sábado, 25 de novembro de 2023
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE VIOLÊNCIA
terça-feira, 18 de abril de 2023
PORQUE NÃO SOU MARXISTA
De facto, apenas «cri» nas teorias marxistas na adolescência. Já no início da idade adulta, colocava várias objeções pertinentes, em especial, às versões leninistas do marxismo.
Com o meu afastamento da «religião» M-L (Marxista Leninista), pude ter abertura de espírito para ler clássicos da política, da economia política e da sociologia (secundariamente, pois eu estudava biologia, a minha maior paixão).
Devo dizer que conhecia bem as obras de Marx, Engels, Lenine, um pouco de Trotsky, de Mao e de outros. Muitos autores pró-marxistas eu li; também li muitos anti-marxistas, ou críticos das obras de Marx.
Foi importante para mim ler as obras críticas da ideologia marxista-leninista, de Dominique Lecourt, um filósofo francês. Também li outros autores. A hegemonia do marxismo e das suas tendências ou correntes, era notória na minha geração. Mas, igualmente notória, a ignorância sobre o conteúdo concreto das obras dos que se idolatrava.
Muito do que se passou (e passa) com o marxismo, faz-me pensar que, em termos sociológicos ou antropológicos, estamos perante uma religião sem Deus. Ou pior; que endeusaram «personalidades» dessa corrente política, sem o mínimo espírito crítico, mostrando assim que nem sequer o conteúdo objetivo das obras, tinham eles lido ou percebido.
Hoje em dia, compreendo quais as razões psicológicas (mas não lógicas) do fascínio e adesão a tais teorias. É que elas abarcavam um todo: O «materialismo dialético» era uma explicação última e uma fórmula simples que permitia reivindicar o estatuto de cientificidade para uma teoria de dialética hegeliana, com pedaços de materialismo mecanicista.
O século XIX, foi aquele em que se criou um culto da ciência. As pessoas acreditavam na «Ciência», acreditavam no papel libertador do ateísmo científico e do mecanicismo. Foi este, o cocktail ideológico em que banharam as elites burguesas e os revolucionários, quase todos, oriundos da mesma burguesia ascendente ou triunfante.
Na verdade, tive o privilégio de estudar a fundo as ciências físicas e naturais. Não apenas a biologia, mas igualmente a física (em especial a termodinâmica), a química (também ao nível experimental), a ciência dos sistemas, etc. A matematização dos modelos não me intimida; eu tive oportunidade de estudar muitos assuntos, que recorriam a modelos matematizados, da Biologia Populacional, à Teoria do Caos, aos Fractais...
Para mim, é evidente que o que se pensa ser a cientificidade da economia, em especial, das teorias neokeynesianas e monetaristas, deve-se ao uso de instrumentos matemáticos (por exemplo, os gráficos) mas sem assumirem ou explicitarem as enormes simplificações (o reducionismo) associadas. O não-iniciado fica impressionado com tanta matematização, do mesmo modo que fica impressionado com a matematização dos modelos da física, da química e mesmo da biologia.
Mas, a quantificação e o tratamento dos dados em termos estatísticos ou usando outras metodologias é útil, sobretudo, para expor uma teoria. Estou a referir-me, obviamente, aos ramos do saber que não sejam diretamente «matemática», incluindo a «física matemática». Faz parte da estratégia de exposição nas ciências naturais, apresentar curvas e gráficos, em conferências ou em publicações científicas. Mas, na maior parte dos casos, as matemáticas têm uma função auxiliar.
Em biologia, também se utiliza muito as matemáticas. Porém, o substrato último da biologia é experimental e continuará a sê-lo. Mais importante que a matemática, é a metodologia propriamente experimental utilizada, cujos dados podem ser traduzidos sob forma matemática, ou não. Os conteúdos das descobertas ou observações, podem ser descritos de diversas maneiras. Um excelente artigo na área de ciências biológicas pode nem sequer apresentar os resultados sob forma de dados estatísticos.
Esta longa digressão serve para nos precavermos da insistência de certos propagandistas, seja qual for a sua ideologia, em «citar» a Ciência, dizendo que estão «baseados» na Ciência, ou algo deste género. É confrangedor ver como esta evidente aldrabice funciona: Pois a Ciência não tem nada que ver com seus pronunciamentos políticos; aliás, a «ciência nunca prova nada» (G. Bateson). O pior é que eles são seguidos por muitas pessoas, fascinadas com as aparências. Mas isto não é novo; já no século XIX, usavam o mesmo «disfarce», para melhor levar o auditório a aderir às suas teorias políticas.
De facto, os verdadeiros cientistas, sobretudo os da ciência experimental, quer estejam no laboratório, ou em «atividade de campo», não têm hoje - nem jamais tiveram - grande interesse pelo marxismo; isso deveria surpreender os que aderem ainda à ideia de que o marxismo «se baseia na ciência», ou mesmo «que é uma teoria científica».
Marx era um filósofo, Engels, filho dum industrial e Lenine, de família de professores primários. Eles tinham a ideologia «silenciosa» do cientismo da época; imbuíram as suas políticas de «teorias ad oc», que «justificavam cientificamente» suas teses propriamente políticas. Eles conseguiram arrastar consigo uma parte da intelectualidade da época, pois o discurso deles parecia científico e isso impressionava muitos. Ainda hoje, alguns se deixam impressionar. Se lerem, por exemplo, a obra «Materialismo e Empiriocriticismo », compreenderão que se trata de uma obra panfletária de Lenine, que discorre sobre questões fundamentais da natureza da matéria, segundo as teorias em debate na época . Mas, Lenine não percebeu realmente o debate entre várias correntes da física, nem estava à altura de poder discutir os méritos e fraquezas de cada uma. É um exemplo interessante, pois mostra como questões científicas, foram abusivamente enquadradas na moldura ideológica do «materialismo dialético». Lenine atribuiu adjetivos de «progressista» ou de «reacionária», a tal ou tal teoria e aos cientistas a estas associados.
O mesmo processo, mas em mais trágico, pois muitos cientistas foram mortos ou deportados, passou-se com o decretar da genética como ciência «burguesa», por Estaline e seu protegido Lysenko. Foi importante, para a minha formação, ler a obra sobre Lysenkismo de Dominique Lecourt. É daquelas «lições» que nunca se esquecem. E se nos esquecermos, há líderes e sociedades que voltam a cair nos mesmos erros. O lysenkismo foi nos anos 30 do século XX na União Soviética do estalinismo triunfante. Infelizmente, viu-se um ressurgir recente daquele comportamento no mundo contemporâneo: A histeria «covidiana», desencadeada pelo poder, a campanha de violência difamatória contra as pessoas com espírito crítico, a «caça às bruxas», etc.
No que toca à teoria política, propriamente dita, é um facto que não existe libertação ou emancipação, se a sociedade estiver sujeita a um governo totalitário, que se considera incumbido duma tarefa «messiânica». Um poder que fala em nome da classe operária, do proletariado, não se importando, porém, de o esmagar da maneira mais rude, de lhe retirar todos os meios legais de contestação. Uma pessoa medianamente instruída e que tenha convicções socialistas/comunistas irá naturalmente divergir da teoria política marxista leninista, perante a observação da «práxis» dos mesmos, quando alcançam o poder.
Eu estive muito interessado nos primeiros socialistas que eram, quase todos, da vertente «não-autoritária»: William Godwin , Gracchus Babeuf, Charles Fourier, Pierre-Joseph Proudhon, e muitos outros, vilipendiados por Marx e marxistas de hoje, que continuam a repetir as difamações de ignorantes, contra esses pioneiros. Na verdade, o que os primeiros socialistas não-autoritários «descobriram», foi retomado e aperfeiçoado por várias gerações de socialistas libertários ou anarquistas, pioneiros em associações não baseadas no lucro e na desigualdade, que estiveram largamente envolvidos na criação e desenvolvimento dos sindicatos, que fundaram muitas cooperativas, etc. A difamação foi pôr-lhes um rótulo («socialistas utópicos») que não lhes corresponde, que os ridiculariza: Marx era costumeiro disso, em dar etiquetas falsas, em relação a pessoas que ele detestava.
O século XXI tem demasiados desafios próprios, para as pessoas ficarem tomadas pela «paixão pelas coisas mortas». Eu quero com isso dizer que o passado, a história, não são para ignorar, mas também não se devem mitificar. Não se ignorem as realizações, as teorias e as reflexões dos séculos anteriores, mas deve pôr-se tudo isso num contexto apropriado.
A intolerância e o fanatismo, em pessoas que se dizem socialistas é exatamente tão contraditória, como em pessoas que se afirmam cristãs. Aliás, o cristianismo é uma das fontes e das inspirações do socialismo - comunismo - anarquismo: desde a Reforma no século XVI, passando pelos movimentos sociais dos séculos XIX e XX, até aos movimentos de hoje.
quinta-feira, 29 de dezembro de 2022
A CRISE DAS RELIGIÕES E O SEU SIGNIFICADO
Este século, ainda tão jovem, já está bem cheio de acontecimentos - mas não de quaisquer!
- Acontecimentos suficientemente graves e irreversíveis para mudarem para sempre a(s) civilização/ões, que estamos acostumados a associar a determinadas zonas geográficas e a determinadas tradições: A História, a Arte, a Literatura e a Religião, são - entre outras - identificadoras de determinado complexo cultural ou civilização.
Embora saibamos que todas as civilizações são mortais, tal como os humanos, não sabemos que género de morte espera cada uma delas. Será uma morte por colapso catastrófico? Será um definhar progressivo, até ser englobada por outra, ascendente? Serão outras modalidades, demasiadas para enumerar aqui?
As religiões não podem ser estranhas à construção civilizacional pois, em qualquer civilização, mesmo nas que se proclamam oficialmente «ateias», acaba por haver fenómenos de tipo religioso.
Inversamente, em civilizações que se identificam, a si próprias, como cristãs, nota-se a dissolução progressiva dos laços da população com o elemento cristão.
Isto traduz-se - por exemplo - numa paganização do Natal, a época do ano em que tradicionalmente os cristãos de todas as confissões saudavam a vinda do Salvador. O mesmo, em relação à paganização da Páscoa, transformada em ocasião para dar ovos e coelhos de chocolate às crianças.
Esta paganização não se faz, no mundo cristão, sob forma de um qualquer ressuscitar das religiões pagãs que antecederam o aparecimento do Cristianismo nesses territórios. Faz-se com o abandono de tradições e, sobretudo, de assistência ao(s) culto(s). Muitos são aqueles que dizem professar o cristianismo e, no entanto, não observam quase nenhuma tradição, não vão à missa (ou culto) dominical, apenas frequentam igrejas, quando se trata de um casamento, batizado ou enterro.
O estádio último desta descristianização, verifiquei-o há poucos anos, na belíssima capital da República Checa. As igrejas do centro de Praga (magníficos monumentos barrocos, na sua maioria) estavam transformadas em locais de concertos (de música clássica em geral, mas não de música clássica sacra) e isto não era temporário. Tinham sido permanentemente transformadas em «salas de concerto históricas», pela muito pragmática razão de que o número de pessoas, na vizinhança, dispostas a frequentar essas igrejas era tão diminuto, que elas deixaram de ter sustentabilidade económica e, sobretudo, de centros vivos de cristianismo.
O principal «culpado» aqui, não é o Estado, diretamente - pelo menos - mas o processo de «gentrificação» dos centros históricos, que também afeta - de modo insidioso, mas brutal - Lisboa e muitas outras capitais da Europa.
Assim, o turismo, fonte preciosa de divisas e estimulador de atividade económica está a contribuir para matar os centros culturais. Isto passa-se em países como França, Espanha, Itália, Grécia e outros, muito turísticos. Todos sofrem de uma gentrificação dos locais mais emblemáticos. Estes centros mais investidos pelo turismo, são locais com maior significado monumental e histórico, os centros civilizacionais desses países.
A «verdadeira religião é o dinheiro», mas esta frase banal, não deixa de soar como grave sentença de morte, de civilizações que se construíram em torno de determinada espiritualidade.
Pode-se argumentar que a espiritualidade se mantém em indivíduos que não são religiosos. É verdade: No entanto, ao nível de um todo civilizacional, de uma sociedade inteira, isso nunca aconteceu. Basta ver-se o renovo do cristianismo ortodoxo, que já antes da queda da URSS, tinha um aumento sensível de adesão. É portanto, uma regra empírica, constatar-se que onde esmorece a tradição religiosa, com cultos e clero, também a religião «popular» recua. Verifica-se o inverso, quando há um renovo da(s) Igreja(s), este acompanha, em paralelo, a evolução da sociedade.
Tudo o que sei sobre as civilizações do passado, é que uma civilização em ascenso vai propulsionar, senão criar mesmo, um determinado movimento religioso. Por outro lado, a espiritualidade não desaparece quando, por motivos políticos e ideológicos (como no Estalinismo ou na Revolução Cultural Maoista), se combatem ativamente a difusão ou, mesmo, a existência de religiões.
Há uma necessidade profunda, que pode ultrapassar a explícita adesão a determinado credo religioso. Penso que a humanidade não pode viver com uma visão estreita, «materialista» da vida, da Natureza e do próprio ser humano. O materialismo de hoje, acantona-se numa forma estreita de propaganda antirreligiosa. Não me parece que haja uma oposição entre a espiritualidade de hoje e a aceitação e mesmo a procura ativa de saber científico. Acho mesmo que esta contradição é um subproduto de ideologias do século XIX (sobretudo, do cientismo e do ateísmo «militante»).
É verdade que as religiões, na sua vertente exterior, perante a sociedade concreta, não foram capazes, muitas vezes, de fazer atualizações que se impunham. Imagine-se alguém do clero, formado/a na perspetiva de que, aceitar a ideia de Evolução biológica e do Homem, era uma heresia intransponível e um passo para a mais total negação de Deus, ou seja, para o ateísmo. Este doutrinamento atravessou várias gerações. Portanto, não se pode ter a ilusão de que as formas de pensar morrem quando desaparecem os criadores ou primeiros cultores de determinada corrente.
Para ilustrar isso, basta-me evocar a estranha - para mim - forma de abordar a sociedade e todos os fenómenos através de um prisma marxista. O marxismo é um exemplo importante e típico de uma religião sem Deus. Mas tudo nele aponta para o fenómeno religioso, como forma de ver o Mundo e o Universo, como se fossem apenas inteligíveis através da «ciência marxista» (que, afinal, é apenas «cientismo»).
Seria muito estranho que, caso a «ciência do marxismo» fosse verdadeira, o mundo científico atual estivesse totalmente divorciado da filosofia / ideologia do marxismo: Note-se que não é uma teoria esotérica, muitos terão tido contacto com ela; muitos cientistas terão mesmo estado convencidos, durante uma etapa de suas vidas, de que se tratava de uma forma de pensar adequada à ciência. Mas, nada disto é verdadeiro, para a imensa maioria dos cientistas de hoje.
Ao fazerem ciência, não invocam « S. Marx ou S. Engels, ou S. Lenine», da mesma forma que não invocam os Santos cristãos, nem os Deuses pagãos. Têm, como pessoas cultas, conhecimento de correntes filosóficas e de religiões. Mas, na sua imensa maioria, nem escrevem sobre a relação da ciência que praticam, com a espiritualidade.
Noutras partes do globo, eventualmente, os fenómenos serão divergentes. Eu tenho de me limitar ao que conheço melhor. Não acredito que as diversas civilizações se tenham fundido numa só, ou que esta fusão esteja em curso. Tenho observado mesmo que diversas civilizações afirmam cada vez mais as suas idiossincrasias, para fazer face ao globalismo, largamente promovido por ocidentais.
Embora não seja uma ideologia cristã, o globalismo da nossa época, enquanto veículo de dominação ideológica, é propagado por pessoas, algumas das quais se afirmam como «cristãs» (não é senão uma capa, para elas, a meu ver).
Estou convicto de que as ideias profundas que os homens podem produzir hoje, estão radicadas na essência da humanidade, daí que não seja difícil encontrar ensinamentos de sabedoria, de espiritualidade e sensibilidade estética, em civilizações passadas, hoje consideradas «mortas». Porém, sua existência foi um passo, uma etapa, para o que a humanidade é, hoje.
Os aspetos espirituais, têm a sua evolução própria, de certa forma, análoga com a evolução biológica. Os traços da evolução biológica não pararam nos alvores da espécie humana, pois a evolução continua aos vários níveis (genético, anatómico, fisiológico, comportamental) nos humanos do século XXI.
A cultura e a religião, a pertença a um dado universo mental, a uma forma de compreender o Todo Universal, nada disso pode congelar, tudo se vai transformando. As formas de religião também evoluem; cabe aos contemporâneos atuar no sentido de não «deitar fora o bebé, com a água do banho», isto é, não se deixarem iludir com formas transitórias do fenómeno religioso, como se estas fossem a essência e razão de ser das religiões.
Sou tão incapaz de descrever as formas que as religiões irão adotar no futuro, como de antever como as sociedades serão organizadas. A minha aposta, porém, é que continuarão a existir valores e que podemos procurá-los em civilizações passadas. Não posso saber quais serão selecionados, da profusão de filosofias, de formas e conteúdos, de mitos, de relatos, etc.. Mas possuo a certeza íntima de que as civilizações futuras irão guardar alguns valores, adaptando-os à sua época.
Foto de ruínas do Convento do Carmo, Lisboa
sábado, 18 de junho de 2022
MITOLOGIAS (VII) O GRANDE MITO DO NOSSO TEMPO
quarta-feira, 27 de abril de 2022
VER O MUNDO DE OUTRA FORMA?
Lenine dizia... mais ou menos, isto: «Há décadas em que não se passa nada de muito relevante; e depois, surgem períodos em que os acontecimentos se precipitam, dando a sensação de que se viveram décadas, durante apenas uns meses ou semanas.»
Esta citação pareceu-me adequada para abrir uma reflexão sobre a mudança e - em particular - a mudança que temos experimentado, nos últimos anos. Temos a sensação de que a História se acelerou, de que grandes transformações ocorreram, de que se passam muitas coisas insuspeitas do grande público e mesmo de muitos dos peritos, que têm o potencial de transformar a nossa relação com o mundo, com o Estado, com a sociedade, com a economia, etc.
Seria muito interessante avaliar as diversas expetativas do que seria o século presente, enunciadas por eminentes intelectuais ou políticos no século anterior (século XX): Muitas delas revelaram-se muito distantes do real, quando confrontadas com os acontecimentos da história recente. Mas este exercício não se destinaria a fazer «chacota» dessas pessoas (nós também, tínhamos perspetivas que se revelaram falsas!), nem a nos mostrarmos mais clarividentes, que os nossos contemporâneos.
Esse exercício mental seria um bom «remédio» para as pessoas (de quaisquer setores do espectro político-ideológico), que estão cheias de certezas, capazes de dar resposta a tudo, etc. Seria, afinal, um exercício de humildade, se efetuado honestamente. Obrigava-nos a ir aos fatores fundamentais e analisar, não a partir dos nossos desejos, ou das nossas construções ideológicas, mas a partir da realidade.
Veio-me à memória outra citação de Lenine; ele dizia: «Os factos são teimosos!».
Não creio estar errado, se disser que a economia real deve prevalecer - numa visão de conjunto - sobre a economia financeirizada.
Com efeito, as necessidades globais em alimentação, energia e matérias-primas, sobrepõem-se (muito visivelmente, agora) aos movimentos erráticos e caóticos do dinheiro especulativo. Porém, este facto não é particular à época atual; sempre foi assim! Mas, quando existia bonança ou, quando o abastecimento dos mercados em relação a esses produtos (alimentos, energia, matérias-primas), estava a funcionar normalmente, a atenção das pessoas era puxada para a componente especulativa da economia, ou seja, para a ganância do lucro, de «fazer dinheiro» com dinheiro.
Se nós tomarmos um bocado de recuo, agora, neste momento particularmente conturbado da cena internacional, com as repercussões enormes que se estendem em todos os setores da economia, com particular incidência nos aspetos mais vitais, o que vemos? Vemos que a globalização capitalista, a engenharia económica e financeira, para aumentar as mais-valias da exploração do trabalho, com a exportação de fábricas e outros meios para os países do «Terceiro Mundo», onde não havia regulação séria do mercado de trabalho e onde era possível as multinacionais aí instaladas obterem um rendimento muitas vezes superior ao obtido na América do Norte ou na Europa, essa globalização ruiu.
Ela, globalização, ruiu e os países em «piores lençóis» são exatamente aqueles cujas burguesias mais beneficiaram dessa exploração acrescida, durante a fase de expansão e internacionalização mais agressivas do capital.
As pessoas ainda não perceberam, porque continuam embaladas na ideologia neocolonial, ou no consumismo acéfalo, mas o facto é que as componentes tecnológicas essenciais estão a ser fabricadas pelas nações e pessoas que elas (no fundo) desprezaram. Estas pessoas são técnicos altamente qualificados, engenheiros, investigadores, que enxameiam muitas das instituições de ponta do orgulhoso «ocidente» e, sem elas, simplesmente não haveria capacidade humana para realizar o trabalho de investigação e desenvolvimento, nos vários setores. Eu sei isso muito bem, pois tenho acompanhado na minha área (biologia molecular e genética) essa progressão, mas tenho informação segura de que se passa o mesmo, noutras áreas muito diferentes, mas igualmente ditas «de ponta».
Assim, o próprio desenvolvimento da economia financeirizada, o capitalismo na fase senescente, veio dar - a ele próprio - a machadada final.
O efeito político e geoestratégico disto é o que estamos a presenciar neste ano de 2022. Uma separação radical em dois mundos, o eixo Russo-Chinês, incluindo a Índia e muitos parceiros da Ásia Central e do Sul, além de uma ampla gama de acordos com África, América Latina e mesmo em setores da Europa. Por outro, um mundo dito Ocidental, que está mais ou menos limitado à Europa da UE, ao Reino Unido, aos EUA e aos anglófonos Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Neste bloco, os EUA reinam como potência hegemónica, ditando o que se deve ou não fazer e que posições tomar, até ao pormenor.
Atrevo-me a dizer que não haverá mais globalização liderada pelo «Ocidente», pois ela foi propositadamente deitada abaixo, tendo os estrategas norte-americanos decidido que era melhor assim para o seu poderio. Esta tendência já se afirmara claramente no consulado de Donald Trump. Agora, apenas está a ser levada ao extremo pelos neocons que decidem a política em Washington.
Segundo esta visão, é melhor ter uma mão forte, segurando um conjunto de países-vassalos (os da NATO e sua réplica no Pacífico), ao Império ter que se confrontar em permanência com competição, resultante da ascensão económica e geoestratégica dos que não se conformam com sua ditadura. Eles chamam isso: «Rules based order».
Isto serve também, ao fim e ao cabo, os interesses geoestratégicos da Rússia e da China, que estão apostadas ambas em maximizar a conectividade entre si e com os países da Organização de Cooperação de Xangai.
No meio, ficam nações falidas, destruídas pela guerra : a Ucrânia é a última de tais nações, mas não devemos esquecer a Líbia, o Afeganistão, o Iraque, o Iémen, e outras... Cada uma dessas nações terá de se reconstruir após guerras cruéis, o que poderá corresponder a decénios.
Nunca a história volta atrás; O que aconteceu num dado período, deixa um traço indelével que se prolonga até ao presente. Sem inteligência da História, dum modo aprofundado, somos conduzidos por clichés, por preconceitos, por ideologias de pacotilha.
Nunca é fácil compreender o mundo. Ele não se rege por qualquer «lei», ao contrário do que Marx e os marxistas criam; o mundo dos homens, das sociedades, das civilizações é caótico, ou seja, não é possível se aplicar qualquer «lei, regra ou princípio».
É preciso compreender isto e compreender que o mundo natural - o mundo das necessidades energéticas, incluindo alimentação, que é afinal energia para o nosso corpo - esse obedece a certas constrições, que não se podem eliminar: as leis da termodinâmica, as leis da vida, das leis genéticas até às leis que governam as populações; as leis da ecologia, dos sistemas renováveis e dos recursos finitos, etc.
As pessoas que têm formação em biologia ou áreas conexas, têm natural propensão em ver o mundo deste modo: Este modo de ver, se não for transformado numa pseudo- ciência, ou numa forma atualizada da ideologia cientista dos séculos XIX e XX, pode ser um instrumento muito mais fértil, quer para a prospetiva, quer para a planificação flexível.
Afinal, o melhor modelo é aquele que passou «o teste» de Éons de evolução biológica: Compreender a fundo estes mecanismos não implica compreender tudo o que respeita ao mundo dos humanos e suas sociedades, mas ajuda a colocar a economia, a sociologia e política, em perspetiva.
sexta-feira, 21 de abril de 2017
CIÊNCIA, RELIGIÃO, ESPIRITUALIDADE, ÉTICA
- p. 27