Esta sonata de Beethoven, uma das minhas preferidas, soa-me como sendo a peça musical mais adequada, não apenas ao meu estado interior presente, como ao exterior, a tudo o que se passa neste mundo de hoje. Por isso, escolho sempre os melhores interpretes, como Valentina Lisitsa, para usufruir plenamente da poesia heróica (a poesia do romantismo ascendente) que se desprende das sonatas de Beethoven.
- Um portento, que à distância de mais de dois séculos, consegue veicular-nos a sua energia, através de frases e acordes musicais. Quanto à interpretação de Lisitsa, creio que - além de tecnicamente perfeita - revela uma profunda compreensão de todos os aspectos da obra, numa lição de sobriedade e grandeza!
Deslocava-me por vielas esconsas e
desertas, não sabendo muito bem em que sítio me encontrava, se nos velhos
bairros de Lisboa, se nos de Setúbal ou mesmo de Coimbra.
Eis senão quando encontro um frade, com
o seu hábito de burel e o rosto totalmente na sombra do capuz.
Perguntei-lhe, naturalmente, onde me
encontrava. Ele olhou para mim e, espantado, disse-me:
- «Está na presença de José António de Seixas»
Retirou o capuz, deixando ver um rosto
trigueiro, quase infantil na sua extrema juventude.
Mal me recompus do choque, pegou-me
gentilmente pela mão e disse-me em voz sussurrada:
- «Quer ver um espetáculo único,
exclusivo e delicioso?»
Não sabia o que responder, então
apertei-lhe a mão, em sinal de assentimento... Mais perdido do que já estava,
era realmente difícil, naqueles tempos...
Arrastou-me o jovem Seixas ao portal de
uma casa apalaçada de imponente fachada. Logo dois criados em libré abriram as
pesadas portas de madeiro, para deixar-nos passar. O músico era, com certeza,
esperado.
Este, sempre braço-dado comigo, subiu a majestática escadaria,
iluminada por tochas, sustentadas por estátuas de escravos negros profusamente
policromadas.
- Mas onde me encontrava eu, agora? Não
sabia. Continuava a não ter a mínima ideia, embora já tivesse percebido que se
tratava de Lisboa... Mas de uma Lisboa do início do século XVIII.
Nisto, o jovem que aqui me trouxera
abriu uma porta de duplo batente, com brasões e relevos em talha dourada,
revelando um salão onde várias damas e senhores, sentados, conversavam e
pigarreavam rapé.
Assim que viram o jovem, aplaudiram-no efusivamente, dando
vivas e palavras simpáticas de encorajamento.
Este fez uma vénia galante, apesar de
ser um jovem frade.
Sem demoras, pôs-se ao cravo, um instrumento
de um só teclado. Ele tangia o singelo instrumento, como se acariciasse o dorso
de um belo animal; tirava dele sons subtis ou arrojados, com a maior
naturalidade, como quem conversa.
Ele improvisava como se as teclas e cordas
fossem os seus próprios instrumentos fonadores, ou seja, cantava com os dedos.
Após cerca de meia hora parou a exibição virtuosistica do jovem e um senhor
muito bem arranjado e empoado - provavelmente o dono da casa - apresentou aos
presentes um nobre cavaleiro, de porte majestático, austero:
- «Il Signore Domenico Scarlatti»
Este fez uma breve reverência
dirigindo-se sem hesitação ao fradinho que se erguera entretanto e o olhava com
um misto de adoração e de terror.
- «Não temas, Caro...cuidarei que tu
faças parte da Capela de sua Alteza el Rei Dom João. Ainda ontem, ele me pediu
se eu conhecia em Napoli um bom e talentoso organista... Eu repliquei: Pois tem
Vossa Majestade quem muito bem o sirva no Seu próprio Reino».
Não recordo mais nada desta memorável
cena. Talvez eles tenham jogado uma partida de cartas, bebendo um vinho do Porto e cavaqueando, até muito tarde.