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domingo, 8 de dezembro de 2024

MANDEVILLE E O NEOLIBERALISMO: « Públicas virtudes / vícios privados »

« As públicas virtudes alimentam-se dos vícios privados »




Este autor, Bernard Mandeville, tem sido uma espécie de «esqueleto no armário» dos neoliberais. Ele foi um prolixo autor no século XVIII, no entanto, a sua obra mais célebre é a «Fábula das Abelhas».



A sua teoria fá-lo, de certo modo, um precursor do neoliberalismo. A teoria de que as pessoas estão sobretudo mobilizadas para satisfazer os seus desejos. Ele leva o argumento ao extremo, pelo que fala de «vícios». «Os vícios privados originam as públicas virtudes». A paradoxal e provocatória tese recebe o semblante de demonstração seguinte: 

Uma meretriz, para exercer a sua profissão, tem de se vestir com roupa elegante, adornar-se com joias vistosas, para atrair o olhar dos homens e acicatar os seus desejos de luxúria, etc...  Mas, ao fazê-lo, está a dar emprego a artesãos e comerciantes, que a  vestem, ornamentam, satisfazem os seus caprichos, etc. Ou seja, o dinheiro gasto no vício, acaba por ser reciclado em sustento dos artesãos e comerciantes honestos e serve para aumentar a riqueza da nação, assim como outras atividades que ninguém hesitaria em considerar  honestas.

Adam Smith, o «pai» incontestado da economia clássica, aproveitou a ideia, mas eliminando a referência ao vício, que poderia afastar os mais moralistas. Na pena de Smith, o vício é substituído por algo aceitável por todos: O desejo de satisfazer as necessidades da vida. O interesse individual, não  só  é  compatível  com os interesses da sociedade, como a própria  sociedade tem tudo a ganhar em permitir (e proporcionar) que os indivíduos procurem satisfazer os seus desejos, pois é a partir destes, que  nasce a procura para uma infinidade de mercadorias e assim se estimulam a indústria e o comércio e se enriquece a nação.

Mas, o argumento foi "esticado" pelos neoliberais, ao ponto de se transformar na falácia do «trickle-down economics», ou seja, "o escorrer da riqueza dos muito ricos para as classes mais modestas, através  de toda a espécie de despesas que os primeiros efetuam".   

Esta forma de defender os privilégios e as assimetrias de riqueza seria apenas ridícula em si mesma, não fosse ela ser assumida por inúmeros políticos neoliberais, até  aos dias de hoje. 

O neoliberalismo foi o "cavalo de batalha" de Milton Friedman e da Escola de Chicago. O neoliberalismo recupera a tal "evidência" de Mandeville. É com base em tal «argumento», que justifica as suas propostas de aliviar os impostos aos mais ricos,  promovendo-os a benfeitores da sociedade. Porém, não se ficaram pela falácia intelectual, pois as doutrinas neoliberais por eles desenvolvidas, serviram para justificar e pôr em prática as políticas mais retrógradas: Vejam-se os seus efeitos no Chile de Pinochet (aconselhado pelos economistas da Escola de Chicago) e nas economias mais frágeis do Terceiro  Mundo. 

O mercado foi deificado, como se fosse "Deus ex maquina",  acabando por realizar o milagre de alocar o "preço justo", pondo de acordo os atores deste mercado. Na verdade, a imagem metafórica da "mão invisível do mercado", utilizada por Adam Smith, foi tomada «ao pé da letra», deixando de ser considerada mera figura de retórica, para assumir papel propriamente divino de conciliar compradores e vendedores: Eis o tal "Livre Mercado"... "livre", porque os intervenientes  não foram forçados por nada nem ninguém (em teoria), a comprar ou vender por um determinado valor...

O público e sucessivas gerações  de estudantes das faculdades de Economia, nos países  mais diversos, são doutrinados com "teorias científicas" deste quilate, que pretendem justificar a manutenção da exploração  e privilégios como se fossem "forças da natureza", às quais não faria qualquer sentido nos opormos.

 MANDEVILLE não poderia imaginar que a sua construção teórica arrojada e escandalosa em sua época, iria ser inspiração para o chamado "neoliberalismo". Este, devia antes ser reconhecido e designado como a "Teoria justificativa do egoísmo  e ganância dos ricos".


terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

O CAMINHO PARA A PAZ PELO COMÉRCIO

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No passado remoto, as rotas comerciais eram abertas a golpes de espada ou tiros de canhoneira.
Basta pensarmos na maneira como Vasco da Gama e seus sucessores no Índico impuseram um monopólio comercial português e expulsaram os comerciantes árabes, aí instalados desde há vários séculos.
Ou ainda, como o Reino Unido, no tempo da Rainha Vitória, impôs o comércio de ópio à China, através de duas guerras cruéis, das quais resultaram tratados humilhantes para os chineses.
Com efeito, a «liberdade de comércio» que foi imposta pelos marinheiros e soldados dos impérios ocidentais não tem grande coisa que ver com as teorias de livre comércio dos liberais. Em vez de livre comércio trataram de impor o seu domínio imperial, a todo o mundo não europeu. Muitas das desgraças de hoje têm as suas raízes diretas nessa época, de expansão agressiva e bélica dos colonialismos.
Porém, por outro lado, constata-se que a realização de tratados comerciais ou a aceitação de regras comuns às trocas comerciais é um primeiro passo para a normalização de relações diplomáticas ou que estas têm como corolário imediato, o desenvolvimento das relações comerciais.
A abertura da China, ainda no período de Mao nos anos 70,  foi devida de facto, ao seu desejo de fazer comércio e esse desejo foi correspondido por poderosos interesses privados ocidentais.
A negação de comércio, como sejam as guerras de tarifas ou ainda pior, as sanções, os embargos, os bloqueios, são armas muito cruéis e absolutamente ineficazes, no mundo de hoje. Tal tem sido a atitude dos EUA e seus vassalos «aliados» da OTAN e UE …
A guerra comercial ou económica começou com a Rússia depois do golpe na Ucrânia, que depôs um governo legítimo, mas que tinha optado por união económica com o espaço Russo e não com a União Europeia. Essa guerra económica só trouxe dificuldades aos comerciantes, agricultores e industriais dos países ocidentais.
No campo russo, trouxe uma reação de defesa nacionalista, de se autonomizar do «Ocidente»; sobretudo, de produzirem eles próprios, tendo – portanto - um efeito estimulante na indústria e na agricultura.

Já no caso da Venezuela, o bloqueio e guerra económica por parte dos EUA, já duram há cerca de um decénio, mas a severidade foi aumentando neste último ano, ao ponto de um relator especial das Nações Unidas, considerar que as políticas de sanções dos EUA podiam configurar um crime contra a humanidade, nos termos da definição da ONU.
A guerra económica dos EUA contra Cuba vem desde o triunfo da revolução que depôs o ditador favorável aos EUA. Ela perdura desde há 60 ou mais anos e não trouxe mais do que sofrimento e privações para a população da ilha, sem nenhum efeito de fragilização do regime castrista. Claro que, para eles, este objectivo de subversão de um regime adverso é perfeitamente válido e «moral»: para eles, imperialistas, não contam as populações que serão sempre as primeiras vítimas de tais bloqueios.
A noção de que estes países, que se designam a si próprios por «democracias ocidentais», não são mais do que países governados por mafiosos, que querem impor, por meios de chantagem e pela força, a sua lei a outras nações, pode parecer exagero às pessoas imbuídas de cultura «ocidental», porém nos países que agrupam três quartos da população mundial, esta noção é absolutamente trivial.
A existência de uma fina capa ideológica de «liberalismo», não resiste a dois segundos de análise, quando nos debruçamos sobre políticas concretas. Se «liberalismo», significa sobretudo liberdade de comércio, representada pela tradição liberal de Locke, Adam Smith, etc., então a China e Rússia de hoje, assim como vários dos seus parceiros são porta-estandartes e verdadeiros obreiros desse liberalismo.
A liberdade de comércio é vital para aquela enorme parte de humanidade (no mínimo, 6 mil milhões), pois ela tem como meio de subsistência essencial a produção de bens agrícolas, de matérias primas minerais, ou de bens manufacturados.
A evolução dos países «ocidentais» [América do Norte, Europa ocidental, Austrália, Nova Zelândia e Japão] no último quarto de século, foi no sentido da «terciarização» da economia, da desindustrialização ou seja, do abandono da economia produtiva para a economia especulativa.
Nestes países, cuja riqueza assentou sobre séculos de pilhagem das colónias e escravidão, a estratégia de «terceirização» foi saudada pelos mais míopes e corruptos, visto que é realmente preciso fazer um esforço para acreditar que uma economia se pode sustentar com «serviços» e onde o lema tem sido «consumir, consumir, nem que seja a crédito».
As transformações na estrutura produtiva na China, mas também na India, Paquistão e outros, foram muito rápidas e conseguiram produzir a maior transformação de que há memória, de populações secularmente carenciadas, com padrões de nível vida muito baixos; uma saída da pobreza para grande parte da população. O enorme crescimento da classe média, nestes países, tem permitido um crescimento exponencial, pois os produtos manufacturados já não terão como escoadouro exclusivo a exportação, mas também vai crescendo o mercado interno para estes produtos, incluindo os de gama alta, o que permite não estarem tão dependentes dos caprichos das ex-potências coloniais e imperialistas.
As «Novas Rotas da Seda» são realmente a concretização imparável deste extraordinário florescimento económico, o qual terá repercussões benéficas também noutros países, que tinham mantido um grau incipiente de desenvolvimento.
Para todos os intervenientes nas redes comerciais, a questão central vai ser a estabilidade das condições de trocas. Daí que haja um interesse material pela paz, o que é sempre muito mais poderoso do que qualquer ideologia.
Mas, se ideólogos no Ocidente quiserem defender o liberalismo na sua pureza, pois aí terão oportunidade de se colocarem do lado dos que querem manter abertas as rotas comerciais, querem estabelecer e manter trocas benéficas para todas partes… deverão repudiar os militaristas, os loucos que querem o mundo inteiro sob sua hegemonia e relações baseadas na força e no medo.
A evolução das relações internacionais pode sofrer muitos episódios, nem todos beneficiando a liberdade de comércio. Mas, no longo prazo, a humanidade que produz irá decidir como e em que termos se farão as trocas, aplicando as boas práticas de reciprocidade, de não ingerência, de relações mutuamente vantajosas, de resolução pacífica dos diferendos…
… será um renovo da civilização.

domingo, 30 de dezembro de 2018

QUANDO O EFÉMERO É JULGADO PERMANENTE

Nesta crónica de final de 2018, gostava de veicular aos meus leitores um pouco da minha estranheza, que se desenvolve a par de uma experiência de vida.

Há muito tempo que venho seguindo os mercados para eu próprio estar prevenido e saber como «tirar as castanhas do lume» a tempo. Embora não tenha uma instrução académica nas ciências económicas, tenho muita facilidade em compreender os seus mecanismos, pois estou preparado em termos conceptuais a pensar o funcionamento de sistemas complexos na biologia. Nesta, não apenas estudamos os mecanismos ao nível dos indivíduos, com as suas complexidades intrínsecas, como também as populações e os ecossistemas, sem a compreensão dos quais a vida dum qualquer organismo será  totalmente indecifrável. 
A analogia sistémica é particularmente apropriada aos sistemas sociais, construídos pela sociedade humana, desde que não se caia numa atitude redutora, ou seja, numa falsificação ideológica da biologia evolutiva, que aliás é comum nos comentaristas de meia-tigela. 
Não somos ingénuos, nem queremos convencer ninguém a adoptar as nossas teorias!

O sistema económico é eminentemente caótico, sendo isso uma característica independente do regime económico e político que vigore: 
- a Teoria do Caos estabelece que a complexidade de certos sistemas desencadeia respostas cujas determinações são imprevisíveis, pelo que estão sempre a surgir «cisnes negros» (na definição inteligente de Nassim Taleb). 
As pessoas têm o espírito feito de tal maneira que, seja por aprendizagem, seja por inclinação natural, procuram sempre «leis», «regularidades», daí que as suas visões sejam de continuidade a 100% (o preconceito da normalidade: O AMANHÃ SERÁ COMO HOJE, PORQUE HOJE FOI COMO ONTEM...).
Em situações de instabilidade maior, essa «certeza» efémera cai por terra; as pessoas entram em pânico, julgam chegado o fim do mundo, aquilo que afinal se resume à reestruturação dos capitais, uma nova distribuição das cartas e das fichas num jogo. 
Nem num caso, nem noutro, estão correctas: nem ao tomarem o efémero como medida segura das coisas, nem em vaticinar o fim do mundo, aquando dos grandes abalos, das grandes sacudidelas.

Hoje em dia, ao contrário de há vários anos atrás, os analistas de todas as tendências parecem estar de acordo em que 2019 vai ser um ano em que o potencial tectónico da dívida monstruosa vai finalmente exprimir-se através de uma crise, que se arrisca a ser maior e mais duradoira do que todas as outras que vivemos em nossas vidas. 
Isto significa que terá de ser - pelo menos - tão grande como a de 1929 (praticamente ninguém hoje ainda vivo, era adulto aquando daquela crise). 
De facto, existem muitos factos objectivos que apontam para tal. 
Muitas pessoas amigas gostariam que isso significasse o fim do capitalismo e o alvorecer de uma outra era, chame-se a tal novo modo de produção socialismo ou outro nome qualquer. 
Porém, uma previsão arrisco fazer: infelizmente para mim - e para os outros também, creio eu - o advento dum pós-capitalismo onde reinasse mais igualdade está completamente posto de lado, pois não existe uma força «subjectiva» que empurre as pessoas para formas igualitárias de organizar a produção e distribuição da mesma. 
Tal não era o caso nos inícios do século XX, em que existia esperança num mundo regido pelo lema «de cada um segundo suas capacidades, para cada um segundo as suas necessidades». 
As pessoas foram - no capitalismo globalizado -  transformadas em consumidoras ou produtoras passivas, intercambiáveis,  contabilizáveis: reduzidas a meras mercadorias (= o conceito de alienação na sua plenitude). 
No bicentenário de Marx, o único conceito teórico do marxismo que eu reconheço guardar actualidade, é o conceito de alienação. Todos os outros estão profundamente caducos, simplesmente porque a sociedade evoluiu e as suas visões eram adequadas e apropriadas a um determinado estádio de evolução do capitalismo. Quanto ao «materialismo dialéctico» e o «materialismo histórico», nem vale a pena falar, pois são completas fabricações ideológicas, muito ao gosto cientista do século XIX. 
Na minha forma de ver as relações entre os factos, a experiência e as teorias... aqueles vêm primeiro, as teorias vêm depois: estas devem ser construídas sobre um certo número de factos, pré-existentes à sua construção. 
Se determinada teoria não tem na devida conta TODOS os factos conhecidos, à data da sua elaboração, será irremediavelmente falsa à nascença. 
Mas, mesmo uma teoria que tenha em devida conta todos os factos relevantes pode - no futuro - revelar-se falsa ou caduca. Isso, aliás, acontece constantemente nas ciências ditas «duras» (a física, a química, a biologia...). 
Mas, por que razão é que  - nas ciências ditas «moles» (psicologia, sociologia, economia...) - existe tanta teoria defeituosa, que apenas reflecte a visão ideológica do autor e nada mais? 

A minha resposta é que...
(a) nós temos uma enorme atracção (intuitiva?) por «leis», por regularidades, por algo que nos permita tornar inteligível a realidade caótica que nos rodeia.  
(b) enquanto nas ciências duras é possível desenvolver dispositivos experimentais credíveis, ou seja, em que uma ou poucas variáveis sejam feitas variar, mantendo as restantes constantes...nos sistemas que têm como palco a sociedade humana, isso é impossível; apenas podemos fazer abstracções que servem mais ou menos a nossa ânsia da tal regularidade. 

A exemplificar isso, cabe aqui um parêntesis sobre o conceito de «mercado livre»: os fundadores da teoria económica liberal, Adam Smith, David Ricardo, e outros, viam neste conceito uma figura do espírito, uma propriedade da sociedade ideal, que eles sabiam perfeitamente não existir. 
Porém, os seus sucessores trataram de transformar esta vista do espírito, esta «experiência teórica», num «facto». Agora, são capazes de dissertar horas a fio sobre a «liberdade» do mercado. Fazem-no, creio,  mais como mantra, que os identifica com uma dada corrente. O mesmo se passa noutros sectores, só que com outros conceitos, incluindo obviamente sectores anti-capitalistas de várias conotações. 
Nesta época, paradoxalmente, é pouco apreciada a liberdade de espírito, a independência de juízo: Aquilo que permite reconhecer que um pensador, com o qual discordamos em muitos aspectos, acertou em cheio num dado ponto... Era esta atitude muito mais frequente, quando a difusão do pensamento era feita ao passo pachorrento dos cavalos atrelados a uma diligência e não à velocidade da luz, como agora! 


Estou convencido que as leituras de autores clássicos, em História, Filosofia ou na Literatura de ficção, no Romance, possam trazer imenso prazer a leitores do século XXI, caso estes se debrucem sobre as tais obras exactamente como sendo (e são, na verdade!) minas de ouro de sabedoria e de reflexão acumuladas.
O «capital de saber» é imaterial e não está dependente linearmente da disponibilidade económica de cada um. 
Saibamos usar os aspectos positivos da era da Internet, das comunicações globais instantâneas, o que implica também usar filtros que permitam descartar a «palha», sem perdermos os bons frutos.

BOM ANO DE 2019!