Acordou nu, com a claridade difusa permeando os cortinados. Voltou-se e continuou a sonhar...
Algures numa planície, caminhava no meio de prados e de campos de trigo. O coração como que lhe saltava da caixa - de emoção - mas não sabia porquê.
A pouco e pouco, foi vendo a linha diáfana do horizonte e do dia a nascer. Parecia que tudo se ia tornar claro.
Porém, a claridade tão desejada não lhe trouxe senão os silvos das balas e o estrondo dos canhões.
A mortífera guerra civil era o cenário no qualestava marchando novamente, com os seus companheiros. Marchavam ao encontro dos do outro lado, que faziam exactamente como ele.
Sentiriam eles o mesmo que ele? Certamente!
Todos sabiam que este morticínio entre irmãos era a maior estupidez e acto criminoso, que se podia conceber. Mas, ele não tinha coragem para desertar. A probabilidade de ser apanhado era alta. Isso equivalia a morrer e da pior forma.
Mas, depois de ter visto o que a guerra realmente era, a única vitória que almejava era a da Paz. Era essa, somente, a esperança de sobreviver, de regressar para junto dos seus, de participar na reconstrução da casa, longe dos campos de batalha, para onde o arrastaram.
Acabou por acordar, rememorando o que sonhara antes: então, inventou nova versão do «Battle Hymn Of The Republic», com flauta e tantos outros instrumentos, mas sem letra: um Novo Hino... um hino à Paz e ao que nos une, humanos de todas as raças e crenças.
Lá vêm outra vez, estes sons de beleza pungente, que trespassam a minha alma!
Dentro do sonho acordado, que me proporciona a audição atenta desta serenata, sou transportado para outro espaço-tempo paralelo, outro universo em que o real se abre, como travessia do espelho.
O leitor não pode saber por que razão estes sons têm um efeito tão estranho na pessoa que escreve.
Nem seria fácil conhecer a verdadeira razão, nem a personagem está acessível para desvelar todas as aventuras que viveu em sua vida.
«Em suas vidas», seria melhor dizer, porque as vidas que já foram, retomam seus direitos e revivem no instante em que estes acordes, sacros e endiabrados da música de Tchaikovsky, atravessam os ares.
Tudo está expresso ao pormenor em cada movimento.
Quando fecho os olhos, vejo o passado não sonhado, mas recordado ou revisitado, de eras em que a vida tinha uma vibração mais intensa.
A chave da história fantástica, alegre e triste, reside na própria música.
Se fosse traduzir cada episódio em palavras, cairia na banalização e dessacralização que isso implica.
Esta serenata tem a ver com alguém que existiu realmente.
O compositor não inventou a história que deu pretexto a esta peça, mas teve o bom gosto de apresentá-la enquanto música absoluta, não programática.
No entanto, aqueles poucos que a ouviram, aquando da sua estreia, sabiam!
A linguagem musical raramente exprime, de forma mais límpida, os sentimentos e as paixões humanas: por isso mesmo, ela é tão poderosa.
Já todos os raios de Sol se vão extinguindo, além do horizonte coado de nuvens. O halo do astro de luz não se desfaz logo totalmente.
No firmamento, mesmo por cima de nossas cabeças, uns gansos grasnam, ao voarem para seu refúgio de Inverno.
Tudo parece imaterial. A pouco e pouco, desce um manto azul profundo, mais espesso no Oriente.
As estrelascomeçam a acender-se, a brilhar com maior intensidade, cada vez mais cintilantes.
No silêncio, cortado pelos apelos das aves nocturnas, cada instante toma a dimensão de um espectáculo solene, à medida que os últimos reflexos de luz solar se extinguem por completo.
Estava naquele aeroporto há tantas horas. Esperava já não sei que voo; apenas sabia que tinha de esperar por uma vaga, um lugar num voo ... para chegar ao meu destino.
Os zumbidos, ruídos metálicos e as vozes confundiam-se e formavam um fundo sonoro contínuo. De vez em quando, dormitava, mas depressa acordava. A espera era ritmada pelas vagas de gente que se aproximavam ou afastavam, no hall em me refugiara.
Ia-me entretendo com recordações recentes da minha estadia naquela terra, já distante, a que deixava para trás, ou daquela a que regressava.
Talvez tivesse sido ao terceiro dia, que o encontrei. Ele estava tão saturado como eu. Descobrimos que íamos para o mesmo sítio. Falámos de coisas triviais, prometemos nos encontrar mais tarde.
Mas a probabilidade real de nos encontrarmos depois, após a chegada à cidade-destino, era muito próxima de zero.
Dias depois, recebi a gravação acima, por via de redes sociais... só depois de muito pensar, cheguei à conclusão que tinha vindo dele; o tal colega de infortúnio no aeroporto em caos total.
Síntese e harmonização do nosso andar em círculo, em torno do Globo, tal como moscas zunindo até caírem exaustas? Ou profunda meditação que nos auxilia a abrir os chakras do corpo e alma? Ou ainda expressão do mundo de sonho, veiculado pelo músico xamã?
Uma
rapsódia de melodias, umas inquietas outras serenas, trotando na sua cabeça. Não se podia levantar da marquise onde estava deitado, o corpo hirto, os braços
ao longo do tronco, todo coberto por um pano de linho branco.
Ouvia
vozes que conferenciavam, a poucos metros, mas não distinguia as palavras, nem
sabia identificar seus autores.
As
palavras não tinham sentido, quaisquer que fossem; não fazia sentido, senão a
melodia sublime que emanava do âmago. Como que chamando a sua
alma para o alto, declinando todo o carinho que pode possuir uma voz de
mãe, de abraço terno e caloroso, mas sem nostalgia... desse "eu", que
deixava para trás; ele seria em breve cinza; já nada restaria da entidade
corpórea senão a concha, vazia do espírito que a habitara.
Não
havia regresso à vida, nem havia morte; a alma estava a ser transportada para
uma nova dimensão.
A
serenidade que ressentia, não era penosa ou pesada. A analogia musical
surgia como a única possível. Cada nota musical era como que uma descoberta eterna, revelação, desvelar de antigo segredo.
Vibração,
onda, frequência... todo o Universo, afinal, se abria e acolhia este Ser, o
verdadeiro Ser transcendente.
Dentro de duas horas vão soar as matinas, mas estou ainda acordado.
- Será que a minha filha conseguiu chegar a São Petersburgo? Porque é que as comunicações são tão demoradas? Não estamos no século XVIII, o chamado «Século das Luzes»?
- Ainda continuo a pensar no que vou fazer com o despacho do barão de Z, o meu «ouvido especial» junto da corte de Berlim. O relato da conversa entre o barão de Z e o conde de L, poderá ser da mais alta importância para os interesses de sua Alteza a Czarina de todas as Rússias, mas tenho de encontrar maneira de confirmar os dados por outros meios, sem o que apenas entra na categoria de boatos.
- Aquele médico que me trouxe as medicações para a gota tinha uma conversa bem amável; também é apreciador de boa música, entusiasmado com o novo estilo, cultivado por Carl Philip Emmanuel, filho do velho Bach, que obteve o cargo de Kappelmeister na corte de sua Majestade Frederico da Prússia. Não é pequeno feito, obter tal nomeação, pois o rei-músico tem um nível de exigência quase tão grande com seus músicos, quanto com seus oficiais do exército!
- Neste continente as guerras sucedem-se após pequenos intervalos de paz, negociados penosamente pelas chancelarias das potências. Mas o nosso trabalho de diplomatas é logo desfeito pela ambição de monarcas e pelas intrigas de corte. Já estou velho e cansado de tantos anos a servir sua Alteza a Czarina, neste papel sem qualquer esperança de que os homens ganhem juízo.
Agora, o dia já está a clarear e ouve-se o chilrear das aves matinais. Vou traçando a custo estas palavras; estou quase a adormecer. Só me vem o sono pela ação conjunta de substâncias soporíferas e da música...
Vou pedir ao rapaz, que está executando a minha peça preferida, uma composição do velho mestre de Eisenach, para se retirar para os seus aposentos.
(A história extraordinária desta ária com variações pode ser ouvida aqui, em francês antecedendo uma bela interpretação de Pierre Hantai)
O sonho era real ou a realidade era um sonho, mas isso que importa? Sentia aquele calor interior que nos torna imensamente felizes e poderosos.
Enquanto eu guiava na noite por uma estrada odorífera, com arbustos mediterrânicos, ela estava simplesmente ao meu lado. Talvez nem falasse de todo, não sei.
Mas a sua presença era como aquela voz; mais que real, como obsecada, sussurrava ao meu ouvido: «Quizás, quizás, quizás...».
Assim, a noite se foi desenrolando, sobre o asfalto cinzento e vendo desfilar vagas sombras de árvores balançando na brisa.
A viagem, suave e intensa, passava-se dentro do meu cérebro, sim, mas também num espaço hipergeométrico, onde tudo era verdadeiro e palpável.
Como de costume, no final dos meus sonhos, a estrada não tinha um final, um destino: Esfumava-se, dissolvia-se, assim como todos os pormenores do percurso.
No entanto, entranhadas nos meus neurónios, nos meus músculos, nos meus vasos sanguíneos, permaneceram as sensações, ou o eco das mesmas. A memória, caprichosa, recordava certos pormenores e sobretudo as sensações tidas durante esta viagem.
Mas meu desespero era o de não recordar o rosto da moça sentada ao meu lado na viagem.
Alguém que encontrei noutra dimensão, da qual estou separado, de forma aparentemente irremediável.
De novo, estava neste baile,
tentando ver, entre o nevoeiro de fumo, onde se encontrava a moça com quem
tinha já dançado, mas que me escapou, no torvelinho dos corpos suados...
Os pares evoluíam pela pista, um
soalho de madeira gasta, envolvidos numa atmosfera irreal. Uns tímidos,
outros apaixonados, sem nunca perder a compostura, dançavam enlaçados os
slows e os swings.
A orquestra, do cimo do palco,
dominava tudo. Punha essa gente toda a rodar, a voltear, e revoltear, sem
quebra de ritmo. Eram marionetas de tamanho natural, puxadas por invisíveis
cordas, deslizando na pista sem nunca se cansarem.
Assim que ela me viu, esboçou um
sorriso encorajador; compreendi que me concedia a próxima dança. Um pouco
de conversa, uns passos de dança, um convite para tomar um refresco no bufete,
era o máximo que podia esperar. Talvez houvesse um encontro posterior... Mas,
haveria mesmo?
Muitos anos depois, encontrei-a
de novo. Não, não estava envelhecida... mas era como saída de sonho
sonhado há séculos.
Agora... nem sei se continuo a
sonhar, ou se estou acordado, saído duma longa hibernação...
Fools rush in Where angels fear to tread And so I come to you my love My heart above my head
Though I see The danger there If there's a chance for me Then I don't care
Fools rush in Where wise men never go But wise men never fall in love So how are they to know
When we met I felt my life begin So open up your heart and let This fool rush in
Estava semi-adormecido, à longa mesa corrida da taberna.
Nisto, aparece uma barulhenta e alegre tropa fandanga, tangendo vários instrumentos, com roupas de fantasia. Esta tropa aclamava o Rei Momo, enquanto entoava a folia célebre «Rodrigo Martinez».
Logo se dispuseram em roda, com duas figuras no centro. Estas dançavam com trejeitos cómicos e eróticos. Os passos eram duma «baixa dança», mas as suas poses grotescas faziam rir a assistência, enquanto os músicos executavam variações sobre a simples melodia, introduzindo sucessivas figurações.
No centro, o par (um homem e um travestido) mudava suas maneiras a cada nova quadra, adoptando sucessivas mímicas, cruas sátiras de aristocratas, poetas, cortezãs ...
Contagiado, fui para junto da roda, batendo o pé ritmicamente e cantando os estribilhos brejeiros. Só depois desta alegre folia, a tropa carnavalesca começou a beber. Nada do que se passou a seguir me ficou na memória, porque o espírito de Bacco se apossou de meu cérebro.
Acordei no dia seguinte, deitado no soalho da taberna, com dor de cabeça e língua pastosa, típicas da ressaca, mas bem disposto; regressei a casa.
Vogava num universo enfumado, onde se evaporavam os rostos dos companheiros da véspera, como se os fantasmas se confundissem com os vivos, dando a estes uma consistência fantasmagórica, enquanto aqueles se faziam passar por viventes.
Em cima de uma mesa comprida, apenas iluminada por um candelabro, jazia um corpo. Estava ainda revestido da aparência do que fora, uma jovem e alegre criatura.
No escuro, ouviam-se murmúrios de preces, entrecortados de suspiros e silêncios.
Lá fora, o sol de Junho resplandecia e as aves cantavam, em contraste insólito com a cena de desolação que se apresentava no interior.
O espectáculo deste palácio do renascimento parecia-me real.
Sentia-me oprimido e só desejava sair, mas não sabia como. Foi um pequeno pagem que me indicou, com um gesto tímido, um cortinado, recobrindo uma porta. Avancei para lá, levantei o cortinado e abri a porta.
Foi então que abri os olhos, vendo a realidade do meu quarto, banhado em luz natural.
Suspirei e fiquei deitado, a tentar relembrar-me dos pormenores do que acabara de sonhar.
[SE OS SONHOS INFESTAM A MINHA VIDA,
É PRECISO DAR ESPAÇO AOS SONHOS, SE UMA MELODIA ME ENCHE A
ALMA, É PRECISO QUE ELA SAIA, RESPIRE]
Eu dei-me a sonhar a melodia desta
célebre peça. Ela estava presente no interior do meu sonho, desempenhava
um papel... Mas qual?
Tinha um timbre familiar e antigo,
este piano, cujas notas percutiam no interior da minha cabeça.
Não posso fazer mais do que
conjeturas sobre o que sonhei: talvez um encontro à beira do lago Balaton? Um
passeio pelas dunas de Deauville? Uma tarde soalheira à sombra duma latada em
Colares?
Não sei; não posso senão fantasiar.
Qualquer coisa como o reencontrar de uma paisagem, que se escondia na minha
memória, como de outra vida se tratasse... Há tanto tempo já!
Porém, os sentimentos de nostalgia e
de tristeza mesmo, não me pareciam assim tão insuportáveis; gostava de
vaguear por esses espaços meio reais, meio sonhados.
Tudo se prendia com afetos, com
ausências, com romances para sempre insatisfeitos. Assim
como conversas bruscamente truncadas, que nunca mais terão a sua continuidade.
Assim é a nossa vida, uma sucessão
de momentos, alguns de espanto, muitos de enfado. Assim nós seremos um dia, somente recordação saudosa de outras eras.
Depois... Bem, depois é... um outro
começar, outra vida que desponta e vem encher outro peito, outra
cabeça, de inúmeros sentimentos e pensamentos...
Perdoa-me, estou cometendo o crime de
lesa-música, ao reduzir algo tão sublime a sensações pessoais. Pessoalíssimas.
Mas este escrito destina-se apenas a exorcizar uma obstinada reverberação do
espírito.
PIÈCE DE VIOLE COMPOSÉE PAR MARIN MARAIS (XVII SIÈCLE)
Dentro do quarto apenas luzia uma candeia tremeluzente. Eu sabia que estava um frio intenso, mas não sentia frio nenhum, pois ardia de febre.
Estava no quarto de uma residência nobre, algures no centro da França, no início de Março de 1674.
Tivera o azar de me ferir ao cair do cavalo numa caçada nos domínios de Monsieur le Compte de M.
A minha fronte estava molhada de suor. Sentia vagamente o peso dos membros sobre a cama. Escutava o vento uivar lá fora mas, estranhamente, isso não me assustava nada.
A porta abriu-se e uma luz intensa encheu o quarto. Um homem muito alto e magro entrou, segurando uma bandeja. Primeiro julguei tratar-se de algum barbeiro-cirurgião que vinha para me aplicar um daqueles tratamentos, perfeitamente inúteis.
Mas, não... a bandeja, uma vez destapada, mostrou uma terrina, um prato e uma colher em prata, uma molheira de porcelana e um copo de vidro cinzelado. O criado, silencioso, pousou a bandeja a meu lado, na mesa de cabeceira.
Com palavras sussuradas, foi enchendo o prato de caldo fumegante da terrina. Encorajava-me a comer para me recompor depressa. Mas eu não tinha fome nenhuma, até tinha receio de engolir o líquido, de tal maneira a garganta me magoava.
Esforcei-me, porém, a deglutir um pouco do caldo, mais por deferência para com os meus hóspedes, do que por sentir qualquer necessidade. Há três dias que não comia nada de sólido, mas tinha conseguido aguentar esta febre, graças aos cuidados do Senhor Conde e de sua Esposa.
Depois de comer três ou quatro colheradas, devo ter perdido os sentidos. Mergulhei num sono profundo.
Quando acordei estava de novo sozinho. Mas o quarto já não estava escuro, pelas pesadas cortinas entreabertas filtrava uma ténue luz da manhã brumosa.
Estive vários dias assim. Não sei quanto tempo, ao certo, estive neste estado. Mas acabei por vencer a febre, conseguindo primeiro levantar-me e caminhar alguns passos no quarto, depois já dando tímidos passos no longo corredor, até ao salão, onde crepitava o fogo de lenha, uma lareira nobre, de mármore negro esculpido.(*)
[*Acaba aqui o relato do caderno manuscrito, descoberto num sótão...]
sonho um sem-fim de imagens coloridas e estranhas.
É um desfiar de lendas e histórias, na muito sábia e boa narrativa duma anciã.
É isso que me contam estes inspirados acordes, ora narrando a história nos instrumentos de cordas, nos sopros e por fim, nos longos desenvolvimentos do piano.
Este adquire vida própria, por vezes conduz a orquestra, por vezes toma atalhos e precipita-se para outro plano do espaço-tempo.
A impossibilidade de encontrar palavras para descrever a música é igual à impossibilidade de descrever os sentimentos tumultuosos que me assaltam de cada vez que oiço este concerto.
Não posso jamais deixar de estremecer aos primeiros acordes do 2º andamento.
Este concerto tem para mim um significado duplo. É verdade que Rachmaninov o escreveu ao sair de um estado depressivo, tendo a recuperação sido devida a um médico amigo, ao qual o compositor dedicou esta belíssima obra-prima, por ter-lhe permitido voltar a criar, a exprimir os seus sentimentos e pensamentos pela arte dos sons.
Mas, quando o ouvi pela primeira vez, não sabia nada disto: porém, a sua originalíssima estrutura e a humanidade de se desprendia dele forçaram-me a ouvi-lo com um imenso respeito e espanto, perante a revelação de todo o seu potencial poético.
Cada vez que oiço este extraordinário cume da música não posso deixar de sentir meu coração, minha alma e espírito, a serem arrastados.
A intensidade da música penetra todos os meus poros, é físico. Sempre a oiço em profundo recolhimento, como experiência mística.
Estou a vogar num oceano
de música, sem rumo. A brisa vem-me acariciar as faces e sei que tudo isto é
impossível - mas aconteceu.
Pois é verdade que os
sons me transportam para os ambientes mais esquisitos, arrastado por movimentos
dos ares, onde se encontram as estranhas e envolventes figuras etéreas que nos
tomam e nos fazem viajar até às galáxias mais distantes.
Estou mesmo acordado no
sonho, agora.
Observo o estranho destino
do saltimbanco que atravessou a rua e nunca mais voltou… e que se lembrou de
abordar a vida pelo reverso, pela noite- mistério, pela poesia.
Gostou de ter ido parar à
outra margem: «Nunca mais irei voltar», declarou, convicto … «Sim, apenas pelo grito,
pelo sabor do instante e do beijo muito apertado … O rio também corre aqui,
deste lado.»
Dormi com uma estrela,
das que cintilam no céu, das que nunca alcançaremos… ela é a minha vida
verdadeira… Passo o dia a suspirar pelos seus braços.
Deslocava-me por vielas esconsas e
desertas, não sabendo muito bem em que sítio me encontrava, se nos velhos
bairros de Lisboa, se nos de Setúbal ou mesmo de Coimbra.
Eis senão quando encontro um frade, com
o seu hábito de burel e o rosto totalmente na sombra do capuz.
Perguntei-lhe, naturalmente, onde me
encontrava. Ele olhou para mim e, espantado, disse-me:
- «Está na presença de José António de Seixas»
Retirou o capuz, deixando ver um rosto
trigueiro, quase infantil na sua extrema juventude.
Mal me recompus do choque, pegou-me
gentilmente pela mão e disse-me em voz sussurrada:
- «Quer ver um espetáculo único,
exclusivo e delicioso?»
Não sabia o que responder, então
apertei-lhe a mão, em sinal de assentimento... Mais perdido do que já estava,
era realmente difícil, naqueles tempos...
Arrastou-me o jovem Seixas ao portal de
uma casa apalaçada de imponente fachada. Logo dois criados em libré abriram as
pesadas portas de madeiro, para deixar-nos passar. O músico era, com certeza,
esperado.
Este, sempre braço-dado comigo, subiu a majestática escadaria,
iluminada por tochas, sustentadas por estátuas de escravos negros profusamente
policromadas.
- Mas onde me encontrava eu, agora? Não
sabia. Continuava a não ter a mínima ideia, embora já tivesse percebido que se
tratava de Lisboa... Mas de uma Lisboa do início do século XVIII.
Nisto, o jovem que aqui me trouxera
abriu uma porta de duplo batente, com brasões e relevos em talha dourada,
revelando um salão onde várias damas e senhores, sentados, conversavam e
pigarreavam rapé.
Assim que viram o jovem, aplaudiram-no efusivamente, dando
vivas e palavras simpáticas de encorajamento.
Este fez uma vénia galante, apesar de
ser um jovem frade.
Sem demoras, pôs-se ao cravo, um instrumento
de um só teclado. Ele tangia o singelo instrumento, como se acariciasse o dorso
de um belo animal; tirava dele sons subtis ou arrojados, com a maior
naturalidade, como quem conversa.
Ele improvisava como se as teclas e cordas
fossem os seus próprios instrumentos fonadores, ou seja, cantava com os dedos.
Após cerca de meia hora parou a exibição virtuosistica do jovem e um senhor
muito bem arranjado e empoado - provavelmente o dono da casa - apresentou aos
presentes um nobre cavaleiro, de porte majestático, austero:
- «Il Signore Domenico Scarlatti»
Este fez uma breve reverência
dirigindo-se sem hesitação ao fradinho que se erguera entretanto e o olhava com
um misto de adoração e de terror.
- «Não temas, Caro...cuidarei que tu
faças parte da Capela de sua Alteza el Rei Dom João. Ainda ontem, ele me pediu
se eu conhecia em Napoli um bom e talentoso organista... Eu repliquei: Pois tem
Vossa Majestade quem muito bem o sirva no Seu próprio Reino».
Não recordo mais nada desta memorável
cena. Talvez eles tenham jogado uma partida de cartas, bebendo um vinho do Porto e cavaqueando, até muito tarde.
Dans le vieux parc solitaire et glacé Deux formes ont tout à l'heure passé.
Leurs yeux sont morts et leurs lèvres sont molles,
Et l'on entend à peine leurs paroles.
Dans le vieux parc solitaire et glacé
Deux spectres ont évoqué le passé.
- Te souvient-il de notre extase ancienne?
- Pourquoi voulez-vous donc qu'il m'en souvienne?
- Ton coeur bat-il toujours à mon seul nom?
Toujours vois-tu mon âme en rêve? - Non.
Ah ! les beaux jours de bonheur indicible
Où nous joignions nos bouches ! - C'est possible.
- Qu'il était bleu, le ciel, et grand, l'espoir !
- L'espoir a fui, vaincu, vers le ciel noir.
Tels ils marchaient dans les avoines folles,
Et la nuit seule entendit leurs paroles.
Verlaine
Les fêtes galantes
Não existem fronteiras para o passado
Somente as que colocamos no nosso coração
A música vem-nos banhar
com sua atmosfera d'encantamento d' eras passadas,
d' ondas vibrantes, ecos d' épocas doiradas,
magia da infância, p'ra sempre abandonada...
A minha voz fica embargada
com o sentido profundo da melodia unida às palavras
entretecidas do poema em nostálgica e sábia meditação.
Serei náufrago do passado por opção,
deliberadamente, no presente de banal e infinita chateza...
prefiro os espectros dum revisitado passado
que nunca se foi, junto a vultos cimeiros da Arte.
Eram 4 horas da manhã. Estava a
chuviscar aquela chuvinha que nos molha lentamente até aos ossos. Entrei num bar,
com luzes vermelhas, onde algumas prostitutas conversavam, ao balcão, com dois
ou três clientes…
Sentei-me numa mesa, não sabendo
muito bem o que escolher. Veio uma moça muito vistosa, pedir-me para se sentar.
Eu acedi, já sabendo que isso significava, no mínimo pagar o dobro do «consumo
obrigatório». Pedi uma garrafa de tinto, argumentando que o champagne me fazia
azia (o champanhe surrado, com certeza…)!
A partir daí, as minhas memórias
começam a ficar confusas; as luzes muito fracas, davam um halo de «mistério»
àquilo que não o tinha. Quanto à conversa, não retive nem um pouco do seu
conteúdo; a moça tinha jeito em me fazer sentir bem-disposto, isto ainda me
lembro.
Após uma pausa na música, iluminou-se
uma zona do fundo, que afinal era um pequeno palco, onde se desenrolou o espetáculo
de striptease: uma falsa loira, que imitava Marilyn Monroe com alguma
verosimilhança… a meus olhos.
Posso ter sonhado tudo o que
descrevi acima, pois no dia seguinte, acordei na minha cama, sem mais do que
uma persistente dor de cabeça. Não me recordo como acabou a noitada e como vim
para casa. Com certeza, vim no meu próprio carro; as chaves estavam pousadas ao
lado da mesinha de cabeceira. Mas mais do que isso não sei.
Estranhamente, não sentia cansaço
nenhum. Levantei-me, tomei um duche; engoli o pequeno-almoço e fui para o
trabalho. Tudo sem pensar, num automatismo bem rodado.
Nunca mais fui àquele bar; nem sei
se realmente ainda existe, nem se as personagens que encontrei ainda aí
trabalham. Tudo se passou como se fosse «noutra vida». Mas tal não pode ser; pois eu
sei, até certo momento no tempo, o que fiz.
Estou dentro de um longo túnel. A luz difunde-se desde uma extremidade, por detràs de mim. Oiço uma música muito calma e envolvente. Sinto um bafo quente, semelhante ao do vento na praia.
Agora a paisagem mudou, só se vê uma planície semi-desértica com ervas amarelecidas e outras plantas rasteiras. Ao nível do solo há uma evaporação intensa. Todas as imagens estão defocadas. O Sol põe-se magestoso, inundando pro fim o horizonte de tons fúlgidos.
Quando, por fim, o astro do dia se põe, ele irradia uns últimos clarões de luz para lá do horizonte, iluminando um céu de oiro e azul.
Em breve, não mais se ouvem as cigarras e a planície vive um momento de suspensão no tempo. O silêncio é tão real, que ressoa... no coração.
Versos a Afrodite, Deusa da Geração do Amor e da Vida
A cada passo meu, dentro deste jardim, se vai aproximando o
coração da luz. Em ti encontrei o fruto escondido do amor sem pecado. Do amor
que se estabelece entre dois seres de luz, fora do tempo e do espaço, porque
estão no plano universal do amor de Deus.
As guerras que nos atormentavam, as de ferro e fogo, as de
corações inflamados pelas paixões terrenas, não desapareceram, mas não nos
causam já esse abalo que nos desvia de Ti.
No meu coração te transporto sem o dizer a ninguém, pois o que
há de bom e precioso deve ser preservado do olhar cobiçoso.
O ouro que é meu, esse que é verdadeiro, não é o que se encontra
nos cofres e nas baixelas. O ouro que está em mim, não reluz e nem se pode
cambiar, tem só uma existência: a do espírito comparticipando no Todo.
Estou em comunhão contigo, Deusa, com a beleza imóvel e
intensamente compassiva do teu olhar poisado sobre mim. Em teu coração eu me
refugio, recebo tua proteção. Sou teu, dou-te a minha fidelidade e a verdade de
meu ser.
O horizonte está entrecortado por colinas, onde tufos incertos
de bosquedos teimam em assinalar a sua presença. O rio está quase seco, apenas
serpenteando um fio de água por entre pedras e juncos. Oiço gritos ao longe, de
uma aldeia ou quinta a duas léguas do ponto onde descanso. O cavalo entretém-se
com os raquíticos pastos, ressequidos pelo longo Verão da meseta. O calor ainda
é demasiado para nos pormos a caminho. Não consigo pregar olho, pois as moscas
zumbem em torno de nós, sem descanso. O Sol ainda está acima do horizonte;
quando o crepúsculo chegar, retomarei caminho na estrada de Toledo.
Penso no que acabo de deixar para trás, os olhos humedecem-me.
Desterrado, por mim próprio, para o todo sempre, condenado pelo amor impossível
que me atormenta. Leal e dignamente, apenas me resta a opção de tomar o hábito
de monge numa ordem religiosa.
Ela sabe onde me irei acolher, somente ela e mais ninguém.
Ao
entrar nesta fraternidade monástica irei receber um nome, atribuído pelo
superior: somente ele saberá a minha identidade, o meu nome civil, o título nobiliárquico de que sou portador,
desaparecerão. As minhas propriedades, todos os meus bens terrenos, pertencerão
à ordem monástica. Isto custa-me infinitamente menos do que o facto de nunca
mais vê-la, a Dona e Senhora de meu coração, a única.