Versos a Afrodite, Deusa da Geração do Amor e da Vida
A cada passo meu, dentro deste jardim, se vai aproximando o
coração da luz. Em ti encontrei o fruto escondido do amor sem pecado. Do amor
que se estabelece entre dois seres de luz, fora do tempo e do espaço, porque
estão no plano universal do amor de Deus.
As guerras que nos atormentavam, as de ferro e fogo, as de
corações inflamados pelas paixões terrenas, não desapareceram, mas não nos
causam já esse abalo que nos desvia de Ti.
No meu coração te transporto sem o dizer a ninguém, pois o que
há de bom e precioso deve ser preservado do olhar cobiçoso.
O ouro que é meu, esse que é verdadeiro, não é o que se encontra
nos cofres e nas baixelas. O ouro que está em mim, não reluz e nem se pode
cambiar, tem só uma existência: a do espírito comparticipando no Todo.
Estou em comunhão contigo, Deusa, com a beleza imóvel e
intensamente compassiva do teu olhar poisado sobre mim. Em teu coração eu me
refugio, recebo tua proteção. Sou teu, dou-te a minha fidelidade e a verdade de
meu ser.
O horizonte está entrecortado por colinas, onde tufos incertos
de bosquedos teimam em assinalar a sua presença. O rio está quase seco, apenas
serpenteando um fio de água por entre pedras e juncos. Oiço gritos ao longe, de
uma aldeia ou quinta a duas léguas do ponto onde descanso. O cavalo entretém-se
com os raquíticos pastos, ressequidos pelo longo Verão da meseta. O calor ainda
é demasiado para nos pormos a caminho. Não consigo pregar olho, pois as moscas
zumbem em torno de nós, sem descanso. O Sol ainda está acima do horizonte;
quando o crepúsculo chegar, retomarei caminho na estrada de Toledo.
Penso no que acabo de deixar para trás, os olhos humedecem-me.
Desterrado, por mim próprio, para o todo sempre, condenado pelo amor impossível
que me atormenta. Leal e dignamente, apenas me resta a opção de tomar o hábito
de monge numa ordem religiosa.
Ela sabe onde me irei acolher, somente ela e mais ninguém.
Ao
entrar nesta fraternidade monástica irei receber um nome, atribuído pelo
superior: somente ele saberá a minha identidade, o meu nome civil, o título nobiliárquico de que sou portador,
desaparecerão. As minhas propriedades, todos os meus bens terrenos, pertencerão
à ordem monástica. Isto custa-me infinitamente menos do que o facto de nunca
mais vê-la, a Dona e Senhora de meu coração, a única.
Num subterrâneo mundo, onde as águas são iluminadas por debaixo,
vogam algumas canoas com misteriosos movimentos ondulantes, muito suaves. Tudo
o que se pode entrever do local é adivinhado aquando de brevíssimos clarões
azulados, que mostram instantâneos de cenas petrificadas.
Homens nus
reclinados, com a cabeça rapada, deixam-se transportar nas canoas. Estas
movem-se sem nenhum gesto de seu passageiro. Cada canoa acosta, sucessivamente,
a um pequeno cais. Aí, mulheres muito belas, nuas, vistas de costas, entram
sucessivamente, uma em cada canoa. Afastam-se e perdem-se as suas silhuetas no
fundo da gruta, que é afinal um rio subterrâneo, que serpenteia por debaixo da
terra, silencioso.
Agora estou numa dessas barcas. Ela dirige-se a uma abertura
ao longe, enquadrada pela vermelhidão de archotes. O rio subterrâneo desemboca
numa enseada. Observo a paisagem calma da noite com estrelas e sem luar. Oiço
claramente o ruído suave da onda a lamber a areia da praia. O vai e vem da maré
deixa um rasto fosforescente, desenhando um contorno sempre em mudança a cada
ondulação levemente esboçada no limiar das águas.
Os vultos que caminham desde
umas rochas a uns duzentos metros, vão-se aproximando do ponto onde me
encontro. Todo o grupo está silencioso, apenas se ouve o ruído do chapinhar da
água ao nível de seus calcanhares, pernas, coxas e por fim, mergulham, num
deslizar calmo. Nadam longamente, mas a uma distância curta do ponto onde estou.
Emergem por fim e aproximam-se da praia, fosforescentes, corpos esplêndidos,
bem proporcionados, apenas se distinguindo o seu contorno. Tudo é magnífico e
nada assustador. Estes corpos espectrais passam perto de mim, mas sem notar-me.
O sonho deixa-me uma sensação de alegria serena; estou envolto
num halo de luz e contemplo o céu estrelado, com profunda gratidão.
-
Estou numa barca, ela desliza pela água, com a brisa que a transporta. Em cada
margem há floresta, caprichosas formas de árvores de todos os tamanhos, tons e
formas…
A
minha memória, saturada da beleza deste sol poente vai ao encontro de uma
estrela que luz no céu, tão alva e tão singela, apenas visível por alguém que
eu amo profundamente:
- Essa mulher está no interior do canto de uma ave, existe neste
rincão de selva escondido. Está e chora a sua solidão, pois seu amante está
sempre ausente. Porém, deteta-lhe o rasto nos fragores da maresia, nos cânticos
das aves e no restolhar das folhas nas árvores. Quando ela ergue o olhar para a
estrela, a sua alma fusiona com a do seu amor.
-
A espera transmuta-se em encontro … recebi a carícia suave da amada, o peito
estremece-me com a brisa fresca do ar matinal.
A doçura deste Largo do concerto para dois violinos é um veículo de transporte mágico para o
meu passado. Estou a vogar para o sítio onde os meus anos floresceram. Estou
embalado e enlevado pela beleza que se abre, desabrocha, no seio desta música…
tal e qual quando a ouvi pela primeira vez. É como se abrisse os olhos à visão
do espírito. Deus está em cada partícula e em cada vibração do som, como está
no meu coração, quando o abro a esta música.
Obrigado, Bach! Agora estou a
pensar em ti, em ti, em ti… estou, eu mesmo, a aproximar-me do teu coração…
estou dentro dele como quem está escondido numa gruta, muito calma, muito secreta.
Sou eu, o mensageiro dos sonhos, que venho dar-te um abraço longo, como tu
abraças o gato, este felino que gosta de se espreguiçar… assim…
Serei felino ou serei homem,
não importa.
Estou aqui nesta música, como
veículo de teu encontro com o Universo.
Assim, podes dizer-me o que
quiseres, na resposta a esta mensagem. Certamente, será ouvida a tua voz…
certamente, ela receberá acolhimento e resposta. De minha lavra ou de alguém,
de alguma entidade espácio-temporal. Não é necessário especificar mais, nós
sabemos… que
…A ciência é boa por essência,
somente a preguiça e falta de cuidado dos humanos insiste em distorcer e ver outro maravilhoso onde está a maior de
todas as maravilhas: a realidade do universo, a nossa existência
e a nossa inteligência de humanos em perceber e comungar com este TODO.
Capto o instante, num olhar
reflexo de nuvem, nos olhos da Deusa que nos acorda dentro do sonho e nos
conduz ao país em que a realidade e nosso verdadeiro Eu se unificam.
Mas o mistério está muito para
lá do instante, pois perdura nos meus ouvidos e não estou a ouvir apenas a
música de Mozart, mas a música do chilrear de todas as aves da alvorada. Neste país sem fronteiras, o
meu entendimento maravilhado satisfaz-se com o simples enunciado dum gesto. Perdura o instante que sempre
existiu, desde todo o tempo que existe humanidade. O coração reaprende a bater o
ritmo, em perfeita sincronia com o suave tanger de uma harpa.
Ofegante corria
como um louco, até ao portal da casa. Teve de parar, a respiração faltava-lhe.
Foi nesse preciso momento que a porta da datcha se abriu e apareceu Nadja, resplandecente
na glória os seus dezassete anos. Vestia uma camisa de cores variadas, saia
castanha e tinha o cabelo mal apanhado num carrapito, caíam-lhe madeixas pelos
ombros. Seu cabelo loiro acobreado enquadrava um rosto muito oval, com lábios
desenhando um sorriso discreto, a maior parte do tempo, quando escutava aquele
estroina: Inclinava ligeiramente a cabeça, como que para melhor adivinhar o que
ia sair dessa cabeça oca e seus olhos cintilavam ou tornavam-se nevoentos,
consoante o seu estado de alma. Como se toda a expressão do rosto se
concentrasse nos olhos.
Não havia nada
de especial naquele relacionamento. Ou melhor, tudo era especial. O jovem e a
jovem tinham um pacto não dito de total entrega espiritual e total castidade
corporal. Como é isso possível em jovens saudáveis e sem preconceitos?
Impossível de explicar. O facto é que ambos se sentiam muito à vontade nessa
situação de «não namoro» e nada poderia mudar a disposição dos dois, por mais
que as famílias respetivas e os amigos achassem que as coisas não iriam
permanecer nesse pé.
Este Verão seria
o último, mas eles não suspeitavam de nada. Abraçaram-se e olharam-se nos
olhos. Depois, com um sorriso muito terno, Victor poisou um beijo na fronte de
Nadja.
Esta
desprendeu-se logo do seu abraço, tomou-lhe a mão e arrastou-o numa corrida
através do salão, atravessando a porta sempre aberta da cozinha e mostrou-lhe …
- «Olha! Sua ninhada de oito gatinhos»…
A gata siamesa estava deitada na alcofa e
lambia a cabeça e dorso de um dos gatinhos, numa toilete interminável de
mãe-gata.
…...
[não sei como foi a seguir…
nada! Apenas me lembro de ter acordado deste sonho com uma opressão no peito,
como se algo de terrível tivesse ocorrido. Não sei o quê…]
Restava somente um, de toda
aquela casa, outrora ilustre. Tinha forçosamente que fazer a «guarda do castelo»,
não havia mais ninguém, todos tinham morrido ou fugido. O tempo era de
incertezas; roubava-se, aprisionava-se, mutilava-se, matava-se … a gente boa
estava fugida. Os bandidos reinavam. Impunham a sua barbárie. Tinham prazer em
submeter e humilhar.
Não te irei esconder que
passei as horas mais angustiadas de minha vida, nessa época terrível.
Mas o meu medo foi-se
transformando em força. Fui aprendendo a dominá-lo. Fazia pequenas sortidas
para me abastecer por perto, onde houvesse alimento. Trocava comida por tudo o
que pudesse despertar a cobiça dos comerciantes. Já não circulava dinheiro:
apenas se trocavam objetos ou serviços.
Era um tempo muito duro de
escassez generalizada, exceto para alguns. Estes tinham tudo, em resultado do
saque e da extorsão permanente. O obscurantismo de há mil anos voltara e
instalara-se. O medo fazia o resto. Tinha de me manter sempre vigilante, dia e
noite; era uma autêntica tortura. Só podia dormitar uns minutos por dia, sempre
com a arma ao alcance da mão. Agitavam-se vultos durante a noite, mesmo por
debaixo das janelas.
Eu ouvia os sons que os homens
desesperados faziam, a meio da noite, quando entravam furtivamente no jardim.
Eram pobres diabos, exaustos, que apenas bebiam um pouco de água de uma fonte e
dormiam umas poucas horas sobre a terra debaixo de um arbusto. De início, tive
medo deles, depois compreendi que eu lhes metia respeito a eles também, pois as
luzes do interior, filtradas através das gelosias fechadas eram indício seguro
de que havia habitantes dentro.
A verdade é que a presença
noturna dos fugitivos era protetora contra verdadeiros ladrões e assaltantes.
Somente tinha de me manter vigilante para que não fosse surpreendido por um
bando organizado de malfeitores armados.
Esta situação manteve-se
durante algumas semanas. Depois, apesar da catástrofe, a vida foi retomando os
seus direitos. Conseguia ver isso pelo ar menos contraído das pessoas, o seu
olhar nem sempre era de medo ou inquietação, às vezes esboçavam um
sorriso.
Os animais selvagens também se
acolhiam ao jardim. Escolhiam sempre as horas de maior calmaria. Onde estivesse
um melro, um ouriço-cacheiro, uma serpente… era terreno (provisoriamente)
seguro. Eles escolhiam locais pacíficos como refúgio.
Por vezes avistava-se um
falcão peregrino, poisado sobre um poste de iluminação, de onde observava o
entorno.
Os gatos selvagens gostavam de
vir furtivamente beber água no tanque das traseiras. Marcavam o território enterrando,
em determinados pontos do jardim, seus excrementos. Ao fazerem isso, estavam a
dar-me uma ajuda, pois os ratos cheiravam à distância a presença dos felinos e
não se aventuravam pelos canteiros da minha horta improvisada.
O
mais difícil era manter o equilíbrio perante a situação de incerteza
permanente, que obrigava a estar sempre alerta. Mas aprendi a afugentar o medo
e a olhar para uma situação aparentemente desesperada com uma certa serenidade.
As visões que perpassavam pela minha mente, os
sonhos acordados dessa época, eram - evidentemente - projeções da minha mente
perturbada, mas não insana.
Deixou repousar em
cima do peito o livro que estava a ler; fechou os olhos. Sentia um agradável
torpor, embalado pela música de J. S. Bach
Neste estado, as
imagens que lhe apareciam diante do espírito e sobretudo os sentimentos no seu
peito, o transportavam para o êxtase:
Uma luz difusa
fazia rebrilhar miríades de partículas de poeira doirada. Uma pulsação rítmica
movimentava o tronco do sonhador, era o movimento do cavalo dócil, que se
transmitia ao cavaleiro. Um jovem, no meio de uma orquestra de músicos
empoados; estava entoando uma pura melodia jamais ouvida antes.
(Tudo era
estranho, justamente por tudo lhe parecer familiar. Até o gato do vizinho se
imiscuíra no sonho, com os seus movimentos circunspectos, cautelosos…)
Sobretudo, a
estranheza era devida à impossibilidade de decidir onde se encontrava: se no
seio da música de Bach, se no conforto do seu estúdio ou se no universo dos
sonhos… Talvez estivesse nesses três universos em simultâneo. Era a alegria metafísica
que o invadia, que o impulsionava a subir aquela escada de luminoso cristal que
se erguia pelos céus em arcada, num majestoso arco-íris. O livro que tinha
estado a ler, porém, não estava relacionado com tal visão. Embora não se saiba
o conteúdo exato do mesmo, sabe-se que era de bioquímica. Com efeito, no campo
dos sonhos onde evoluía, bailavam várias espirais caprichosas de proteínas,
enroladas em torno de eixos invisíveis, em tons de vermelho, roxo, castanho e
azul-escuro. Deslocavam-se, rodavam e pulsavam ao ritmo da música. Por vezes,
aproximavam-se umas das outras, ou se afastavam como galáxias no Universo.
[Depois, mergulhou num torpor
profundo e sua visão esfumou-se rapidamente.]
SONHO 4:Salmo Primeiro, Coro de monges do
mosteiro de Optina (Rússia)
Eles aqueciam-se como podiam ao calor da
fogueira. Estavam no meio da estepe gelada. Outros fogos tremeluzentes se viam
por todo o horizonte. Irkutz estava a onze vestras. O acampamento fora ordenado
ao cair da noite. Em Setembro já mordia o frio do outono. De vez em quando, ao
longe, ouvia-se o tropel dos cascos da cavalaria, que passava perto do nosso
acampamento. Ouviam-se também vozes em surdina, dos soldados do regimento de
infantaria nº16, em torno da fogueira. Nunca mais se calavam; falavam de tudo e
de nada. Rompido de cansaço, acabei por adormecer. Um suave calor bafejava-me o
rosto.
Não sei se foi sonho ou foi realidade; não sei
se ela se deslocou por artes mágicas até ao acampamento ou se sempre lá
estivera:
- O que sei é que o seu rosto estava lá, no
meio dos meus companheiros de armas. Aquele rosto trigueiro e oval, com olhos
de faiança e cabelos de seda. Vestia com modéstia, mas o seu porte era de uma
princesa. Sua doçura e espontânea bonomia derretiam-nos a todos. Ninguém era
insensível à beleza, no meio de tanta fealdade.
Vi o seu vulto levantar-se da roda da fogueira,
com um movimento ondulante e flexível, erguendo-se no meio dos meus
companheiros. Logo começou a entoar uma prece. Ela dizia o verso e o coro de homens
respondia-lhe. As vozes entoavam os salmos num uníssono perfeito, tanto as dos
velhos e ressequidos sargentos, como as dos jovens quase imberbes.
Tal era a perfeição, que me pareceu um encanto;
era como se nada tivessem feito na vida, senão cantar a salmódia. Os versos
eram espaçados por pausas. Nestas, o crepitar do fogo fazia-se ouvir. Maria
estava no meio de todos nós, seus familiares, vizinhos, amigos.
Não havia ninguém que não conhecesse Maria; não
havia soldado que ela ignorasse, a todos cumprimentava pelo patrónimo. Numa
ocasião, vira como ela tratava de um ferido que tremia de febre - já nem
conseguia segurar a colher ou a malga.
Senti-me feliz como nunca, nessa noite! Sabia
que estava sob proteção dum anjo enviado pelo Senhor. Nem a morte eu temia!
Desde então, trilhei os caminhos da luz e da
bondade, seguindo a Palavra, que ressoava na voz do povo.
Se foi sonho ou realidade, não sei. Para mim, isso
é indiferente, pois a vida mudou-se totalmente a partir dessa noite.
Tive de sofrer muito; vi horrores, tive medo,
frio, fome, fui ferido, bati o dente de febre, corri como um coelho diante da
metralha. Esporei desesperadamente cavalos e cruzei ferro com inimigos ferozes,
tão desesperados como eu. Percorri milhares de vestras em países distantes, sob
climas tórridos ou gélidos. Sou o que sou, sem dúvida. Mas não tenho a
arrogância de me considerar mestre de meu destino. A minha vida foi igual à de
muitos homens, tão bons ou tão maus quanto eu. No entanto, sinto-me diferente. Tornei-me
outro, a partir da noite da visão acima descrita. A simples evocação dessa
noite, enche-me de suave júbilo. Iluminou vários momentos e episódios da minha
jornada.
Meu último desejo é somente que alguém
transcreva estas palavras. Ámen.
[Alexei transcreveu, 17 de Outubro, Ano da
Graça de 1842]
Agora estou à
porta de uma casa, no campo. Esta casa parece-me muito familiar, porém, ao
mesmo tempo, não sei onde estou.
É como se
tivesse sido transportado de repente a um local onde já estive no passado, mas
ao ignorar todo o caminho percorrido, tenho de tentar buscar na memória em que
circunstâncias eu me encontrei em frente desta casa ou de outra semelhante a
esta.
De repente, a
porta principal abre-se e sai de lá um jovem apressado. Leva uma sacola a
tiracolo; aparenta uns 20 e poucos anos… Ele não olha para o sítio onde me
encontro. Está decidido, no passo largo, ligeiramente curvado, olhando
fixamente o chão à sua frente. Que estará ele a pensar? Impossível saber!
- Embora eu
nunca venha a saber nada mais do jovem, agora já sei onde e como eu vi esta
casa pela primeira vez: …. Curiosamente, este jovem desconhecido permitiu-me
situar-me no tempo. Num tempo muito diferente deste, embora as casas e as
indumentárias fossem pouco diferentes do que se vê agora.
Sim, foi há uns
quarenta anos e aquele jovem…sim, era eu!
[O impromptu, como o nome o indica é, na
origem, um improviso. Estes improvisos transcritos de Schubert têm o dom de,
magicamente, nos restituir a atmosfera dos serões vienenses.
Não sei se este é o impromptu que melhor
faz vibrar a corda sensível dos outros. Mas, certamente no que toca á minha
pessoa, quando o oiço, é impossível não começar a sonhar acordado:]
-Sonho
que estou sentado à lareira de uma casa burguesa, está uma primavera fria -
neva lá fora. Uma jovem está ao piano, de costas para mim, com um xaile de lã
axadrezada e executa com nonchalance este impromptu.
O professor, um jovem com uma casaca
escura e gravata branca, de pé no lado esquerdo da executante, ligeiramente
inclinado, segue a interpretação lendo a partitura, uma mão pronta, ao canto da
mesma, para virar a página.