, de impotência 

Para continuar a arrastar

Comigo a sombra do passado

E de encarar o presente.

Estava realmente na ponta

Final da luta comigo próprio,

Mas a fatalidade jogava

Tudo para me empurrar 

Para dentro dum poço 

Sem fundo de meu

Desespero...

Não encontrei palavras

Para lhe responder.

Os pensamentos atravessavam

Meu cérebro como raios

U.V. e nem ouvia já 

Aquela voz insistente 

Ao meu ouvido

Que me repetia 

De maneira polida

"O que desejava ?"

Por fim, disse-lhe:

- Desculpa , não é nada.

E desliguei.




quinta-feira, 12 de setembro de 2024

OPUS. VOL. III, 22 DIÁLOGO ENTRE O REFLEXO E O REFLETIDO


- Se tu sabes, não digas.

- Confesso que não sei

Ignoro tudo, nada sei

Se olho prá Lua

Vejo um queijo

Cada coisa é nova

Inédita, um mistério

Um inexplicado

Movimento 

Sem causa aparente

- Muito bem, rapaz:

Vejo que aprendeste 

Bem e depressa; 

Mas, ainda melhor 

É ficares calado.


domingo, 11 de agosto de 2024

OPUS VOL. III 21: AGUARELA


O pincel desloca-se suavemente sobre o papel branco

Este absorve a tinta fixando espirais de cinzento

Recolhe mais tinta no tinteiro; aplica curtos traços

Nos intervalos brancos do papel; surge uma figura

Uma paisagem, um céu que se destacam do fundo

Como se sempre lá estivessem, mas invisíveis

Esta arte de pintar é toda em subtileza

A mais ambiciosa, na modéstia dos meios usados

Não admira que vejam nela meditação profunda.



Os esfumados que nos dão a espessura, os vazios

Que se enchem de luz, as linhas apenas sugeridas,

Os relevos de corpos gráceis ou pesados

As humanas formigas que descem a colina

Encosta abaixo, até aos telhados de colmo


Arte pensada, imaginada, antes de executada

Toda ela tensão entre o interior e o exterior

Poesia realista e onírica que mais aprecio

Mas que nunca alcançarei!

sábado, 27 de julho de 2024

OPUS VOL. III, 20: A CINZA DE GAZA



 Já não restam lágrimas, só cinzas

Que sobre as cabeças caem 

Vindas do céu mortífero

Da crueldade despejada

Sobre a cidade esventrada

Vê-se nos écrans digitais

Olhos vidrados já não veem

Outros olhos não querem

Outros são indiferentes 


O sangue das vítimas

inocentes espalha-se

Sobre as pequenas cabeças

Ensopa-lhes os cabelos

Escorre pelas faces


A degradação humana

Atinge esta civilização

Ela perdeu o senso moral

Demasiado poderosa

Totalmente impiedosa


A monstruosidade

e a cobardia

Não se apagarão:

Estão para sempre

por cima das cabeças

Dos que cometem 

Dos que abençoam

Dos que viram a cara


Haverá cinza suficiente,

Suficiente para enterrar 

A cinza dela própria

Sua autodestruição

Material e simbólica?





domingo, 7 de julho de 2024

OBRAS VOL. III, 19: IRREVERSÍVEL



Fotos desbotadas, imensa tristeza que vem da lonjura

Enterrada na presença pungente que dilacera o espírito 

Viver com lastro de tantas recordações, tantas presenças 

Ausentes para sempre, que povoam as memórias 

Algo que nunca imaginei na juventude , o mundo 

Parecia estável apesar de todos os redemoinhos

Mas foi retirando os entes que eu amava

Restando apenas a distância incomensurável 

De um passado e todo o absurdo de sermos

Passageiro único de um imenso navio

Ou  dum longo comboio sem vivalma

Atravessando planícies monótonas 

Para destino nenhum , velozmente.

E o passado, em sonhos esfarrapados

Que me agitam e fazem acordar,

Desfila em sequências caóticas .

Aprendi então a viver no meio

De meus fantasmas familiares 

E , enquanto posso, vou saboreando

Os instantes poucos que me restam

De alegria e gratidão, que sabedoria

Me dá, agora que juventude se foi.


segunda-feira, 17 de junho de 2024

EROTISMO NA CANÇÃO (Segundas-f. musicais nº5)


Muita gente conhece a canção de Serge Gainsbourg e Jane Birkin «Je t'aime, moi non plus». Tornou-se um enorme êxito comercial e propagou para uma fama ainda maior este par já bastante famoso. Porém, eu não considero que esta canção seja grande coisa, nem do ponto de vista musical, nem do ponto de vista da letra «erótica». O facto de uma letra falar explicitamente de sexo, de ato sexual, não a torna automaticamente merecedora de entrar na categoria de erotismo.
Compare-se com o bolero de Consuelo Velasquez «Besame»(1): Não há dúvida que é uma canção de amor com forte componente erótica (ela explicita somente beijos e abraços)...

Canta Lisa Ono


Bésame


Bésame, 
Bésame mucho
Como si fuera esta noche la última vez
Bésame mucho
Que tengo miedo a perderte, perderte después
Bésame
Bésame mucho
Como si fuera esta noche la última vez
Bésame
Bésame mucho
Que tengo miedo a perderte
Perderte después
Quiero tenerte muy cerca
Mirarme en tus ojos
Verte junto a mí
Piensa que talvez mañana
Yo ya estaré lejos
Muy lejos de ti
Bésame,
Bésame mucho
Como si fuera esta noche la última vez
Bésame
Bésame mucho
Que tengo miedo a perderte, perderte después
Bésame
Bésame mucho
Que tengo miedo a perderte, perderte después
Que tengo miedo a perderte, perderte después

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Com efeito, os surrealistas consideravam que era ingrediente fundamental da poesia erótica(2), esse erotismo estar recoberto dum véu, de haver ambiguidade, incerteza, duplicidade de sentido, que tornam o poema, ou peça musical, muito mais interessantes.
O auditor é confrontado com uma sensação análoga à que tem, quando os traços dum rosto são sugeridos, por detrás de um véu.
O contrário ocorre hoje, em particular nas praias, com o rosto e com o corpo todo, não deixando qualquer espaço para a imaginação.
Para os surrealistas, a Arte erótica era sugestão, provocação encoberta, o «dizer sem dizer»(3). Note-se que esta definição não era inspirada por uma moral puritana, antes pelo contrário. Eles, surrealistas, faziam na sua vida uma experimentação permanente, o desregramento sexual era "regra", não havia para eles tabus de qualquer espécie.

Retrato de 1926 por Man Ray

Porém, hoje em dia, se dissermos "erótico", provavelmente as pessoas irão pensar em sexo explícito, em obscenidades, em pornografia. Mas, estas características estão afinal nos antípodas do verdadeiro erotismo.
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(1) A minha versão preferida é a de Cesária Évora, na minha playlist, aqui: Talentos Latino-Americanos
(2) André Breton: « La beauté convulsive sera érotique-voilée, explosante-fixe, magique-circonstancielle ou ne sera pas »
(3) Aliás, é notável o número de artistas plásticas  femininas surrealistas; estas mulheres-artistas desenvolveram sua própria abordagem do erotismo.
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A canção seguinte, «In the mood for love(4)», sugere que ela está nesse estado quando está na presença do seu amado. Mas, quererá isso dizer que «está pronta para fazer amor»? Note-se que não é o que ela diz, realmente. O efeito sugestivo advém da música, lânguida e sensual, que reforça o caráter erótico da canção.
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(4) traduziria por «estou numa onda de amor» ou algo deste género.



Canta Sarah Vaughan


I'm In The Mood For Love 


I'm in the mood for love
Simply because you're near me.
Funny, but when you're near me
I'm in the mood for love.
Heaven is in your eyes
Bright as the stars we're under
Oh! Is it any wonder
I'm in the mood for love?
Why stop to think of whether
This little dream might fade?
We've put our hearts together
Now we are one, I'm not afraid!
If there's a cloud above
If it should rain we'll let it
But for tonight, forget it!
I'm in the mood for love

Compositores: Dorothy Fields / Jimmy Mchugh

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No poema «Pensionnaires», de Verlaine magistralmente posto em música por Léo Ferré, a situação é explícita e tem um pormenor tal, que se compreende quais as atividades a que se entregavam as duas irmãs. Se há um aspeto explícito de atos sexuais, por outro lado, há o contraste (musicalmente sublinhado) da criança no berço, muito contente e entretida, enquanto as duas amigas se entregam a rituais fogosos.
Escolhi-o, porque é, a meu ver, uma obra-prima poética e porque na arte não existem fronteiras estanques, nem regras absolutas: Apesar do aspeto explícito, parece-me algo só ligeiramente transgressivo. A arte do poeta e do músico, conseguem fazer-nos aceitar a letra como sendo erótica, não como pornografia.

Poema de Paul VERLAINE /Música e Canto de Léo Férré:



Pensionnaires

L'une avait quinze ans, l'autre en avait seize ;
Toutes deux dormaient dans la même chambre.
C'était par un soir très lourd de septembre
Frêles, des yeux bleus, des rougeurs de fraise.

Chacune a quitté, pour se mettre à l'aise,
La fine chemise au frais parfum d'ambre.
La plus jeune étend les bras, et se cambre,
Et sa soeur, les mains sur ses seins, la baise,

Puis tombe à genoux, puis devient farouche
Et tumultueuse et folle, et sa bouche
Plonge sous l'or blond, dans les ombres grises ;

Et l'enfant, pendant ce temps-là, recense
Sur ses doigts mignons des valses promises,
Et, rose, sourit avec innocence.


Este poema foi composto na prisão, juntamente com outros poemas eróticos. Veja abaixo a ilustração feita por Jean Berque, que também ilustrou outros poemas do livro «Amies», publicado em vida do autor sob pseudónimo:





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Françoise Hardy, que faleceu recentemente aos 80 anos, deixou-nos algumas das canções mais belas em língua francesa. Ela tinha um modo de cantar extremamente sensual. Além disso, era excelente compositora e letrista. Ninguém fica indiferente à sua beleza e à sua voz. Oiçam (letra em baixo):

Canta Françoise Hardy

A canção «Moi vouloir Toi» (letra e música de Françoise Hardy/ Louis Chedid), celebra o amor físico entre um homem e uma mulher, enquanto o melhor antídoto para descolar das chatices do mundo. Mas como não é explícita, cai dentro da minha definição de erotismo.
MOI VOULOIR TOI
Pour décoller d'la planète
y a des plans plus ou moins nets
comme les piqûres en cachette
l'alcool et les cigarettes
y a des pilules, des tablettes,
des salades sans vinaigrette
moi je suis toujours à la fête
chez toi

pour décoller d'la planète
et s'envoler à perpète
j'ai la meilleure des recettes
moi vouloir toi

moi vouloir toi
de haut en bas
de bas en haut
sans bas ni haut
sans haut ni bas
moi vouloir toi

pour décoller d'la planète
autrement qu'en superjet
qu'en soucoupe ou en navette
en yogi ou en ascète 
pour perdre carrément la tête
sans presser sur une gâchette
exclusif, je regrette
moi vouloir toi

moi vouloir toi
de haut en bas
de bas en haut
sans bas ni haut
sans haut ni bas
moi vouloir toi

moi vouloir toi
de haut en bas
de bas en haut
sans bas ni haut
sans haut ni bas
moi vouloir toi

moi vouloir toi
de haut en bas
de bas en haut
sans bas ni haut
sans haut ni bas
moi vouloir toi



sexta-feira, 14 de junho de 2024

OPUS VOL. III. N. 18 : ASSIM OS LEVA O VENTO

 


Era um tempo sem bússola 

De parte a parte parecia

Um mundo fictício 

Porém era real

Para onde quer que olhasse

Já não reconhecia 

Os meus amigos

Vivia num pesadelo

Acordando em suor

Com a memória 

Misturando-se de sonhos

E estes não eram doces

Mas de calafrios

As lindas criaturas

Transformadas em hienas

Meus leais companheiros

Em verdugos sádicos 

Oh! Meu Deus, serei

Eu o louco, afinal?

Não sei; as conversas

Com o Senhor do Universo

Têm estado difíceis 

Ultimamente 

Mas, ao acordar, recebi

Uma críptica mensagem :

"Assim os leva o vento"

quarta-feira, 5 de junho de 2024

OPUS VOL. III, 17: AQUELE PUNHO FECHADO

 


Aquele punho fechado inspira coragem

E vem com o braço e o pulso

Finos, delicados e fortes da mulher

Dela erguem-se palavras 

Soam e ressoam no meu espírito

Sem falsa retórica e sem ódio

 

Sabe falar da guerra e da paz

Não precisa de falsos argumentos

Só de três coisas precisa: Amor, 

Coragem e Verdade. 

 Mais força tem que um exército

Mais pontaria que atirador de elite 


Sua palavra abrasa corações 

Invencível: Sendo impossível

De suprimir, brota da terra 

Recobre o horizonte 

É brisa ou vendaval

Sai do peito daquela mulher


Mas palavras assim poderosas

Outras vozes as pronunciam

Quem recebeu tais palavras

Pode fazê-las suas 

E disseminar como semeador

Que lança na terra nova vida