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quinta-feira, 26 de agosto de 2021

PODER TOTALITÁRIO E OBSESSÃO DE CONTROLO DO DISCURSO

Nomear: Ao dar-se um nome, está-se a definir o que determinado objeto, animal, ou pessoa, «são».

A Bíblia, no Livro do Génesis, é muito explícita ao indicar que Deus concedeu a Adão o poder de nomear todas as coisas da Criação. Na atualidade, antropólogos e historiadores das civilizações, debruçam-se sobre o universo do vocabulário de uma etnia, quer seja atual ou passada. Se não existe um termo próprio para designar um determinado objeto, ou conceito, isto é indicação de que ele, provavelmente, não faz (ou não fazia) parte do universo dessa etnia.
Ao nível individual, a riqueza ou a pobreza do vocabulário (na língua nativa) dum determinado indivíduo, está correlacionada estreitamente com o grau de educação por ele alcançado.
No romance celebérrimo «1984», Orwell descreve uma sociedade onde a própria língua (a Novilíngua) vai mudando, de acordo com as conveniências do poder totalitário. Ao ponto das pessoas não poderem exprimir de forma clara o que sentem ou pensam, pois não se encontram vocábulos apropriados no seu idioma.
A perda de referências culturais, com a perda da capacidade de se exprimirem e compreenderem a sua própria língua, afeta hoje muitos jovens. Embora não preocupe demasiado os poderes, mesmo nos estados mais ricos, esta é uma forma perniciosa de analfabetismo. Isto resulta do empobrecimento do universo linguístico-cultural e da renúncia da escola em realizar uma verdadeira formação humanista, o que implicaria a riqueza da língua a cultivar.
As «crianças-lobo» - crianças criadas por animais selvagens e que viveram fora de ambientes humanos durante anos - depois de recolhidas, ficam sempre com uma grande limitação em compreender o discurso dos outros e em articular a sua própria expressão verbal. A capacidade da fala e a compreensão linguística devem ser imperiosamente adquiridas numa fase precoce do desenvolvimento, sendo depois impossível superar completamente a ausência de contacto com a linguagem humana. Fica sempre um «handicap».

Se no vocabulário das pessoas não existem os vocábulos correspondentes a determinados conceitos, é fácil perceber que estes se tornem esotéricos, que as pessoas não poderão raciocinar devidamente, pois necessitam das palavras certas, não apenas para comunicarem, como também no próprio processo cognitivo.
O conhecimento atual sobre os mecanismos cognitivos permite ir muito mais longe do que as conhecidas áreas cerebrais de reconhecimento e de elaboração verbal. Os estudos sofisticados mostram que as áreas verbais, visuais, auditivas, etc. possuem conexões, ativadas quando se dá a locução, a audição ou a leitura.

Por todos estes factos, a censura, aberta ou velada, da utilização de determinadas palavras ou expressões, sob pretexto de serem «politicamente incorretas», é uma expressão de violência totalitária sobre determinadas pessoas, mas também sobre a sociedade em geral. A outra face da mesma moeda, é a sistemática aposição de qualificativos com uma carga emocional, moralizante e ideológica, evidente quando se designa determinado grupo, governo ou mesmo nação como «terrorista» , levando a uma série de automatismos de associação. Isto observa-se a outros níveis, também.
A «normalização do discurso» configura o primeiro estádio da tomada de poder totalitário, pois se trata de obrigar as pessoas que falam ou escrevem, a conformarem-se com um falso senso comum, com uma norma discursiva: Por exemplo, os países «ocidentais» são sempre qualificados como «democráticos», por oposição aos «orientais», etc.



Hoje, os mais poderosos meios de condicionamento são, com preocupante frequência, a «média mainstream» e a «academia» Estas arrogam-se o direito de qualificar todo o campo discursivo como «legítimo» ou não, como democrático ou não. Se for por eles considerado «marginal», é passível de exclusão. A liberdade de expressão não existe, se for apenas para alguns: São «autorizados» os discursos conformistas. Não podem por em causa a «ortodoxia», a dominação ideológica «bem-pensante».

Com a chamada crise do COVID, vieram ao de cima, nas sociedades ditas «liberais», estas tendências autoritárias. Multiplicaram-se os comportamentos de censura, de cobardia, de negação do outro.
Ao ponto em que a expressão «Direitos Humanos», quando pronunciada por certas pessoas, se tornou numa hipocrisia, num véu diáfano do seu autoritarismo.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

OS PROVÉRBIOS

                     

Este célebre quadro de Brueghel o Velho, representa os «provérbios flamengos». Os especialistas conseguem identificar perto de uma centena, sendo certo que alguns estão ainda em vigor, enquanto muitos caíram em desuso. No entanto, esta magnífica representação de «sabedoria popular» atravessou séculos e surge aos olhos contemporâneos como uma fantástica «feira das vaidades», um puzzle visual de adivinhas e de saborosos momentos de humor. 

Esta pintura fez-me reflectir na «proverbial» e muito longa história da utilização de provérbios. Não seria inapropriado dar uma (nova) leitura ao «Livro dos Provérbios», da Bíblia; quanto mais não seja, porque a civilização ocidental mergulha suas raízes na Bíblia. 

Mas, aquilo que recentemente me chamou a atenção para os provérbios (e o seu uso imoderado) foi a leitura do Dom Quixote de Cervantes, que demasiado poucas pessoas leram na versão original (e deliciosa). Neste romance picaresco, Sancho Pança é posto a proferir catadupas de frases feitas e provérbios, a propósito e a despropósito, em várias situações. Ele é admoestado por D. Quixote, defensor de uma oratória sóbria, concisa, provavelmente reflectindo o gosto de seu genial criador, Miguel de Cervantes.

A chamada «sabedoria» das nações não me parece dever ser encerrada em frases feitas. Lá porque uma frase rima com outra, será que é apropriado juntá-las numa mesma expressão? 
Verlaine, na sua Arte Poética, não deixa de verberar a rima:
Quel enfant sourd ou quel nègre fou
Nous a forgé ce bijou d'un sou
Qui sonne creux et faux sous la lime ?» [*]

Aqui, em Portugal, há muita gente que diz coisas absolutamente banais, com ar profundo, recorrendo a provérbios, como se fossem expressões de sabedoria. A estes digo-lhes a sentença, que me parece bem apropriada: «a rima é mentirosa». 

Convido os que têm gosto pela erudição, a lerem o pequeno opúsculo, composto por Benjamin Péret e Paul Éluard, um livro de provérbios «actualizados». Neste volume, 152 provérbios franceses são invertidos logicamente, mas o resultado dessa inversão é tão «sábia» como a versão habitual.
É o que se pode chamar «demonstração pelo absurdo». Se houvesse real profundidade nas frases rimadas, a inversão das afirmações não seria defensável. Porém, a inversão de sentido desses provérbios é perfeitamente lógica. 
De tal modo que, quem não conheça um determinado provérbio, pode pensar que a versão de Péret/Eluard seja a versão original.

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[*] Quem nos dirá os males da rima?
       Que criança surda, que negro louco
       Nos forjaram esta jóia fingida
       Que soa oca e falsa sob a lima?
  (em tradução de Manuel Banet)

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

DO NEOLÍTICO À IDADE DO BRONZE (PARTE IV *)

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                 Carro da idade do bronze, com c. 4000 anos

Se a sequenciação completa do genoma humano trouxe uma série de surpresas (mas isto seria tema para outro artigo) a descoberta de ADN antigo de várias proveniências e o seu relacionamento com o ADN das pessoas contemporâneas tem um papel igualmente desestabilizador relativamente às «certezas» das origens deste ou daquele povo. 
Hoje, iremos ver como é que um povo - os yamnaya - oriundo de uma zona entre as montanhas do Cáucaso e o Mar Negro, chamada o Ponto, se expandiu há cerca de 4500 anos atrás, espalhando os seus genes - como comprovado pelo ADN antigo - mas também a sua língua, o proto-indo-europeu, de onde derivaram quase todos os idiomas actuais da Europa e também do Próximo-Oriente, da Pérsia e do Norte da Índia.
Com efeito, contrariamente ao que se pensava, o modelo de transformação de uma cultura noutra por influências, «continuísta», não é o mais adequado, sendo antes a ruptura decorrente de invasão e conquista, uma modalidade de transformação que se afirma cada vez com maior nitidez, à medida que o ADN antigo vai sendo mais utilizado nos estudos.
Segundo os estudos com ADN antigo, os haplotipos autóctones (presentes no cromossoma Y) são substituídos, há cerca de 4500 anos atrás, seguidos de transformações em muitos aspectos tecnológicos, como as cerâmicas cordiformes, sepulturas de novo tipo, formando pequenas colinas artificiais e rituais diferentes de sepultamento, sepulturas individuais em vez de colectivas. Tudo o que se conhece nesta transição, indicia uma mudança de uma sociedade relativamente igualitária, para uma fortemente hierarquizada. 
Esta modificação teria mesmo sido acompanhada pelo desaparecimento completo dos autóctones do sexo masculino na Península Ibérica, como refere David Reich (1).

A domesticação do cavalo (2) e a utilização da roda radiante (ao contrário da roda de madeira sólida) tornando mais leves e ágeis os carros de guerra, terão sido os meios que permitiram a rápida conquista dos Yamnaya. 
Eles invadiram em ondas sucessivas, ultrapassando as grandes estepes e planícies a leste do Danúbio e do Elba, até ao Oeste do continente europeu, até o Atlântico. A data da conquista de Península Ibérica terá sido um pouco mais tardia, mas nem por isso foi menos avassaladora, ou mesmo, brutal.  
As hostes eram compostas essencialmente por homens; as mulheres não seriam mais do que um décimo da população em migração. Sabemos isso, pelo rasto do ADN antigo de haplotipos de  mulheres yamnaya, em populações europeias ocidentais após a invasão.
Houve portanto formação de descendentes híbridos entre homens yamnaya e mulheres autóctones. 

Note-se que ocorreu outra substituição de haplotipos típicos de uma população masculina autóctone de caçadores-recolectores, com aparecimento de novos haplotipos, oriundos de populações que já praticavam agricultura, muitos milénios antes (cerca de 10 mil anos antes do presente), aquando da transição do Paleolítico tardio para o Neolítico. Na Península Ibérica, o processo terá ocorrido há cerca de 8000 anos, bastante mais tarde que em relação ao centro da Europa. 
As migrações que espalharam as culturas do Neolítico na Europa deixaram rasto nos ADN dos cromossomas Y: verifica-se uma substituição não a 100%, mas da ordem de 80%. 
Por contraste, nas invasões do fim da idade do cobre (Calcolítico), início da idade do bronze, observa-se uma substituição total dos haplotipos anteriores (masculinos). Os especialistas em dinâmica populacional (3) da antiguidade colocam portanto a hipótese de que existiu uma guerra de extermínio e escravização dos sobreviventes, com tomada das mulheres dos povos submetidos pelos guerreiros invasores.

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Não sou a pessoa indicada para escrever em detalhe sobre as mutações (4) que sofreu o continente europeu, ao longo dos milénios do que se convencionou chamar a pré-história. 
Apenas gostava de chamar a atenção para o facto de haver muitas culturas esquecidas do grande público, do imaginário colectivo, apenas estudadas pelos eruditos. Mesmo as várias narrativas da antiguidade, que referem povos como os «filisteus» (Bíblia), ou os «troianos» (Ilíada), têm contribuído para uma visão parcial dos mesmos; só agora, com a arqueologia contemporânea, podem ser plenamente reavaliados. 



(1) A genetic analysis has revealed that, about 4500 years ago, part of southern Europe was conquered from the east. In what is now Spain and Portugal, the local male line vanished almost overnight, and males from outside became the only ones to leave descendants.
David Reich of Harvard Medical School in Boston, Massachusetts presented the results on Saturday at New Scientist Live in London, UK.
https://reich.hms.harvard.edu/

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

A REVOLUÇÃO LUTERANA TERÁ SIDO A MAIS IMPORTANTE DA MODERNIDADE

Não é em vão que coloco a hipótese do título:  A REVOLUÇÃO LUTERANA TERÁ SIDO A MAIS IMPORTANTE DA MODERNIDADE.

A cultura atual é sobretudo uma cultura que despreza o sacro, os assuntos de religião, mesmo entre aqueles que intelectualmente ainda se dizem possuir religião. 
Por isso, é bastante difícil fazer compreender aos contemporâneos que Lutero, ao abrir a Bíblia, lê-la e interpretá-la, ao traduzi-la em alemão, língua vernácula, não tem paralelo em importância na história das ideias do nosso tempo. Sim, ele foi contra o papado dessa altura, mas nisso não foi único, não foi o único que se rebelou contra os privilégios do clero, que os denunciou. Jan Hus, Zwingli e muitos outros antes e depois dele, fizeram-no nos termos mais enérgicos. 


Porém, aquilo que ele faz quebra a ideia de que o indivíduo apenas pode se aproximar de Deus sob a condução da igreja instituída, sob a orientação do poder eclesiástico, o qual se confunde com o poder temporal, nesse momento do fim do século XV e princípios do século XVI. 

Nessa época, também, os reis de Portugal estavam empenhados em continuar e aprofundar uma expansão do poder régio, por terras então desconhecidas (para os europeus ocidentais). Os «descobrimentos» portugueses e espanhoís, foram uma enorme abertura ao mundo, foram uma transformação brutal nesses países colonizados a ferro e fogo, uma acumulação de riquezas que iniciou a era capitalista na Europa, etc. 
Mas o facto de que a Escritura pode ser lida, pode ser ponderada e meditada por todos os que saibam ler e escrever, mudou a própria concepção do que seja o ensino. O escolástico ou académico típico passou a englobar no seu estudo a análise criteriosa das fontes, a discutir o rigor das traduções, etc. 
O legado do luteranismo, como ramo da religião cristã, sendo rico e contraditório, não o pretendo ter avaliado aqui. Apenas desejo sublinhar a enorme importância da ruptura operada por Lutero, uma ruptura, muito para além dos aspectos institucionais da Igreja, das relações com o poder civil, etc. Uma ruptura que, sendo essencialmente espiritual, sendo baseada num desejo de maior fidelidade à Escritura, vai arrastar múltiplas consequências: 

- O Iluminismo, em grande parte, nasce em consequência da Reforma, pois esta coloca como questão fundamental que a Bíblia tem que ser um livro aberto, um livro que os olhos e espírito do crente podem e devem ler, sobre o qual ele deve meditar, seria e constantemente. A Natureza, dirão os Iluministas, é um livro aberto também e Deus deu-nos a capacidade de conhecimento e temos de exercitá-lo estudando a Sua Obra, que é a Natureza.

- O princípio da educação popular, já não é apenas bom para o povo saber ler e escrever. É mesmo uma missão dos soberanos luteranos espalharem ao máximo a educação, por forma a que o povo tenha pleno acesso à leitura da Bíblia. Não foi com considerações materialistas, utilitárias, que as escolas para o «povo miúdo» foram fundadas, mantidas e expandidas. Foi na base de uma noção teológica, de criar as melhores condições possíveis para os súbditos aprenderem a Palavra de Deus. 
Nos países católicos, pelo contrário, a instrução elementar era tida como conducente a atitudes sediciosas, a questionar a autoridade: só uma pequena minoria, privilegiada social e economicamente (ou não, mas destinada ao baixo clero) tinha acesso a aprender a ler e escrever. A elevada taxa de analfabetismo continuou como uma chaga durante vários séculos, até bem dentro do século XX, no Sul da Europa [Portugal, Espanha, Itália (do sul)...]

- O princípio da liberdade religiosa; a fé cristã é afirmada com rigor nos países do Norte da Alemanha e Escandinávia, a versão luterana da mesma é abraçada pelos monarcas, aristocracia e altos funcionários, mas não se vê uma conversão forçada, na generalidade dos casos, não se vêem perseguição e autos de fé, como em países católicos, com a Inquisição, que condenaram muitos intelectuais à fogueira por «ideias protestantes, heréticas». 
A liberdade religiosa permitiu, mais tarde, a liberdade política; apenas depois de ser admitido que se poderia ser leal ao soberano, apesar de não se professar a mesma religião ou confissão, se tornou aceite que a dissidência política não era sinónimo de traição à pátria. 
Isso demorou muito tempo a ser aceite, mas veja-se que os países com melhor e mais longo registo de liberdade política, também são os que tiveram maior tolerância em termos religiosos, entre eles os de confissão luterana maioritária.

Evidentemente, muito do que aconteceu em 600 anos, foi devido a enormes forças sociais que se desenvolveram, mas certos acontecimentos da vida intelectual, como o pregar as 95 teses na porta da Universidade de Wittemberg, assim como a Bíblia traduzida para o alemão por Lutero, têm uma marca simbólica muito grande. 

Como acontecimento intelectual, só consigo encontrar paralelo no «De Revolucionibus» o célebre tratado de Copérnico, que desencadeou uma controvérsia científica, a qual foi desde cedo «misturada» com argumentos teológicos.

Em Portugal, alguns espíritos, apesar da Inquisição, ousaram estudar as teses luteranas. 
Um deles, Damião de Goís, teve a audácia de falar com o próprio Lutero e seus adeptos. 

Ele era um diplomata, um cronista (historiador) do Reino, alguém com cargos oficiais. Isso foi a sua proteção, pois quando foi denunciado ao Santo Ofício, não terá sido violentamente interrogado; mas não deixou de ser condenado, de sofrer prisão e humilhação, por ter encetado o diálogo com luteranos. 
Goís, provavelmente, era um erasmiano ou seja, advogava uma reforma por dentro da Igreja, sem ruptura.