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segunda-feira, 18 de setembro de 2023

BARBARA STIEGLER: o neoliberalismo está na origem da deriva autoritária


Barbara STIEGLER est professeur de philosophie politique à l’université Bordeaux Montaigne. Elle est notamment l’auteur de « Il faut s’adapter. Sur un nouvel impératif politique » (Folio, 2023) et de « Démocratie ! Manifeste » (Le Bord de l'eau, 2023). Spécialiste du rapport entre la politique et la biologie, Barbara Stiegler s'est intéressée aux origines du néolibéralisme, portées notamment par une injonction à l'adaptation, issue du lexique biologique de l'évolution. Dans cet entretien par Olivier Berruyer pour Élucid, elle revient sur ce qui caractérise notre régime politique, et en tire les conséquences pour la « démocratie » : dans un monde néolibéral, le pouvoir (la souveraineté) ne peut pas appartenir au peuple. En ce sens, l'ère d'Emmanuel Macron se présente comme une forme archétypale de ce régime à bout de souffle et fortement contesté. (*)

(*) Tradução por Manuel Banet:

 Barbara STIEGLER é professora de filosofia política na Universidade de Bordéus-Montaigne. Ela é autora, nomeadamente, de «É preciso adaptar-se. Sobre um novo imperativo político» (Folio, 2023) e de «Democracia ! Manifesto » (Le Bord de l'eau, 2023). Especialista da relação entre a política e a biologia, Barbara Stiegler interessou-se pelas origens do neoliberalismo, propulsionadas nomeadamente por uma exigência de adaptação, saída do léxico biológico da evolução. Nesta entrevista com Olivier Berruyer para Élucid, ele regressa ao que caracteriza o regime político francês e extrai as consequências para a «democracia»: num mundo neoliberal, o poder (a soberania) não pertence ao povo. Neste sentido, a era de Emmanuel Macron surge como forma arquetípica do regime, sem fôlego e fortemente contestado.

sábado, 2 de setembro de 2023

TRÊS MOMENTOS HISTÓRICOS DO «NEOLIBERALISMO»

 É preciso, de uma vez por todas, desmascarar o «neoliberalismo», como teoria económica e sobretudo, como teoria política dos Estados. 

I) A existência de uma corrente forte designada como neoliberalismo, pode atribuir-se - na origem - à «Escola de Chicago» e economistas do chamado «reaganismo», nos anos 1980. 

Mas, ainda antes disso, os «meninos de Chicago» (Chicago boys) estiveram associados à subversão do regime socialista de Allende, no Chile em 1973, com a contestação orquestrada na sombra pela CIA, conduzindo ao golpe sangrento e fascista de Pinochet, em 11 de Setembro de 73. Foi a partir desse 11 de Setembro, que os arautos do neoliberalismo tiveram oportunidade de aplicar as suas teses de privatização radical das grandes empresas estatais, de privatização da segurança social e saúde (entregando-a às empresas seguradoras), com um pano de fundo de ditadura violenta. No Chile de Pinochet havia quotidianamente «desaparecidos», a tortura e os assassinatos pela polícia política e polícia militar eram comuns, apesar da censura férrea a toda a informação impedir que se soubesse a maior parte do que se passava. Grande parte da população, em especial a mais pobre, ficou na miséria. A «lei» do livre mercado, significou que as condições de exploração se tornaram muito  semelhantes às do século XIX. O lucro das grandes corporações subiu, graças à exploração sem vergonha das pessoas e dos recursos naturais (como o cobre,  outros minérios, pescas, agricultura...). Há pessoas suficientemente estúpidas para dizerem que «as reformas» orientadas pela escola de Chicago, no Chile de Pinochet, foram um sucesso. Claro que esta narrativa é uma afronta às dezenas de milhares de mortos e às centenas de milhares de presos políticos. Este regime de terror, sob a proteção dos EUA, durou bem mais que um decénio e a transição para a democracia foi muito condicionada pelos próprios termos que Pinochet e seus acólitos impuseram.

II) Um outro dos «triunfos» do neoliberalismo foi o desmantelamento do chamado «Estado Social» ou «Welfare State». Não houve viragem política verdadeira dos eleitores, mas antes corrupção de governos social-democratas e socialistas, em toda a Europa. As hostes neoliberais penetraram profundamente o «socialismo reformista» e a IIª Internacional. Esta influência, teleguiada pelo Estado profundo dos EUA e os interesses corporativos que ele serve, permitiu que se tornasse «doutrina» a ideia segundo a qual o sector público é mal gerido e sujeito a clientelismos partidários, enquanto o setor privado (ou privatizado) tem a «propriedade mágica de rentabilizar as empresas, é muito mais eficiente, tem uma gestão rigorosa, o capital não tolera que os recursos sejam desbaratados » etc. 

Como sabemos, a canalização de ajudas e de benesses que acompanharam a entrega de setores rentáveis à «iniciativa privada», enquanto se deixavam em mãos estatais os setores não rentáveis, torna esta narrativa «num conto de fadas», ou numa ladainha que não prova nada, mas que esconde uma coisa importante: A intensificação da exploração dos trabalhadores, pela via direta nas empresas privatizadas e indireta, pois são-lhe retirados muitos direitos sociais legitimamente adquiridos.

III) Finalmente, o chamado neoliberalismo é a expressão na teoria económica, política e geoestratégia do imperialismo americano. Isso implicou a cedência total dos referidos social-democratas e socialistas europeus e, num âmbito global, do chamado «Ocidente». Os governos da UE, muitos destes considerados de centro-esquerda, têm mostrado a sua subordinação total à política belicista dos EUA, em especial no que toca à guerra levada a cabo pelos EUA em solo europeu via OTAN, e usando o Estado falido e fascistoide da Ucrânia como  ariete. Esta, insere-se na guerra sem tréguas contra a Rússia: Os neocons, que dominam a política externa e «de defesa» dos EUA desde há mais de 2 décadas, querem ver a Rússia destruída, reduzida a uma série de «bantustões», incapazes de fazer frente aos EUA. O público dos países da UE é inundado de propaganda de guerra, que distorce completamente a realidade e impede que ele se coloque como protagonista. O seu interesse natural seria de  tomar um claro partido contra a guerra, mas ele tem-se deixado manipular. 

A guerra anunciada contra a China, a pretexto de um território que é reconhecido por todos formalmente como pertencente à China, é ilustrativa da agressividade imperialista, dos que se designam de «neoliberais». Taiwan está internacionalmente reconhecida sob soberania chinesa. A constante provocação contra a China pode despoletar a IIIª Guerra Mundial, ou o alargamento da Guerra Mundial já existente. Os «neoliberais» imperialistas estão a fazer correr o risco de generalização e escalada de conflito entre potências nucleares. 

Concluindo: O «neoliberalismo» não tem nada de novo, nem tem nada de liberal no sentido da corrente nascida no século XVIII

Os verdadeiros liberais do passado, não apenas propunham a liberdade do comércio, como eram defensores da liberdade política, dum governo representativo, com câmaras eleitas, representantes dos cidadãos e dos seus interesses, defensores de constituições promovendo a liberdade de opinião e de organização da oposição.

Os que usam abusivamente a etiqueta «liberal», os neoliberais, apenas querem que o capital e seus detentores reinem sem entraves, que os poderosos esmaguem os fracos... Nem sequer resta no pensamento deles a «liberdade de comércio», constantemente espezinhada pelas sanções unilaterais contra as nações que não se dobram ao seu diktat. 

Na verdade, os neoliberais são defensores duma liberdade sem limites, para exploração dos trabalhadores, dos fracos e dos povos do Terceiro Mundo, às mãos das grandes corporações. Usam o termo «liberalismo» para melhor enganarem as pessoas.  


quarta-feira, 12 de julho de 2023

A DEGENERAÇÃO DOS VALORES LIBERAIS

 A subversão do status quo é feita do interior dos think tanks e das corporações, que governam o mundo capitalista ocidental. Este fenómeno faz curto-circuito a todos os valores, às construções teóricas e às crenças ou ideologias, que as pessoas das gerações mais antigas transportavam. 

                                 Imagem: George Washington na travessia do rio Delaware

Esta subversão não é uma evolução decorrente das transformações inevitáveis das sociedades humanas, sejam elas bruscas (golpes, revoluções) ou suaves (mudanças de maiorias eleitorais, etc.).  Trata-se antes duma engenharia social, fabricada para substituir o «consenso» social-democrático, o qual serviu como forma da aplacar os ventos de revolta, sobretudo na  segunda metade do século XX, com uma aspiração confusa mas inegável para o socialismo por parte das classes que não beneficiam da sociedade capitalista, mas também da juventude universitária, oriunda de meios não proletários na sua maioria, que  se opunha aos princípios da sociedade «burguesa», ao  regime capitalista e às guerras imperialistas e neocoloniais. Mas substituir esse «consenso social-democrata» por quê? 

Penso que os ideólogos e psicólogos ao serviço das corporações (alguns ocupando lugares em instituições académicas) conhecem profundamente a matéria-prima. Eles têm como função moldá-la (influenciar). Seu conhecimento profundo, em vez de ser posto ao serviço da libertação dos humanos em relação às cadeias físicas e psicológicas que os amarram, tem sido usado perversamente para conduzir as pessoas para onde eles (manipuladores) querem. Esta mão-de-obra especializada e geralmente bem paga, está no centro do complexo  que inclui as indústrias do entretenimento, da informação «de massas» e das universidades (hoje, centros de fabricação de conformismo).

É sabido que o mundo capitalista sofreu uma grande mutação na sequência do fim da «Guerra Fria nº1», os anos do globalismo «feliz», ou triunfante. Os anos 90 do século passado e a primeira década do século XXI, foram  ocasião de intensificação do capital financeiro, em detrimento dos Estados e do capitalismo industrial. Este último, foi subordinado ao capitalismo financeiro e, além disso, as infraestruturas (fábricas) foram desmontadas dos países capitalistas do centro, para serem implantadas nos países mais pobres da periferia da Ásia, América Latina e África. Este salto permitiu que as taxas de rendimento do capital fossem maximizadas, mas à custa da destruição do tecido industrial nos países tradicionais do capitalismo e da precarização e pauperização das classes trabalhadoras respetivas. Estas classes trabalhadoras tinham sido mantidas num estado de relativa satisfação, durante as chamadas «trinta gloriosas» - ou seja - nos trinta anos que sucederam ao fim da IIª Guerra Mundial. Neste período histórico, a progressão da URSS e dos países socialistas, incluindo países considerados do IIIº Mundo, como a Jugoslávia, Cuba e China Popular, exerceram uma grande atração nas classes laboriosas do mundo capitalista, que a propaganda anticomunista não conseguiu  neutralizar. Pelo contrário, quanto mais difamassem o «socialismo real», mais ele ganhava prestígio junto de muitos, incluindo a jovem geração, nascida no pós- IIª Guerra Mundial. Esta, habituou-se a ter como dado adquirido, o usufruto de condições de relativo bem-estar, decorrentes da elevada rentabilidade do capitalismo e da sua compreensão de que era do seu interesse dar condições de vida decentes à classe trabalhadora e, sobretudo, aos seus filhos. Chegou-se ao ponto que as pessoas tomavam como adquirido, que a geração dos filhos iria ter um bem-estar superior à dos pais; que iriam ter acesso ao ensino universitário, coisa quase exclusiva dos filhos da média e alta burguesia, apenas há uma geração atrás.  O sonho de evolução gradual para o socialismo, sem revolução, com progressiva igualização das classes sociais, revelou-se como uma utopia, quando a classe empresarial decidiu contra-atacar através da ideologia «neoliberal». Para derrotar a ideologia social-democrata e os respetivos partidos de governo na Europa Ocidental, fizeram uma campanha bem planificada de desconstrução das instituições que funcionavam razoavelmente nestes países capitalistas, mas que seguiam uma lógica de servir o público e não de criar lucro. Houve instituições parcial ou totalmente privatizadas (infraestruturas: eletricidade, água, estradas, serviços de saúde);  outras, postas em concorrência com instituições privadas (ex.: escolas públicas descapitalizadas, em concorrência com escolas privadas, recebendo subsídios do Estado); outras ainda foram extintas, ou tornadas residuais (ex.: programas de construção e gestão de habitação social).  

Nas esquerdas, não houve clarividência e sentido estratégico. Cedo se deu o retraimento da esquerda «clássica» (associada a lutas nas empresas, através de um sindicalismo classista); contestada por uma esquerda dita «festiva», dita também de «causas», como as lutas LGBT, o feminismo, alheado das suas raízes operárias históricas, a ecologia política (que não se pode confundir com Ecologia enquanto domínio científico) e outras «causas fraturantes».  De facto, foram fraturantes, mas no sentido de porem setores contra setores, dentro da mesma classe, e assim tornarem impossível ou inócua qualquer tentativa de levar a cabo um combate integrado contra a exploração capitalista. Não só os trabalhadores não compreenderam logo, na sua grande maioria, como estavam a ser manipulados, também as direções dos partidos e dos sindicatos operários, só tomaram consciência demasiado tarde. Tragicamente, durante decénios, para satisfazer uns e outros, em resultado de uma política cem por cento virada para conquistar votos e lugares nos parlamentos, essas direções foram incapazes de qualquer contra-ataque credível. 

Recentemente, os grupos marginalizados, como as segunda e terceira geração de emigrantes em França e noutros países europeus principalmente, protagonizaram revoltas, em geral na sequência de um assassinato, por um polícia, de um deles. 

Estes emigrantes - vindos de África principalmente - foram mantidos em ghettos, sujeitos a maior exploração e a trabalhos considerados «inferiores» e mal pagos, perante a classe trabalhadora dos países recetores, largamente indiferente, quando não hostil à sua vinda e estadia, de supostamente «invasores», não percebendo que estes emigrantes eram importados para  fazer pressão sobre a classe trabalhadora nacional. O resultado foi o crescimento avassalador de partidos de extrema-direita, que capitalizaram o descontentamento das classes cujo modo de vida estava a ser negativamente impactado pela emigração. Este estado de coisas foi mantido e diretamente encorajado pelos partidos de centro-direita e centro-esquerda, como representantes do grande capital, pois  eles assim tinham a classe operária desunida, ao contrário do que aconteceu em Maio-Junho de 68, em que a palavra de ordem era de solidariedade total com os emigrantes e participação destes, «ombro-a-ombro» com o operariado francês, nas greves.

A retórica do liberalismo mantém-se, fica bem nos discursos, mas o espírito é exatamente o mesmo que o dos «negreiros», os que - em vários países «brancos» - organizavam a escravatura e comércio dos escravos africanos, até bem dentro da segunda metade do século XIX. 

A mentalidade imperialista nunca foi tão virulenta como agora, pois a deseducação das camadas populares fez com que caíssem na propaganda estatal, nos vários países da OTAN. A «liberdade de imprensa» de agora, é a censura generalizada em redes sociais e sites da Internet. Esta censura parece-se mais com a da inquisição, contra os recalcitrantes e os livre pensadores e com a censura de Estado, nos séculos XIX e XX, contra correntes realmente revolucionárias.

Podia dizer-se que «a ditadura do capital não precisa de realizar a defesa genuína de qualquer liberdade, exceto da liberdade de comércio». Porém, mesmo esta, é logo renegada, abandonada, pelo uso e abuso das sanções (totalmente ilegais) que pretendem vergar regimes que não se submetem aos imperialistas, sanções cruéis porque resultam exclusivamente em sofrimento do povo. 

O que resta de liberalismo na Europa ou América do Norte, nos países que se auto classificam como «democracias»? Quase nada, ou mesmo nada. 

Note-se que os dirigentes desses regimes ditos democráticos, não têm feito senão imitar «ditaduras do proletariado», sob pretexto de segurança, de combater o terrorismo, de combater «as forças do mal». A vigilância generalizada existe em grande escala em Londres, por exemplo, onde é impossível atravessar o centro, sem se ser filmado uma centena de vezes, por câmaras de vigilância discretamente distribuídas por todo o espaço público. Mas, isso é verdade também em múltiplos outros domínios. Edward Snowden e outros, revelaram como a NSA (uma agência dos EUA) intercepta sistematicamente todas as comunicações da Internet e de telefonia móbil, para as armazenar e as selecionar quando conveniente, através de pesquisa por algoritmos, até chegar aos olhos de agentes. Isto não é exclusivo dos EUA; eles têm uma rede de espionagem dos cidadãos do mundo inteiro, onde participam Grã-Bretanha, Austrália, Canadá, Nova-Zelândia, além dos EUA.

Claro que muitas pessoas se deixam enredar pela propaganda, pelo medo, pela angústia de ser designado «inimigo», etc. Hoje em dia, tanto dentro dos EUA como fora,  em muitos países vassalos, as pessoas são perseguidas por suas opiniões, sejam elas «conservadoras» ou «revolucionárias».  A ilusão de liberdade é resultante da técnica seletiva usada para suprimir toda a dissidência. Não são já precisos «gulag» ou campos de concentração; não são precisas prisões políticas e câmaras de tortura. O Estado consegue controlar as massas através do medo e da ignorância

Os poucos que denunciam este novo totalitarismo, ou são calados pelas pressões económicas, como a exclusão do emprego, ou por difamações a cargo de uma autêntica classe inquisitorial (fact-checkers). Estes fazem-se passar por «jornalistas», mas apenas são mercenários. 

 Embora a hora seja sombria, o facto de se desenvolver um aparato tão complexo, poderoso e caro, para ocultar a verdade aos cidadãos, mostra que estes ainda detêm considerável poder, embora potencialmente apenas. Se eles começarem a usá-lo sistematicamente, auto-organizando-se fora dos padrões instituídos, o derrube das ditaduras com máscara de democracia não andará longe. 

terça-feira, 19 de abril de 2022

QUEM CONTROLA QUEM?



Quem costuma prestar atenção aos discursos políticos, ideológicos e mediáticos dominantes, sabe que nestas esferas se manufaturou - desde há longa data - um consenso: A democracia é um sistema que está inerentemente associado com a «liberdade» dos mercados, sendo uma heresia, sob o ponto de vista económico, mas político também, querer «regular» os mercados. Isso (regular os mercados) seria a marca das ideologias mais ou menos autoritárias, pondo dentro do mesmo saco os fascismos, incluindo o nazismo, as regulações social-democráticas ocorridas  após IIª Guerra Mundial no Ocidente e todos os socialismos autoritários, desde a União Soviética, os diversos regimes «comunistas», em vários continentes, até à China contemporânea, um híbrido de capitalismo/comunismo.
Esta visão do mundo, propriamente ideológica, é reafirmada por um montão de discursos, que confluem para afirmar essa tal inevitabilidade: ir contra a «liberdade» dos mercados, é estar a fragilizar - também - a liberdade política e a ordem social liberal.
Note-se que este discurso é apenas uma atualização dos ataques no século XIX, contra as correntes sociais e socialistas (o que incluía marxistas e fortes correntes anarquistas). Nesta fase, o capitalismo industrial triunfante parecia efetivamente ser um modo de produção cuja maior eficácia e produtividade eram inegáveis. Eram comuns os argumentos de que o capitalismo «não se dá bem» com ditaduras, que uma economia capitalista não se concebe sem concorrência e que a concorrência implica liberdade dos indivíduos, uma imprensa livre, etc., etc.
De facto, nas suas linhas fundamentais, os argumentos permanecem os mesmos. Porém, o próprio capitalismo não só envelheceu, como também se transformou, de tal modo que se pode legitimamente perguntar se algo do «livre mercado», ou se algo dum genuíno liberalismo, tanto económico como político, permanece nos países tidos como guardiães dos mercados livres e da democracia liberal. Estes, são os países «ocidentais», um conceito político, pois inclui países como o Japão, a Coreia do Sul, ou a Austrália, que não são geograficamente «ocidentais».
Curiosamente, as esquerdas liberais ou libertárias,  parlamentares ou extra- parlamentares, têm feito a mesma apologia dos mesmos «valores», apenas desejando a «limitação» dos grupos económicos muito grandes, apenas porque são muito grandes, deixando o resto na mesma. Quanto à sua formal e retórica aversão aos monopólios, tem origem em slogans dos anos 60 e 70, onde ainda havia um segmento significativo das esquerdas «ocidentais» que eram realmente anti- capitalistas, que punham em lugar central a luta de classes e a luta anti-imperialista. O que se vê, hoje, na «esquerda» é que as pessoas bem podem conservar uma auto- imagem «anti- capitalista», mas (infelizmente), a meu ver, ela não corresponde à realidade.
De resto, a «liberdade dos mercados» carece de qualquer razão profunda para se lutar por ela, não pode ser considerada um valor em si mesmo, a não ser que se ache justificado que a Grã-Bretanha tenha, em nome da liberdade de comércio, imposto o ópio e as guerras do ópio ao império da China, como se fosse direito inalienável do império Britânico, vender as mercadorias que quisesse, aonde quisesse e a quem quisesse. 
Pessoas que se dizem liberais hoje acham  frequentemente, que o capitalismo está a ser plenamente falseado pela existência dum ordenado mínimo, o qual impediria o mercado laboral de funcionar «em plena liberdade» e que os trabalhadores aceitem voluntariamente (sic!) trabalhar por salário abaixo do tal mínimo. O salário mínimo é acusado de falsear a concorrência, devido aos «pobres capitalistas ocidentais» serem confrontados com a produção a menor custo, noutras paragens, com salários mais baixos. Tudo isto são falácias, fáceis de desmontar!
Podia-se escrever um longo capítulo de exemplos, desses tais «valores neoliberais» contemporâneos. Penso que o leitor poderá facilmente perceber aonde quero chegar, mesmo sem multiplicar os exemplos: Trata-se de um exercício de hipocrisia, que mascara um racismo classista, vindo diretamente do setor capitalista mais reacionário e anti-humanista.
Esta corrente, tem hoje em dia um renovo: O neomalthusianismo é a ideologia que subjaz um complexo ideológico. Ouvem-se nomes diferentes como o transumanismo, o keynesianismo, o militarismo, mas eles são somente, afinal, «parágrafos diferentes do mesmo credo». Esta corrente floresce graças aos muito ricos e poderosos bilionários, que se colocam como patronos ou benfeitores «humanitários» e «aconselham» governos e outros, servindo-se de «fórums», como o de Davos, controlando quer a «media de massas» tradicional, quer os novos instrumentos mediáticos da Internet (Twitter, Facebook, Google, etc...) .
O nível extremo deste poder de controlo revela-se nas instâncias internacionais. Elas não deveriam estar submetidas à pressão de financiadores privados, como acontece no caso da OMS. É conhecido que o financiamento maior da OMS provém da Fundação Bill Gates, sendo também muito grande a contribuição das grandes farmacêuticas. A OMS deveria escapar a tal sujeição, funcionar apenas como agência da ONU, tendo só contribuições dos diversos países membros.
Quando interesses privados, de um modo insidioso, com a colaboração de Estados, se imiscuem na gestão de aspetos da vida que deveriam ser públicos, obtém-se uma rede de interesses muito fortes, as chamadas «parcerias público-privadas». Estas, nada mais são do que estruturas para impor um regime de monopólio em setores inteiros da economia, portanto, a negação total da «livre concorrência». Pense-se em Portugal: No setor energético (EDP, GALP, GDP etc.), no setor das autoestradas (BRISA), no setor das comunicações e media (NÓS, MEO, jornais de grande tiragem e grupos de imprensa, além de copropriedade com o Estado, vivem de subsídios estatais), nas empresas de transportes (a TAP e muitas outras). Na educação, as universidades «privadas» são, na verdade, parcerias com o Estado, tal como os colégios (da primeira infância, ao fim do secundário), viáveis somente devido aos constantes subsídios e ajudas diversas do Estado.
As parcerias público- privadas, tão do agrado da classe capitalista, como da corrompida classe política, são - nada mais, nada menos - que monopólios de renda, para os interesses capitalistas privados. O Estado fica - de facto - como garante da viabilidade económica destas estruturas. O apoio que ele (Estado) presta, pode ser direto: Como foi o caso, para salvar bancos privados, como o BES e outros. Em Portugal, os contribuintes, defraudados pelo Estado que governa «em nome deles», são quem desembolsa os milhões para cobrir as perdas dum banco americano («Lone Star»), que adquiriu, em condições de privilégio inéditas, o «Novo Banco» resultante do falido BES (Banco Espírito Santo).
Aquilo que se observa em Portugal é igual, em mais grotesco, ao que ocorre em países mais fortes, como os EUA, a Alemanha, a França, etc...
Estas relações são de tipo ternário:
- O Estado faz reféns os cidadãos, obrigando-os a contribuir com seus rendimentos (o imposto sobre rendimentos), com contribuições obrigatórias (para segurança social, etc.) e com os impostos diretos (IVA, etc.).
- As grandes empresas conseguem dominar o mercado, um domínio em monopólio ou oligopólio (duas ou três empresas num setor, «ditas concorrentes»). Isto é obtido mediante toda a panóplia de instrumentos e táticas, que incluem a absorção de concorrentes mais fracos, a exclusão dos potenciais concorrentes, incluindo a sua sabotagem, a utilização de conivências instaladas no aparelho de Estado, etc.
- As empresas monopólios ou oligopólios, estabelecem com o Estado, diretamente ou através de empresas e instituições estatais, acordos de parceria. Estes, além de reforçarem as suas posições de mercado, dão-lhes acesso a fonte de financiamento seguro, à garantia de salvamento, mesmo perante erros da gestão empresarial, etc.
Pode-se dizer que estas parcerias reúnem todas as vantagens dos sistemas privados e todas as dos públicos mas, para maior vantagem dos privados, sobre as estruturas públicas. Com efeito:
Podem exercer a sua atividade, seguindo apenas as regras do mercado; podem ser cotadas em bolsa; podem negociar acordos salariais e outros dentro da empresa; não estão sujeitas a seguir critérios definidos pelo governo, seja para promoções ou concursos externos de pessoal, como nas empresas públicas; podem sobretudo distribuir os lucros obtidos pela empresa, entre os acionistas e membros de topo da gestão.
Mas, têm as vantagens dum investimento público, como: A possibilidade do Estado investir diretamente com dinheiro público, ou com dívida pública (que os contribuintes terão de pagar futuramente); têm a garantia do Estado para qualquer empréstimo que façam; têm acesso às redes de influência e de poder, sobretudo. Esta simbiose permite-lhes estar por dentro do poder político qualquer que ele seja, sem parecer.

Geralmente, os media estão cheios de notícias que desencadeiam um reflexo «visceral» nos seus leitores/auditores: esta gestão das emoções é monitorizada cientificamente, por cientistas comportamentais, psicólogos, sociólogos, antropólogos, etc. «que venderam a alma ao diabo».
Não são os únicos, pois nas universidades, em particular, abunda esta espécie, que se reveste dos louros académicos para viver como parasita da democracia. Estas pessoas são compradas, ou melhor, são apropriadas. Estamos a falar do funcionamento de instituições com potencial para influir na opinião pública, tais como a media de massas, o ensino superior, os corpos de elite do Estado, as instituições de investigação (estatais ou privadas).
É impossível alguém não-conforme com a ortodoxia permanecer nestas instituições durante muito tempo, pois seria marginalizado e finalmente expulso, se levantasse frequentemente a voz para afirmar algo desagradável aos seus patrões. Também, não há grandes hipóteses de tal vir a ocorrer, pois os candidatos são sujeitos a uma seleção que privilegia a conformidade, em detrimento da criatividade e originalidade. No processo de seleção, uma pessoa que sai fora dos cânones aceites e desejados, até  poderá ser dotada de inteligência e  capacidade criativa acima dos outros concorrentes. Mas, os que selecionam os candidatos não vão selecionar essa tal pessoa, porque têm de escolher alguém que «encaixe» no perfil traçado.

No conjunto, as sociedades ditas de «democracia ocidental» vivem numa espécie de teatro ou de simulação permanente. Ai de quem se atreva a dizer «o rei vai nu!»
As circunstâncias delineadas nos parágrafos acima, não são as únicas em que ocorre uma ficção de «concorrência». Todo o conjunto da sociedade é atravessado pela mesma corrução intrínseca, pela mesma hipocrisia institucionalizada, pela supressão dos mecanismos de controlo popular. É preciso compreender que o poder sobre os indivíduos, implica um controlo, mandar nas pessoas, forçá-las a conformarem-se com as normas (sobretudo, as não escritas) e, por estes meios, manter as hierarquias de poder em todo o tecido social, sem as quais (segundo eles) a sociedade dita «civilizada» não poderia subsistir. Sem hierarquia, tudo cairia no caos, na anarquia. 
De facto, a «civilização» deles, é realmente sinónimo de violência e de caos, sobre os pobres, os destituídos, os excluídos. O «socialismo para a elite e escravatura do capital para os servos», é o verdadeiro mote da sociedade que eles querem implantar (Great Reset), conservando apenas a retórica da «democracia liberal». Mas, isto nunca é patente, antes é sempre ocultado pelo poder!

sábado, 12 de setembro de 2020

AS DERIVAS SEMÂNTICAS DA PALAVRA «LIBERAL»

 


A História escreve-se com palavras. Estas palavras significam conceitos. Porém, estes conceitos evoluem ao longo do tempo, sendo impossível fixar - como fazem os dicionários e as mentes obtusas - uma definição de uma qualquer palavra, de uma vez por todas, qualquer que seja o contexto histórico, político, cultural, etc.

O caso da palavra «liberal» é interessante. Esta palavra designou, sobretudo no Renascimento, alguém - como um príncipe - que era generoso, um patrono dos artistas, que gostava de dar festas, etc. Aliás, usava-se - ainda há pouco tempo - a expressão «gastar com liberalidade», ou seja, de maneira não-comedida, sem olhar às quantias largadas, como sinónimo de «esbanjar».

Depois, veio a época da luta contra o Absolutismo, uma realeza que não aceitava partilhar o poder, de forma alguma; que se considerava directamente ungida - por Deus - na missão de governar e não iria tolerar que alguém, fosse quem fosse, interferisse com as suas decisões ou, mesmo, somente as criticasse. Esta luta, que durou dois séculos, viu o conceito de liberdade surgir como reivindicação da plebe, depois de ter sido mote das pessoas da alta burguesia e de muita aristocracia, que se consideravam amesquinhadas na sua dignidade de seres humanos, por lhes ser negado aquilo que veio a ser incorporado nas constituições como «liberdades e direitos fundamentais»: a liberdade de expressão, o direito a igual tratamento pelos tribunais, etc. Neste contexto, o da Revolução Americana e das Luzes, o significado de "liberal" era naturalmente aquele que adoptava um ponto de vista anti-absolutista, que considerava que os humanos tinham um natural e intrínseco direito a serem livres.

Com as lutas liberais, cresceu também a força da burguesia. Esta, antes de ter a força política (a partir do final do século XVIII), tinha força como classe económica. Questões do comércio, dos mercados, da banca, da indústria, eram com ela. A sua ideologia considerava que era absolutamente necessária uma liberdade de comércio, que proteger o mercado nacional, impedindo ou dificultando a importação dos produtos, que pudessem competir com os nacionais, era «intolerável». Os que consideravam tal «liberdade do comércio» absolutamente essencial,  também se auto-designavam como «liberais». No entanto, muitas vezes, eram os mais contrários à liberdade do povo em se auto-organizar, em construir partidos e sindicatos independentes, etc. 

O liberalismo, mais tarde, surge como eufemismo, para designar forças que advogavam o domínio, sem partilha, do capital sobre o trabalho, como se não fosse anti-liberal (no sentido original do termo) proibir reuniões e a expressão das ideias dos trabalhadores, dos operários. Estes ditos liberais não tinham qualquer prurido em reprimir greves reivindicativas dos trabalhadores. 

O chamado neo-liberalismo, com seu cortejo de ideólogos globalistas, afirmou-se mais recentemente. Corresponde ao capitalismo tardio, em que os monopólios estão ao comando, não somente dos mercados, como das próprias políticas estatais. Observa-se o triunfo desta ideologia, a partir da presidência de Ronald Reagan nos EUA e de Margaret Thatcher no Reino Unido, no final da década de 1970. O neo-liberalismo é uma reacção, no seio da classe possidente, à época «social-democrática», que predominou sobretudo na América e na Europa Ocidental, durante a fase de reconstrução, após a IIª Guerra Mundial.

Também existe uma clivagem no significado do termo, de um lado e de outro do Atlântico: Nos EUA, «liberal» significa - muitas vezes - o que os europeus designam como «de esquerda» ou «progressista». No discurso político institucional americano, «socialismo» tem uma conotação negativa. Na sua mentalidade, «esquerda» e «esquerdismo», também, na medida em que - sobretudo na Europa -  têm forte conotação com ideologias de radicalismo social (socialismo, social-democracia, comunismo, anarquismo...). Inventaram então uma designação «edulcorada», para aqueles cujo comportamento se inclina mais para a esquerda, por vezes em termos sociais, apenas: Por exemplo, uma pessoa que seja favorável à legalização do aborto; ou alguém que é crítico do comportamento das grandes corporações, em relação aos consumidores, aos seus próprios trabalhadores, ou ao ambiente, etc, etc. 

Mas, os EUA, também é o país do «politicamente correcto», pelo que os chamados «liberals» - nos EUA - não têm pejo em lançar o anátema contra as pessoas com ideias conservadoras ou, simplesmente, diferentes das suas, em aspectos da vida, desde a sexualidade, à religião, passando pelas doutrinas económicas ... ou seja, pessoas que estão somente a exercer o livre direito de exprimir sua opinião.

Este pequeno apanhado deixa de fora alguns usos da palavra «liberal». 

Eu quis apenas sublinhar a ambiguidade do discurso, mormente político, na utilização do termo. Assim, pode alguém estar a usar o termo num sentido e este ser interpretado noutro. Alguns políticos procuram até esta ambiguidade, para «agradar a gregos e troianos».


  


sábado, 27 de junho de 2020

GEORGE SOROS - A FARSA DA FILANTROPIA


Este breve inquérito de Tele Sur pode ajudar a compreender os meandros do globalismo e da «galáxia» George Soros. 
Entre as ONGs por ele financiadas inclui-se a Open Society Foundation, Human Rights Watch, Black Lives Matter e muitas outras. 
- Como construiu ele o seu império financeiro? 
- Onde e como aplica os muitos biliões de que dispõe? 
- Porque razão os multimilionários usam frequentemente a capa da filantropia?

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

QUAL É A PRIMEIRA LIBERDADE?

A resposta à pergunta no título deste artigo é reveladora das convicções profundas, do substrato ideológico, da pessoa que responde:

- Se responde que a primeira liberdade é a da palavra, a de exprimir o seu pensamento livremente, sem receio de ser reprimido ou de ter outras consequências, de algum modo, nefastas para sua vida... tal pessoa será «liberal clássica».

- Se responde que a primeira liberdade é a de poder estabelecer um comércio, uma indústria, um negócio, confiando que o mercado decidirá - em última instância - da sua validade, pois o mercado é constituído por indivíduos que procuram bens e serviços do seu agrado... tal pessoa pode ser designada de «neo-liberal», mas mais apropriado seria «devota do mercado». 

- Se responde que a primeira liberdade é poder viver decentemente do seu trabalho, ter segurança dos seus haveres, da sua própria pessoa, não tendo que recear o desemprego ou escassez por a sociedade estar organizada para satisfazer as necessidades individuais e colectivas, em troca do trabalho de cada um... tal pessoa será «socialista», mesmo sem o saber.

Creio que são muito mais as pessoas «socialistas» sem o saber, do que «liberais clássicas» ou «devotas do mercado». Pelo menos, no dia-a-dia, ao interagir com pessoas de condições e profissões diversas, mesmo de substratos culturais diversos, é mais frequente encontrar pessoas que, espontaneamente, tomam o ponto de vista socialista, no sentido acima apontado, em assuntos concretos da vida.  Se isto tiver confirmação estatística, é um facto muito notável que, onde predomina o capitalismo sob todas as formas, tantas pessoas optem pelo socialismo. 
A possibilidade de mudança duradoira implica que a grande maioria (e não meros 51%) seja favorável a determinado regime, a uma determinada organização social e política. Mas, para isso, será necessário que o socialismo seja pensado e propagado de modos totalmente diferentes pelos seus adeptos.


domingo, 30 de dezembro de 2018

QUANDO O EFÉMERO É JULGADO PERMANENTE

Nesta crónica de final de 2018, gostava de veicular aos meus leitores um pouco da minha estranheza, que se desenvolve a par de uma experiência de vida.

Há muito tempo que venho seguindo os mercados para eu próprio estar prevenido e saber como «tirar as castanhas do lume» a tempo. Embora não tenha uma instrução académica nas ciências económicas, tenho muita facilidade em compreender os seus mecanismos, pois estou preparado em termos conceptuais a pensar o funcionamento de sistemas complexos na biologia. Nesta, não apenas estudamos os mecanismos ao nível dos indivíduos, com as suas complexidades intrínsecas, como também as populações e os ecossistemas, sem a compreensão dos quais a vida dum qualquer organismo será  totalmente indecifrável. 
A analogia sistémica é particularmente apropriada aos sistemas sociais, construídos pela sociedade humana, desde que não se caia numa atitude redutora, ou seja, numa falsificação ideológica da biologia evolutiva, que aliás é comum nos comentaristas de meia-tigela. 
Não somos ingénuos, nem queremos convencer ninguém a adoptar as nossas teorias!

O sistema económico é eminentemente caótico, sendo isso uma característica independente do regime económico e político que vigore: 
- a Teoria do Caos estabelece que a complexidade de certos sistemas desencadeia respostas cujas determinações são imprevisíveis, pelo que estão sempre a surgir «cisnes negros» (na definição inteligente de Nassim Taleb). 
As pessoas têm o espírito feito de tal maneira que, seja por aprendizagem, seja por inclinação natural, procuram sempre «leis», «regularidades», daí que as suas visões sejam de continuidade a 100% (o preconceito da normalidade: O AMANHÃ SERÁ COMO HOJE, PORQUE HOJE FOI COMO ONTEM...).
Em situações de instabilidade maior, essa «certeza» efémera cai por terra; as pessoas entram em pânico, julgam chegado o fim do mundo, aquilo que afinal se resume à reestruturação dos capitais, uma nova distribuição das cartas e das fichas num jogo. 
Nem num caso, nem noutro, estão correctas: nem ao tomarem o efémero como medida segura das coisas, nem em vaticinar o fim do mundo, aquando dos grandes abalos, das grandes sacudidelas.

Hoje em dia, ao contrário de há vários anos atrás, os analistas de todas as tendências parecem estar de acordo em que 2019 vai ser um ano em que o potencial tectónico da dívida monstruosa vai finalmente exprimir-se através de uma crise, que se arrisca a ser maior e mais duradoira do que todas as outras que vivemos em nossas vidas. 
Isto significa que terá de ser - pelo menos - tão grande como a de 1929 (praticamente ninguém hoje ainda vivo, era adulto aquando daquela crise). 
De facto, existem muitos factos objectivos que apontam para tal. 
Muitas pessoas amigas gostariam que isso significasse o fim do capitalismo e o alvorecer de uma outra era, chame-se a tal novo modo de produção socialismo ou outro nome qualquer. 
Porém, uma previsão arrisco fazer: infelizmente para mim - e para os outros também, creio eu - o advento dum pós-capitalismo onde reinasse mais igualdade está completamente posto de lado, pois não existe uma força «subjectiva» que empurre as pessoas para formas igualitárias de organizar a produção e distribuição da mesma. 
Tal não era o caso nos inícios do século XX, em que existia esperança num mundo regido pelo lema «de cada um segundo suas capacidades, para cada um segundo as suas necessidades». 
As pessoas foram - no capitalismo globalizado -  transformadas em consumidoras ou produtoras passivas, intercambiáveis,  contabilizáveis: reduzidas a meras mercadorias (= o conceito de alienação na sua plenitude). 
No bicentenário de Marx, o único conceito teórico do marxismo que eu reconheço guardar actualidade, é o conceito de alienação. Todos os outros estão profundamente caducos, simplesmente porque a sociedade evoluiu e as suas visões eram adequadas e apropriadas a um determinado estádio de evolução do capitalismo. Quanto ao «materialismo dialéctico» e o «materialismo histórico», nem vale a pena falar, pois são completas fabricações ideológicas, muito ao gosto cientista do século XIX. 
Na minha forma de ver as relações entre os factos, a experiência e as teorias... aqueles vêm primeiro, as teorias vêm depois: estas devem ser construídas sobre um certo número de factos, pré-existentes à sua construção. 
Se determinada teoria não tem na devida conta TODOS os factos conhecidos, à data da sua elaboração, será irremediavelmente falsa à nascença. 
Mas, mesmo uma teoria que tenha em devida conta todos os factos relevantes pode - no futuro - revelar-se falsa ou caduca. Isso, aliás, acontece constantemente nas ciências ditas «duras» (a física, a química, a biologia...). 
Mas, por que razão é que  - nas ciências ditas «moles» (psicologia, sociologia, economia...) - existe tanta teoria defeituosa, que apenas reflecte a visão ideológica do autor e nada mais? 

A minha resposta é que...
(a) nós temos uma enorme atracção (intuitiva?) por «leis», por regularidades, por algo que nos permita tornar inteligível a realidade caótica que nos rodeia.  
(b) enquanto nas ciências duras é possível desenvolver dispositivos experimentais credíveis, ou seja, em que uma ou poucas variáveis sejam feitas variar, mantendo as restantes constantes...nos sistemas que têm como palco a sociedade humana, isso é impossível; apenas podemos fazer abstracções que servem mais ou menos a nossa ânsia da tal regularidade. 

A exemplificar isso, cabe aqui um parêntesis sobre o conceito de «mercado livre»: os fundadores da teoria económica liberal, Adam Smith, David Ricardo, e outros, viam neste conceito uma figura do espírito, uma propriedade da sociedade ideal, que eles sabiam perfeitamente não existir. 
Porém, os seus sucessores trataram de transformar esta vista do espírito, esta «experiência teórica», num «facto». Agora, são capazes de dissertar horas a fio sobre a «liberdade» do mercado. Fazem-no, creio,  mais como mantra, que os identifica com uma dada corrente. O mesmo se passa noutros sectores, só que com outros conceitos, incluindo obviamente sectores anti-capitalistas de várias conotações. 
Nesta época, paradoxalmente, é pouco apreciada a liberdade de espírito, a independência de juízo: Aquilo que permite reconhecer que um pensador, com o qual discordamos em muitos aspectos, acertou em cheio num dado ponto... Era esta atitude muito mais frequente, quando a difusão do pensamento era feita ao passo pachorrento dos cavalos atrelados a uma diligência e não à velocidade da luz, como agora! 


Estou convencido que as leituras de autores clássicos, em História, Filosofia ou na Literatura de ficção, no Romance, possam trazer imenso prazer a leitores do século XXI, caso estes se debrucem sobre as tais obras exactamente como sendo (e são, na verdade!) minas de ouro de sabedoria e de reflexão acumuladas.
O «capital de saber» é imaterial e não está dependente linearmente da disponibilidade económica de cada um. 
Saibamos usar os aspectos positivos da era da Internet, das comunicações globais instantâneas, o que implica também usar filtros que permitam descartar a «palha», sem perdermos os bons frutos.

BOM ANO DE 2019!