Deslocava-me por vielas esconsas e
desertas, não sabendo muito bem em que sítio me encontrava, se nos velhos
bairros de Lisboa, se nos de Setúbal ou mesmo de Coimbra.
Eis senão quando encontro um frade, com
o seu hábito de burel e o rosto totalmente na sombra do capuz.
Perguntei-lhe, naturalmente, onde me
encontrava. Ele olhou para mim e, espantado, disse-me:
- «Está na presença de José António de Seixas»
Retirou o capuz, deixando ver um rosto
trigueiro, quase infantil na sua extrema juventude.
Mal me recompus do choque, pegou-me
gentilmente pela mão e disse-me em voz sussurrada:
- «Quer ver um espetáculo único,
exclusivo e delicioso?»
Não sabia o que responder, então
apertei-lhe a mão, em sinal de assentimento... Mais perdido do que já estava,
era realmente difícil, naqueles tempos...
Arrastou-me o jovem Seixas ao portal de
uma casa apalaçada de imponente fachada. Logo dois criados em libré abriram as
pesadas portas de madeiro, para deixar-nos passar. O músico era, com certeza,
esperado.
Este, sempre braço-dado comigo, subiu a majestática escadaria,
iluminada por tochas, sustentadas por estátuas de escravos negros profusamente
policromadas.
- Mas onde me encontrava eu, agora? Não
sabia. Continuava a não ter a mínima ideia, embora já tivesse percebido que se
tratava de Lisboa... Mas de uma Lisboa do início do século XVIII.
Nisto, o jovem que aqui me trouxera
abriu uma porta de duplo batente, com brasões e relevos em talha dourada,
revelando um salão onde várias damas e senhores, sentados, conversavam e
pigarreavam rapé.
Assim que viram o jovem, aplaudiram-no efusivamente, dando
vivas e palavras simpáticas de encorajamento.
Este fez uma vénia galante, apesar de
ser um jovem frade.
Sem demoras, pôs-se ao cravo, um instrumento
de um só teclado. Ele tangia o singelo instrumento, como se acariciasse o dorso
de um belo animal; tirava dele sons subtis ou arrojados, com a maior
naturalidade, como quem conversa.
Ele improvisava como se as teclas e cordas
fossem os seus próprios instrumentos fonadores, ou seja, cantava com os dedos.
Após cerca de meia hora parou a exibição virtuosistica do jovem e um senhor
muito bem arranjado e empoado - provavelmente o dono da casa - apresentou aos
presentes um nobre cavaleiro, de porte majestático, austero:
- «Il Signore Domenico Scarlatti»
Este fez uma breve reverência
dirigindo-se sem hesitação ao fradinho que se erguera entretanto e o olhava com
um misto de adoração e de terror.
- «Não temas, Caro...cuidarei que tu
faças parte da Capela de sua Alteza el Rei Dom João. Ainda ontem, ele me pediu
se eu conhecia em Napoli um bom e talentoso organista... Eu repliquei: Pois tem
Vossa Majestade quem muito bem o sirva no Seu próprio Reino».
Não recordo mais nada desta memorável
cena. Talvez eles tenham jogado uma partida de cartas, bebendo um vinho do Porto e cavaqueando, até muito tarde.
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