Muitas pessoas aceitam a situação de massacres de populações indefesas em Gaza e noutras paragens, porque foram condicionadas durante muito tempo a verem certos povos como "inimigos". Porém, as pessoas de qualquer povo estão sobretudo preocupadas com os seus afazeres quotidianos e , salvo tenham sido também sujeitas a campanhas de ódio pelos seus governos, não nutrem antagonismo por outro povo. Na verdade, os inimigos são as elites governantes e as detentoras das maiores riquezas de qualquer país. São elas que instigam os sentimentos de ódio através da média que controlam.
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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O «LIVRE» MERCADO, EXISTE?

 
Eu não sou «competente» para falar deste assunto, segundo os especialistas que se arrogam o exclusivo de perorar sobre economia. Porém, tendo eu vivido e estudado, estou em condições - como qualquer um - de observar a realidade do «livre mercado» ou sua ausência.

                      Adam Smith designava-se a si próprio como «filósofo moral»

Podemos retomar as obras de Adam Smith, David Ricardo, e outros, para nos certificarmos que o seu liberalismo significava outra coisa, completamente diferente daquilo que  as correntes neoliberais contemporâneas postulam em relação a este assunto.

As correntes neoliberais atuais, defensoras do «livre mercado», pretendem que este seja uma espécie de «Deus ex Machina», que acaba por tudo regular, por satisfazer os compradores e os vendedores, com o seu jogo de valores, pelas intervenções de uns e de outros. 

Mas, logo aqui, os modelos dos neoliberais sobre o comportamento dos intervenientes nos mercados são totalmente abstratos: Com efeito, o interveniente no mercado é representado como uma entidade abstrata com conhecimento instantâneo de todos os preços praticados nos mercados! Um átomo que tudo vê, tudo sabe, como se fosse Deus!? Esse agente-mitificado seria capaz de fazer, para cada operação de compra e venda, um lance otimizado. Além disso, o seu raciocínio e comportamento seriam inteiramente racionais, não sofreria do viés de quaisquer preconceitos. Mas, afinal, este «agente-robot-do-mercado» não teria nada do que há de humano no comportamento. 

Mesmo que se queira atribuir à «mão invisível»(1), essa propriedade misteriosa que faz com que os preços finais acabam por ajustar-se aos desejos, tanto dos vendedores como dos compradores, tal está muito longe da realidade sentida, da realidade económica do dia-a-dia. 

Atrevo-me a dizer que é observável por todo o lado a distância entre o modelo de mercado livre, segundo os neoliberais e a realidade, quer se trate da transação de couves (uns poucos euros), quer de apartamentos (dezenas ou centenas de milhares de euros). Na realidade, o que eu e muitas pessoas verificamos, é que a capacidade aquisitiva por parte do comprador e a perceção do vendedor, de que tem muitos ou poucos clientes para seu produto, são os fatores decisivos para o ajuste dos preços. 

Não existe ciência económica no mesmo plano que as ciências naturais. Esta ciência económica «matematizada», que nos querem fazer engolir do ensino secundário até à faculdade e mais além, como se fosse uma ciência rigorosa, é simplesmente uma fraude. 

Os clássicos acima referidos consideravam a economia, como fazendo parte das ciências «morais»: Queriam com isso dizer que estavam sujeitas a muitas das paixões humanas, o que - não tenho dúvida - continua a ser atual. Se não tivermos em conta o jogo psicológico, do nível dos indivíduos ao das relações internacionais, não podemos compreender nada do que se passa. 

Os pânicos das bolsas, as manias e outros ventos de loucura, que estão sempre a surgir, em tal ou tal ponto do globo e em tal ou tal circunstância, seriam - a meu ver - a prova cabal de que a economia é uma ciência humana, que está correlacionada com as paixões, as políticas, as ambições de poder, de status, de proteção, etc. Sentimentos muito humanos, quer lhes demos uma conotação positiva ou não; o facto é que as matematizações desses comportamentos são apenas construções arbitrárias, não descrevendo  de forma adequada, nem os fenómenos aparentes dos mercados, nem a psique. Os modelos não têm em conta a enorme diversidade e maleabilidade do comportamento humano, devido à diversidade e riqueza da psique. 

A economia contemporânea, na sua versão dominante, está conscientemente a fazer inferências abusivas, no que respeita aos indivíduos e ao seu comportamento nos mercados. Não espanta que os modelos construídos com base em tais falácias, sejam apenas «bonitas construções» para fazer correr um programa de software e ... nada mais.

Mas, o modelo «da economia de livre mercado» está tão arreigado na mente dos políticos e economistas, que penso seja um caso de construção obviamente ideológica, que se infiltrou no discurso dominante, ao ponto de convencer muitos da sua validade.

Os mercados existem e não apenas nas economias capitalistas: existiram desde a mais alta antiguidade. Não me insurjo contra a noção de mercado. É uma realidade, desde os alvores das civilizações; mas temos de compreender como é que os nossos antecessores realizavam as trocas, como as encaravam. O capitalismo obnubilou muita coisa. Antes do triunfo do modo de produção capitalista (final do século XVIII ou princípio do século XIX), as relações humanas não se guiavam pela «ditadura da mercadoria». Não existia, em muitos casos, uma economia onde o dinheiro dominasse, mas isto não significa que não existissem uma economia e trocas comerciais. 

Hoje mesmo, em que a mercantilização de tudo predomina, existem numerosas instâncias em que as pessoas e organizações não são movidas por critérios económicos, mas por outros (2). Não significa que tais comportamentos sejam resquícios do passado, mas antes que nós somos essencialmente os mesmos (afetivamente e psicologicamente) que os humanos de há dez mil, ou mais anos. 

A questão do mercado ser «livre», reduz-se somente à questão de existir - ou não - intervenção estatal no mesmo, se eu bem compreendo os defensores do neoliberalismo na economia. 

Ora, o Estado tem regulado os mercados de várias maneiras: Não vejo que a ausência de regulação do mercado possa ser benéfica para os intervenientes. O respeito por regras é fundamental para haver mercados ordenados, logo, para serem «livres», no sentido de exprimirem a concorrência entre os vários intervenientes, de modo não falseado.  Tem de existir, nas sociedades capitalistas contemporâneas, uma intervenção do Estado nos mercados. Não acredito que os defensores dos tais «livres mercados» prescindam dessa mesma intervenção.

Parece-me que as pessoas muito preocupadas em preservar a «liberdade dos mercados», estejam sobretudo preocupadas com o mercado do trabalho, quer o afirmem, quer não. Se houver um enquadramento legislativo, que constrange os patrões e os empregados a estabelecer relações contratuais coletivas, a  liberdade de recrutar e de despedir está efetivamente restringida. 

Não penso que os trabalhadores queiram prescindir da sua liberdade de estabelecer um contrato com os patrões, de mudar de emprego, de rescindir o contrato de trabalho, em caso de incumprimento por parte da entidade patronal, etc. 

Portanto, quer-me parecer que se fosse aplicada a liberdade de contratação segundo as regras e leis vigentes nos países onde os direitos laborais são  respeitados, não haveria boa parte da conflitualidade entre as classes patronal e trabalhadora. Estes conflitos surgem, muitas vezes, devido à negação dos direitos dos assalariados, em termos de contratação, ou de negociação e perante a obstinação dos patrões em não aceitarem discutir as reivindicações pertinentes dos trabalhadores. 

Afinal, os trabalhadores são os reais defensores da liberdade de contratação e de negociação. Muitas vezes os patrões, não apenas se negam a negociar, como vão pedir a intervenção estatal, para reprimir (por vezes violentamente) as reivindicações dos empregados.

A liberdade do mercado de trabalho ganharia se os capitalistas e seus suportes mudassem de postura. Em vez de falarem constantemente de «livres mercados», deveriam antes aplicar os princípios legais em vigor ao mais importante mercado económico e social, que é o do trabalho. 

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(1) Expressão usada por Adam Smith na sua obra «A Riqueza das Nações». Usou-a para exprimir, não a confiança cega nos mecanismos do mercado, o sentido que agora lhe é atribuído (falsa interpretação), mas antes, no contexto dum discurso teórico, uma idealização das relações mercantis na sociedade. Trata-se dum processo literário, o da «experiência mental». Este tipo de demonstração, usando situações imaginárias, era frequente nas Luzes. Muitos escritores usaram-na: Diderot, D'Alembert  e  Jonathan Swift, entre outros.

(2) Um artigo de Karl Polanyi dá-nos uma visão global da evolução das sociedades e dos respetivos valores: https://www.commentary.org/articles/karl-polanyi/our-obsolete-market-mentality/

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

FIM DA HISTÓRIA OU FIM DO GLOBALISMO ?

 Fazer cócegas na cauda do dragão,  poderia ser o mote da viagem taiwanesa de Nancy PelosiPorém, o que está em causa, é muitíssimo mais que causar irritação no dragão chinês, ou estimular um sentimento independentista no povo e na casta governante de Taiwan. O que está em causa, é o completar da rutura entre o mundo «Atlântico» e o mundo «Euroasiático». 

Exercícios de bloqueio e de preparação para invasão de Taiwan, pelo PLA (People's Liberation Army) da China Popular, segundo o «Global Times» de 03 de Agosto 2022.

Durante os anos da Guerra-Fria, que durou de 1946 até 1991,  houve episódios de guerra muito quente, como a Coreia e o Vietname.  Além destas e outras guerras «por procuração», houve a crise dos misseis de Cuba. Ela poderia ter desencadeado o holocausto nuclear, caso as direções soviética e americana não tivessem tido o bom senso de recuar. Com efeito, os americanos tinham colocado secretamente mísseis com cargas nucleares na Turquia (membro da NATO), às fronteiras da URSS e Nikita Khrushchov utilizou a ilha de Cuba com o governo pró-soviético de Fidel Castro para responder da mesma moeda. 

Apesar da total incompatibilidade ideológica, quer Nixon, quer Reagan, fizeram avanços na coexistência pacífica com a União Soviética, certos de que não haveria vencedor numa confrontação nuclear entre os dois superpoderes. Neste pressuposto, as políticas relativas à potência nuclear opositora, foram sempre  medidas e avaliadas ao milímetro pelos estrategas e políticos em ambas as superpotências.

Quando se deu a implosão da URSS, em 1991, a política de Washington modificou-se, com a forte influência exercida pelos neo- conservadores («neocons»), dirigentes e membros da alta administração, que tinham uma doutrina (doutrina dita Wolfowitz) que postulava que os EUA se destinavam a ser a primeira e única potência mundial, durante o século vindouro (século XXI) e que para isso, não podiam permitir que outra potência chegasse ao ponto de poder disputar a hegemonia dos EUA, quer económica, quer militar. Esta doutrina teve o seu triunfo com a «eleição» de George W. Bush, que integrava o grupo. Ele teve, na sua presidência, como principais conselheiros e membros da administração, muitos «neo-cons».

Na sequência destas mudanças em Washington e na ascensão (imprevista) de um  poder forte em Moscovo (Vladimir Putin), as doutrinas de defesa nos EUA foram alteradas, sendo admitido que podia haver guerra nuclear limitada, ou um ataque de surpresa num dos lados, desfazendo as possibilidades de contra-ataque da outra potência. Este postulado foi tornado doutrina de defesa oficial do Pentágono, nos primeiros anos do século XXI. No entanto, tal visão era tida como absurda e perigosa, há alguns anos atrás. Com efeito, qualquer dos lados iria guardar suficiente poder destruidor e contra-atacar, mesmo com um ataque de surpresa que destruísse muitas das instalações de ogivas nucleares. Basta pensar na frota de submarinos portadores de mísseis  nucleares, que navegam discretamente e que não são detetáveis pelos sistemas de vigilância satélite de qualquer um dos lados. Bastaria alguns desses submarinos subsistirem, para desencadear um ataque devastador contra os principais centros políticos e militares do inimigo. 

A guerra nuclear continua, assim, a ser aquela modalidade que nenhum dos lados deveria ser tentado a desencadear, pois as consequências nunca são previsíveis e a possibilidade de riposta - do lado oposto - nunca será de excluir. Além do mais, mesmo uma guerra nuclear que fosse completamente vitoriosa por uns, sem possibilidade de retaliação pelos outros (o que é falso, como vimos), esta «vitória» não deixaria aos sobreviventes uma Terra onde valesse a pena viver. Os efeitos de longo prazo dum inverno nuclear (fome, por ausência prolongada de fotossíntese) e a contaminação radiativa generalizada e prolongada, inviabilizando a agricultura em todo o planeta, a multiplicação de cancros e doenças resultantes da perda de imunidade dos indivíduos, fariam com que fosse mais desejável morrer-se logo, no decorrer da explosão nuclear, do que sobreviver e morrer-se aos poucos, num cenário de inferno total.  

Como tenho escrito há vários anos, a potência em decadência acelerada, que é o império USA e os seus vassalos, tem sofrido uma sucessão de lideranças, cada qual mais incompetente que a anterior, com um risco incalculável para o nosso Planeta: O de estarem ao comando duma potência nuclear de primeiro plano e possuindo bases militares espalhadas  por todo o lado. 

Face a esta situação, a Rússia tem desenvolvido armas estratégicas híper- sónicas, mísseis poderosos mas indetetáveis pelos sistemas de radar americanos. As armas referidas foram testadas em guerras, não apenas em exercícios. Foram usadas tanto na guerra da Síria, como na Ucrânia. Os peritos da NATO puderam constatar que esses mísseis podiam ser disparados a grande distância e teleguiados - com uma precisão inédita - até ao alvo. 


Ora, quanto ao incidente Pelosi-Taiwan (que, espero, não vá além duma exibição de força), o importante, em termos de estratégia mundial, é aquilo que vai catalisar: A consolidação da aliança entre Moscovo e Pequim. Não é de pouca importância tornar-se uma aliança formal. Porque isto equivale a dizer que, quem efetuar um ataque contra um deles, contará com a riposta do outro. 
É este o «último feito geoestratégico» da administração Biden, responsável por outros feitos do Império, nestes últimos tempos, nos quais incluo:

- O Afeganistão, chave para o controlo da Ásia Central, logo do continente euro-asiático, a «Ilha do Mundo» segundo Mackinder. 

- A Síria, nada do que foi tentado desde a administração Obama, quando Biden era vice-presidente, se pôde consolidar. Em contraste, a influência e prestígio do Irão cresceram na Síria e na região.

- O Iraque, donde os americanos estão basicamente excluídos e incapazes de influir, sendo o Iraque, agora, um bastião do Islão Xiita.

- A Ucrânia, o que pode surpreender, porém, veja-se que nenhuma das manobras tentadas surtiu efeito. A guerra está perdida para o governo ucraniano: Este, só não se senta à mesa para negociar um cessar-fogo, porque está pressionado para não o fazer, pelos Anglo-Americanos. A tragédia das pessoas, da sociedade e até mesmo a perda da independência da Ucrânia, não importam aos imperialistas. Eles quiseram que esta guerra acontecesse com o objetivo de criar um «novo Afeganistão às portas da Rússia», arrastados pela sua húbris, numa visão totalmente irrealista em relação às forças do lado russo. As sanções económicas à Rússia tiveram o efeito oposto ao que o «Ocidente» contava. 

Nada do que americanos e aliados previram deu certo. Apenas conseguem espalhar o caos. 
É o «Império do Caos». 
                                 [Refugiados sírios regressam a sua cidade, devastada pela guerra] 
Tudo aquilo de que os países «Ocidentais» se orgulhavam, desde o nível de vida dos cidadãos, suas proteções sociais, preocupações ambientais, respeito pelos direitos humanos, etc. tudo isto se desmoronou, tudo isto se revela como ilusão, nem o mais ingénuo observador pode nela cair. O que se desmorona agora, não é apenas um conjunto de governos, forças políticas, correntes ideológicas dominantes. Daqui por diante, a própria consciência das pessoas estará cada vez mais desperta e não será possível readormecê-la tão depressa. Não existe maior despertador do que a fome, quando ela aperta, quando há escassez de todas as coisas que antes eram dadas por adquiridas, pela generalidade da população. 
Nós ainda estamos na fase inicial duma longa depressão, que pode durar décadas. Não se pense que estou a tomar os «meus desejos pela realidade», pois esta visão, de uma longa etapa de depressão, é partilhada por autores pró-capitalistas conhecidos, como Jim Rickards, entre outros.
A minha visão é constante, desde há uns cinco ou mais anos: Os grandes poderes capitalistas, vendo que as ambições globalistas de hegemonia mundial do Império não se podem realizar,  decidiram desfazer a globalização, mas conservando o domínio férreo sobre o mundo dito «Ocidental», criando portanto uma clivagem artificial, uma nova guerra fria, ainda mais profunda que a anterior. Assim, conservariam o seu domínio sobre uma parte do Mundo. Quanto à outra, aquela que escaparia ao seu domínio, seria objeto de fricção constante, de sanções económicas, de guerras de atrito, de aproximação e afastamento, de alianças efémeras e oportunistas, para arrancar os mais frágeis da órbita adversária. 

Na realidade, não existe um projeto civilizacional autónomo, não existe um conjunto de valores que possam juntar os governos das nações díspares, que se encontram sob a tutela da hegemonia anglo-americana. Trata-se, para eles, de manter o domínio imperial, o mais próximo possível em extensão, do que foi alcançado pelo Império britânico no século XIX, não para benefício dos povos, mas da elite aristocrática. 

Como tudo isto carece da mínima coerência, de qualquer moral ou ética, este projeto de «tardo-capitalismo» tem, necessariamente, de ser cada vez mais autoritário, despindo-se rapidamente dos trajes de humanismo, defesa dos direitos humanos, justiça social, etc. Evidentemente, estes permanecerão «pendurados» nas constituições e leis, e nos discursos inflamados dos períodos pré-eleitorais, mas não mais do que isso. De resto, será um estendal de instrumentos de repressão, servindo-se das técnicas de vigilância generalizada e as moedas digitais (obrigatórias), emitidas por governos e bancos centrais.  Teremos uma sociedade totalitária idêntica, no essencial, aos regimes recordistas em violações dos direitos humanos. 

Espero que estes planos fracassem, que surja uma onda revolucionária, embora esta minha esperança tenha pouco fundamento, por enquanto: O meu fundamento, é constatar que a vontade de liberdade e igualdade, de justiça e fraternidade, têm existido nas mais diversas sociedades e indivíduos, na História. E não acredito que satanistas e malthusianos, por muito ricos e poderosos que sejam, consigam transformar o humano, impondo o seu «transumanismo», que afinal é somente anti-humanismo.

 

quarta-feira, 20 de julho de 2022

A MELHOR RESPOSTA NO LONGO PRAZO À VOLATILIDADE DOS MERCADOS

POR QUE RAZÃO OS ARAUTOS DO SISTEMA FAZEM TUDO PARA DESVIAR AS PESSOAS DA PROTEÇÃO MAIS ÓBVIA  PERANTE A GRAVE CRISE ECONÓMICA

https://www.mining.com/web/hungary-triples-gold-reserves-as-central-banks-turn-buyers-again/

 À medida que entramos mais profundamente numa zona de turbulência acrescida, na economia e finança mundiais, também as relações entre os ativos de diversa natureza estão a revelar-se mais instáveis. Os índices de volatilidade refletem as incertezas nos mercados e - embora no longo prazo - estes possam achar um novo equilíbrio, nas fases de transição, costuma haver substanciais ganhos e perdas. Como sabemos, nos mercados financeiros, as perdas de uns, são os ganhos de outros, e vice-versa.  A minha previsão é que haverá um considerável número de pessoas que apostaram, ou irão apostar, na economia de casino, nos mercados bolsistas, e terão sua atenção desviada das matérias-primas, dos metais preciosos, em particular.

Ao longo dos anos, o ouro e a prata têm sofrido uma constante supressão (pelos bancos sistémicos, os bancos centrais e os governos ocidentais) destinada a desviar o grande público desses investimentos.  É o que vou tentar explicar neste artigo.

O ouro e a prata têm os seus preços determinados em grande parte, não pelo mercado físico (ouro e prata físicos), mas pelo mercado de «futuros», de «papel». Neste, pode-se apostar num valor futuro de quilo ou onça de ouro ou outro metal precioso, sem que se tenha jamais de concretizar a transação, comprando ou vendendo o referido metal físico. Claro que este mecanismo permite que sejam transacionadas quantias enormes, mas que não têm correspondência física. Uma exceção a esta situação é a do mercado de matérias-primas (incluindo os metais preciosos) de Xangai, onde as quantias transacionadas são reais, não são meras «promessas» de compra e de venda porque todos os contratos-promessa têm de ter subjacente a respetiva quantidade de metal. 

Na economia especulativa, financeirizada, o ouro é por vezes designado como valor refúgio, mas no sentido de se investir em ouro-papel, como alternativa a deter-se «dinheiro-cash». Nos mercados do Oriente, pelo contrário, o ouro e a prata nunca deixaram de ser dinheiro, ou seja, metais cuja posse equivale -essencialmente - a dinheiro. Para termos uma noção de como as divisas (que são chamadas impropriamente «dinheiro») se desvalorizam em relação ao ouro, basta referir que uma moeda de ouro, contendo uma onça troy de ouro puro, tinha o valor de vinte dólares US, em 1913. Nessa altura, com essa moeda, ou com uma nota de banco neste valor (20 dólares US), podia-se comprar um fato de qualidade e nos bons alfaiates, em Nova Iorque. Quem tenha essa moeda de uma onça de ouro, que agora ronda os 1800 USD, poderá comprar  um bom fato, na mesma. Mas, não seria o caso de alguém que só tivesse guardado 20 USD em nota-bancária. A nota de 20 dólares daria para comprar, quanto muito, umas peúgas ! Claro que a relação é ligeiramente diferente para outros itens de consumo, ou para itens industriais mas, no global, estima-se que (em média) o «dinheiro-papel» perdeu desde 1913 97% do seu poder aquisitivo. O ouro conservou, em termos gerais, o seu poder aquisitivo.

Quando uma aposta em ouro-papel é perdida, ou seja, quando a aposta vai no sentido contrário do mercado, a pessoa que a fez perde uma percentagem do dinheiro investido, pois tem de vender ou comprar a um preço desfavorável... Muitas vezes, essas quantias são avultadas e os especuladores têm de obter dinheiro de outros investimentos, ou pedir empréstimo para cobrir a perda, com uma tal aposta «a descoberto». Se alguém fizer uma venda a descoberto e se houver um comprador, ela terá de comprar a quantia equivalente de ouro a outro agente, ou dar o dinheiro correspondente para indemnizar esse comprador. Nas bolsas de matérias-primas ocidentais, onde funcionam os mercados de futuros, como o COMEX (Chicago) ou LBMA (Londres), é vulgar, dum dia, transacionar-se em contratos de futuros o equivalente da produção anual mundial de ouro ou de prata. É evidente que, na realidade, aquilo que é transacionado são contratos-de-futuros, ouro-papel, ou prata-papel, que especificam quantas onças (500 ou 1000 onças, por exemplo) de metal  estarão disponíveis para entrega, pelo valor de X dólares, num dado prazo (por exemplo, dentro de 2 meses). Nestas bolsas, só algumas entidades têm acesso ao ouro e prata físicos, um punhado de grandes bancos, que negoceiam com grandes clientes e armazenam esse ouro nos seus cofres. Quanto aos outros, terão de se contentar com dólares, no valor equivalente ao preço estipulado. Muitos não estão sequer interessados em tomar posse do metal físico, contentam-se em receber a diferença de preço, caso tenham acertado na aposta. As quantias transacionadas nestes mercados são centenas de vezes superiores aos metais preciosos efetivamente depositados nas mesmas bolsas. Compreende-se que, nestas circunstâncias, seja fácil para grandes bancos e fundos financeiros, fazerem operações de venda a descoberto (isto é, sem possuir o metal físico estipulado nos contratos), emitindo grande número de contratos. Com esse instrumento de manipulação e com a «miopia induzida» das entidades reguladoras desses mercados, é notório que só raramente são apanhados em fraude. Recentemente, empregados da J P Morgan e também o próprio banco, foram condenados por manipulações do mercado do ouro. Este e outros bancos, têm sido multados por manipulações do ouro e da prata. Os valores das coimas, que parecem somas enormes, são inócuas para eles: Em poucos dias, têm mais lucro do que o montante das multas. Ou seja, há um discreto incentivo para continuar a fazer fraude, tanto mais que um público não esclarecido pensa que só grandes capitalistas ficarão prejudicados com tais manipulações do preço do ouro.

Numa economia em que exista o padrão-ouro, os governos ou bancos centrais não poderão manipular a moeda, visto que a quantidade de ouro que possuem nos cofres dos bancos centrais respectivos não pode ser aumentada a seu bel-prazer. Então, todos os governos que sustentam a especulação desenfreada e os seus agentes corruptos, incluindo os académicos, vão dizer que o ouro é uma «relíquia do passado», que retira muita flexibilidade à gestão económica e financeira, etc. Enfim, é certo que os défices monstruosos, quer nos orçamentos de Estado, quer nas balanças comerciais, serão muito menos prováveis, com um padrão-ouro. Esta é uma das razões porque, entre a derrota de Napoleão em Waterloo e o início da Iª Guerra Mundial, houve 99 anos de desenvolvimento capitalista, com alguns solavancos, mas sem crises comparáveis às crises vividas ao longo dos séculos XX e XXI: 1929, 1971, 1987, 2000, 2008 ... ou 2022! 

Pessoalmente, sou contrário a que uma moeda nacional sirva como «moeda de reserva mundial», porque o país detentor desse privilégio irá - com certeza - abusar dele ao fim de algum tempo, de uma ou doutra forma. Na era do 100% eletrónico, uma operação de câmbio duma para outra moeda é feita instantaneamente, não é complicado. Nem é mais complicado fazer o cálculo do câmbio duma quantia de Rupias para Euros (por exemplo), do que de Euros para Dólares US. Então, que interesse tem uma moeda de reserva? Para medir os preços e compará-los, temos a melhor «moeda de reserva» imaginável, que é o ouro! O ouro é um elemento químico; não é pertença de nenhum Estado (ao contrário de uma moeda). A sua falsificação é fácil de detectar. Podemos referir o preço de qualquer item em termos de ouro. Por exemplo, um objeto que custa 200 euros, traduz-se em 3.72 gr. de ouro puro (à cotação de hoje, 20/07/2022). A conversão de uma soma numa divisa, para gramas ou onças de ouro, é tão fácil como para outra divisa. O ouro é aceite em todas as economias, sendo transacionado com cotações diárias iguais ou muito próximas: Em Londres, Madrid, Moscovo, Xangai, Nova Iorque, Tóquio, ou em qualquer outra parte do mundo. Por isso, este padrão- ouro seria muito conveniente para o comércio internacional; permitiria que as mercadorias fossem avaliadas e transacionadas com preços mais justos. Ninguém poderá, a seu bel prazer, de repente, duplicar a extração, purificação e refinação  do ouro: Isso envolveria muito trabalho, muita energia; por isso mesmo, o ouro é muito estável. Mas, com uns meros «clicks», os funcionários dos bancos centrais podem aumentar para o dobro (ou mais) a quantidade total em circulação duma divisa, como temos visto ultimamente. 

Muitas pessoas dizem...  «O ouro não serve para nada, é perfeitamente inútil, só dá despesa». Eu pregunto-lhes: «E o papel-moeda, serve para algo mais, além de troca e pagamento, algo mais que o ouro? O ouro tem algumas aplicações industriais e em joalharia; que eu saiba, o papel-moeda não tem.»

- «Mas o ouro consome energia e custos para o manter...». «Sim, é verdade, mas também os seguranças armados guardam cofres-fortes que contenham apenas notas em papel; estas também são transportadas em veículos blindados, etc.» 

-«Mas não haveria bastante ouro para atender às necessidades da economia mundial». «O ouro é um metal-monetário; isso significa que o ser humano atribui um valor ARBITRÁRIO a determinada quantidade de metal (kg, onça, etc.). Se a onça de ouro, agora, equivale a 1800 dólares US, ela está muito desvalorizada, em relação à quantidade total de papel-moeda, devida à impressão eletrónica, nestes últimos tempos. A dívida mundial total atinge, segundo estimativas, mais de 300 triliões de dólares, soma difícil de imaginar, para quem  não está habituado a lidar com números astronómicos!!!

Com certeza que o padrão-ouro não é a panaceia! Mas, curiosamente, há uma grande coincidência entre  os mais acérrimos defensores do sistema, os ditos neoliberais e os inimigos de qualquer mudança para um padrão tangível (e o ouro será sempre o mais conveniente, por razões que não irei referir, aqui). Curiosamente, também, advogam uma moeda- padrão digital obrigatória, que irá submeter qualquer pessoa ao escrutínio dos bancos, bancos centrais e governos. Com as «moedas digitais» emitidas pelos bancos centrais, é o fim da privacidade, da autonomia e da liberdade : Alguém que seja punitivamente desligado do seu «porta-moedas digital», ficará num estado de morte económica. Muito dificilmente poderá subsistir. Este é o futuro que se reservam, a si próprios, os tais «liberais»: Eles terão o poder de decidir quem tem acesso, ou não, ao seu próprio porta-moedas digital. Por outras palavras; terão o poder de decidir sobre as nossas vidas! O 100% digital em mãos dos bancos centrais retira qualquer liberdade aos cidadãos. Afinal, estes tais «neoliberais», deveriam ser designados antes por «neototalitários», ou  algo semelhante. 


segunda-feira, 13 de junho de 2022

ENTREVISTA COM C. J. HOPKINS: «o totalitarismo de hoje precisa dum simulacro de democracia»

 Elze van Hamelen entrevista o dramaturgo, romancista e satirista político C.J. Hopkins. A conversa é sobre seu novo livro 'A ascensão do novo reich normal'.

A entrevista foi transcrita em «De Andere Krant» (04-06-2022) (em holandês)




quarta-feira, 27 de abril de 2022

VER O MUNDO DE OUTRA FORMA?


 
Lenine dizia... mais ou menos, isto: «Há décadas em que não se passa nada de muito relevante; e depois, surgem períodos em que os acontecimentos se precipitam, dando a sensação de que se viveram décadas, durante apenas uns meses ou semanas.»

Esta citação pareceu-me adequada para abrir uma reflexão sobre a mudança e - em particular - a mudança que temos experimentado, nos últimos anos. Temos a sensação de que a História se acelerou, de que grandes transformações ocorreram, de que se passam muitas coisas insuspeitas do grande público e mesmo de muitos dos peritos, que têm o potencial de transformar a nossa relação com o mundo, com o Estado, com a sociedade, com a economia, etc.

Seria muito interessante avaliar as diversas expetativas do que seria o século presente, enunciadas por eminentes intelectuais ou políticos no século anterior (século XX): Muitas delas revelaram-se muito distantes do real, quando confrontadas com os acontecimentos da história recente. Mas este exercício não se destinaria a fazer «chacota» dessas pessoas (nós também, tínhamos perspetivas que se revelaram falsas!), nem a nos mostrarmos mais clarividentes, que os nossos contemporâneos. 

Esse exercício mental seria um bom «remédio» para as pessoas (de quaisquer setores do espectro político-ideológico), que estão cheias de certezas, capazes de dar resposta a tudo, etc. Seria, afinal, um exercício de humildade, se efetuado honestamente. Obrigava-nos a ir aos fatores fundamentais e analisar, não a partir dos nossos desejos, ou das nossas construções ideológicas, mas a partir da realidade.

Veio-me à memória outra citação de Lenine; ele dizia: «Os factos são teimosos!». 

Não creio estar errado, se disser que a economia real deve prevalecer - numa visão de conjunto - sobre a economia financeirizada. 

Com efeito, as necessidades globais em alimentação, energia e matérias-primas, sobrepõem-se (muito visivelmente, agora) aos movimentos erráticos e caóticos do dinheiro especulativo. Porém, este facto não é particular à época atual; sempre foi assim! Mas, quando existia bonança ou, quando o abastecimento dos mercados em relação a esses produtos (alimentos, energia, matérias-primas), estava a funcionar normalmente, a atenção das pessoas era puxada para a componente especulativa da economia, ou seja, para a ganância do lucro, de «fazer dinheiro» com dinheiro. 

Se nós tomarmos um bocado de recuo, agora, neste momento particularmente conturbado da cena internacional, com as repercussões enormes que se estendem em todos os setores da economia, com particular incidência nos aspetos mais vitais, o que vemos? Vemos que a globalização capitalista, a engenharia económica e financeira, para aumentar as mais-valias da exploração do trabalho, com a exportação de fábricas e outros meios para os países do «Terceiro Mundo», onde não havia regulação séria do mercado de trabalho e onde era possível as multinacionais aí instaladas obterem um rendimento muitas vezes superior ao obtido na América do Norte ou na Europa, essa globalização ruiu.

Ela, globalização, ruiu e os países em «piores lençóis» são exatamente aqueles cujas burguesias mais beneficiaram dessa exploração acrescida, durante a fase de expansão e internacionalização mais agressivas do capital. 

As pessoas ainda não perceberam, porque continuam embaladas na ideologia neocolonial, ou no consumismo acéfalo, mas o facto é que as componentes tecnológicas essenciais estão a ser fabricadas pelas nações e pessoas que elas (no fundo) desprezaram. Estas pessoas são técnicos altamente qualificados, engenheiros, investigadores, que enxameiam muitas das instituições de ponta do orgulhoso «ocidente» e, sem elas, simplesmente não haveria capacidade humana para realizar o trabalho de investigação e desenvolvimento, nos vários setores. Eu sei isso muito bem, pois tenho acompanhado na minha área (biologia molecular e genética) essa progressão, mas tenho informação segura de que se passa o mesmo, noutras áreas muito diferentes, mas igualmente ditas «de ponta». 

Assim, o próprio desenvolvimento da economia financeirizada, o capitalismo na fase senescente, veio dar - a ele próprio - a machadada final. 

O efeito político e geoestratégico disto é o que estamos a presenciar neste ano de 2022. Uma separação radical em dois mundos, o eixo Russo-Chinês, incluindo a Índia e muitos parceiros da Ásia Central e do Sul, além de uma ampla gama de acordos com África, América Latina e mesmo em setores da Europa. Por outro, um mundo dito Ocidental, que está mais ou menos limitado à Europa da UE, ao Reino Unido, aos EUA e aos anglófonos Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Neste bloco, os EUA reinam como potência hegemónica, ditando  o que se deve ou não fazer e que posições tomar, até ao pormenor. 

Atrevo-me a dizer que não haverá mais globalização liderada pelo «Ocidente», pois ela foi propositadamente deitada abaixo, tendo os estrategas norte-americanos decidido que era melhor assim para o seu poderio. Esta tendência já se afirmara claramente no consulado de Donald Trump. Agora, apenas está a ser levada ao extremo pelos neocons que decidem a política em Washington. 

Segundo esta visão, é melhor ter uma mão forte, segurando um conjunto de países-vassalos (os da NATO e sua réplica no Pacífico), ao Império ter que se confrontar em permanência com competição, resultante da ascensão económica e geoestratégica dos que não se conformam com sua ditadura. Eles chamam isso: «Rules based order». 

Isto serve também, ao fim e ao cabo, os interesses geoestratégicos da Rússia e da China, que estão apostadas ambas em maximizar a conectividade entre si e com os países da Organização de Cooperação de Xangai. 

No meio, ficam nações falidas, destruídas pela guerra : a Ucrânia é a última de tais nações, mas não devemos esquecer a Líbia, o Afeganistão, o Iraque, o Iémen, e outras... Cada uma dessas nações terá de se reconstruir após guerras cruéis, o que poderá corresponder a decénios. 

Nunca a história volta atrás; O que aconteceu num dado período, deixa um traço indelével que se prolonga até ao presente. Sem inteligência da História, dum modo aprofundado, somos conduzidos por clichés, por preconceitos, por ideologias de pacotilha. 

Nunca é fácil compreender o mundo. Ele não se rege por qualquer «lei», ao contrário do que Marx e os marxistas criam; o mundo dos homens, das sociedades, das civilizações é caótico, ou seja, não é possível se aplicar qualquer «lei, regra ou princípio». 

É preciso compreender isto e compreender que o mundo natural - o mundo das necessidades energéticas, incluindo alimentação, que é afinal energia para o nosso corpo - esse obedece a certas constrições, que não se podem eliminar: as leis da termodinâmica, as leis da vida, das leis genéticas até às leis que governam as populações; as leis da ecologia, dos sistemas renováveis e dos recursos finitos, etc. 

As pessoas que têm formação em biologia ou áreas conexas, têm natural propensão em ver o mundo deste modo: Este modo de ver, se não for transformado numa pseudo- ciência, ou numa forma atualizada da ideologia cientista dos séculos XIX e XX, pode ser um instrumento muito mais fértil, quer para a prospetiva, quer para a planificação flexível. 

Afinal, o melhor modelo é aquele que passou «o teste» de Éons de evolução biológica: Compreender a fundo estes mecanismos não implica compreender tudo o que respeita ao mundo dos humanos e suas sociedades, mas ajuda a colocar a economia, a sociologia e  política,  em perspetiva.

terça-feira, 19 de abril de 2022

QUEM CONTROLA QUEM?



Quem costuma prestar atenção aos discursos políticos, ideológicos e mediáticos dominantes, sabe que nestas esferas se manufaturou - desde há longa data - um consenso: A democracia é um sistema que está inerentemente associado com a «liberdade» dos mercados, sendo uma heresia, sob o ponto de vista económico, mas político também, querer «regular» os mercados. Isso (regular os mercados) seria a marca das ideologias mais ou menos autoritárias, pondo dentro do mesmo saco os fascismos, incluindo o nazismo, as regulações social-democráticas ocorridas  após IIª Guerra Mundial no Ocidente e todos os socialismos autoritários, desde a União Soviética, os diversos regimes «comunistas», em vários continentes, até à China contemporânea, um híbrido de capitalismo/comunismo.
Esta visão do mundo, propriamente ideológica, é reafirmada por um montão de discursos, que confluem para afirmar essa tal inevitabilidade: ir contra a «liberdade» dos mercados, é estar a fragilizar - também - a liberdade política e a ordem social liberal.
Note-se que este discurso é apenas uma atualização dos ataques no século XIX, contra as correntes sociais e socialistas (o que incluía marxistas e fortes correntes anarquistas). Nesta fase, o capitalismo industrial triunfante parecia efetivamente ser um modo de produção cuja maior eficácia e produtividade eram inegáveis. Eram comuns os argumentos de que o capitalismo «não se dá bem» com ditaduras, que uma economia capitalista não se concebe sem concorrência e que a concorrência implica liberdade dos indivíduos, uma imprensa livre, etc., etc.
De facto, nas suas linhas fundamentais, os argumentos permanecem os mesmos. Porém, o próprio capitalismo não só envelheceu, como também se transformou, de tal modo que se pode legitimamente perguntar se algo do «livre mercado», ou se algo dum genuíno liberalismo, tanto económico como político, permanece nos países tidos como guardiães dos mercados livres e da democracia liberal. Estes, são os países «ocidentais», um conceito político, pois inclui países como o Japão, a Coreia do Sul, ou a Austrália, que não são geograficamente «ocidentais».
Curiosamente, as esquerdas liberais ou libertárias,  parlamentares ou extra- parlamentares, têm feito a mesma apologia dos mesmos «valores», apenas desejando a «limitação» dos grupos económicos muito grandes, apenas porque são muito grandes, deixando o resto na mesma. Quanto à sua formal e retórica aversão aos monopólios, tem origem em slogans dos anos 60 e 70, onde ainda havia um segmento significativo das esquerdas «ocidentais» que eram realmente anti- capitalistas, que punham em lugar central a luta de classes e a luta anti-imperialista. O que se vê, hoje, na «esquerda» é que as pessoas bem podem conservar uma auto- imagem «anti- capitalista», mas (infelizmente), a meu ver, ela não corresponde à realidade.
De resto, a «liberdade dos mercados» carece de qualquer razão profunda para se lutar por ela, não pode ser considerada um valor em si mesmo, a não ser que se ache justificado que a Grã-Bretanha tenha, em nome da liberdade de comércio, imposto o ópio e as guerras do ópio ao império da China, como se fosse direito inalienável do império Britânico, vender as mercadorias que quisesse, aonde quisesse e a quem quisesse. 
Pessoas que se dizem liberais hoje acham  frequentemente, que o capitalismo está a ser plenamente falseado pela existência dum ordenado mínimo, o qual impediria o mercado laboral de funcionar «em plena liberdade» e que os trabalhadores aceitem voluntariamente (sic!) trabalhar por salário abaixo do tal mínimo. O salário mínimo é acusado de falsear a concorrência, devido aos «pobres capitalistas ocidentais» serem confrontados com a produção a menor custo, noutras paragens, com salários mais baixos. Tudo isto são falácias, fáceis de desmontar!
Podia-se escrever um longo capítulo de exemplos, desses tais «valores neoliberais» contemporâneos. Penso que o leitor poderá facilmente perceber aonde quero chegar, mesmo sem multiplicar os exemplos: Trata-se de um exercício de hipocrisia, que mascara um racismo classista, vindo diretamente do setor capitalista mais reacionário e anti-humanista.
Esta corrente, tem hoje em dia um renovo: O neomalthusianismo é a ideologia que subjaz um complexo ideológico. Ouvem-se nomes diferentes como o transumanismo, o keynesianismo, o militarismo, mas eles são somente, afinal, «parágrafos diferentes do mesmo credo». Esta corrente floresce graças aos muito ricos e poderosos bilionários, que se colocam como patronos ou benfeitores «humanitários» e «aconselham» governos e outros, servindo-se de «fórums», como o de Davos, controlando quer a «media de massas» tradicional, quer os novos instrumentos mediáticos da Internet (Twitter, Facebook, Google, etc...) .
O nível extremo deste poder de controlo revela-se nas instâncias internacionais. Elas não deveriam estar submetidas à pressão de financiadores privados, como acontece no caso da OMS. É conhecido que o financiamento maior da OMS provém da Fundação Bill Gates, sendo também muito grande a contribuição das grandes farmacêuticas. A OMS deveria escapar a tal sujeição, funcionar apenas como agência da ONU, tendo só contribuições dos diversos países membros.
Quando interesses privados, de um modo insidioso, com a colaboração de Estados, se imiscuem na gestão de aspetos da vida que deveriam ser públicos, obtém-se uma rede de interesses muito fortes, as chamadas «parcerias público-privadas». Estas, nada mais são do que estruturas para impor um regime de monopólio em setores inteiros da economia, portanto, a negação total da «livre concorrência». Pense-se em Portugal: No setor energético (EDP, GALP, GDP etc.), no setor das autoestradas (BRISA), no setor das comunicações e media (NÓS, MEO, jornais de grande tiragem e grupos de imprensa, além de copropriedade com o Estado, vivem de subsídios estatais), nas empresas de transportes (a TAP e muitas outras). Na educação, as universidades «privadas» são, na verdade, parcerias com o Estado, tal como os colégios (da primeira infância, ao fim do secundário), viáveis somente devido aos constantes subsídios e ajudas diversas do Estado.
As parcerias público- privadas, tão do agrado da classe capitalista, como da corrompida classe política, são - nada mais, nada menos - que monopólios de renda, para os interesses capitalistas privados. O Estado fica - de facto - como garante da viabilidade económica destas estruturas. O apoio que ele (Estado) presta, pode ser direto: Como foi o caso, para salvar bancos privados, como o BES e outros. Em Portugal, os contribuintes, defraudados pelo Estado que governa «em nome deles», são quem desembolsa os milhões para cobrir as perdas dum banco americano («Lone Star»), que adquiriu, em condições de privilégio inéditas, o «Novo Banco» resultante do falido BES (Banco Espírito Santo).
Aquilo que se observa em Portugal é igual, em mais grotesco, ao que ocorre em países mais fortes, como os EUA, a Alemanha, a França, etc...
Estas relações são de tipo ternário:
- O Estado faz reféns os cidadãos, obrigando-os a contribuir com seus rendimentos (o imposto sobre rendimentos), com contribuições obrigatórias (para segurança social, etc.) e com os impostos diretos (IVA, etc.).
- As grandes empresas conseguem dominar o mercado, um domínio em monopólio ou oligopólio (duas ou três empresas num setor, «ditas concorrentes»). Isto é obtido mediante toda a panóplia de instrumentos e táticas, que incluem a absorção de concorrentes mais fracos, a exclusão dos potenciais concorrentes, incluindo a sua sabotagem, a utilização de conivências instaladas no aparelho de Estado, etc.
- As empresas monopólios ou oligopólios, estabelecem com o Estado, diretamente ou através de empresas e instituições estatais, acordos de parceria. Estes, além de reforçarem as suas posições de mercado, dão-lhes acesso a fonte de financiamento seguro, à garantia de salvamento, mesmo perante erros da gestão empresarial, etc.
Pode-se dizer que estas parcerias reúnem todas as vantagens dos sistemas privados e todas as dos públicos mas, para maior vantagem dos privados, sobre as estruturas públicas. Com efeito:
Podem exercer a sua atividade, seguindo apenas as regras do mercado; podem ser cotadas em bolsa; podem negociar acordos salariais e outros dentro da empresa; não estão sujeitas a seguir critérios definidos pelo governo, seja para promoções ou concursos externos de pessoal, como nas empresas públicas; podem sobretudo distribuir os lucros obtidos pela empresa, entre os acionistas e membros de topo da gestão.
Mas, têm as vantagens dum investimento público, como: A possibilidade do Estado investir diretamente com dinheiro público, ou com dívida pública (que os contribuintes terão de pagar futuramente); têm a garantia do Estado para qualquer empréstimo que façam; têm acesso às redes de influência e de poder, sobretudo. Esta simbiose permite-lhes estar por dentro do poder político qualquer que ele seja, sem parecer.

Geralmente, os media estão cheios de notícias que desencadeiam um reflexo «visceral» nos seus leitores/auditores: esta gestão das emoções é monitorizada cientificamente, por cientistas comportamentais, psicólogos, sociólogos, antropólogos, etc. «que venderam a alma ao diabo».
Não são os únicos, pois nas universidades, em particular, abunda esta espécie, que se reveste dos louros académicos para viver como parasita da democracia. Estas pessoas são compradas, ou melhor, são apropriadas. Estamos a falar do funcionamento de instituições com potencial para influir na opinião pública, tais como a media de massas, o ensino superior, os corpos de elite do Estado, as instituições de investigação (estatais ou privadas).
É impossível alguém não-conforme com a ortodoxia permanecer nestas instituições durante muito tempo, pois seria marginalizado e finalmente expulso, se levantasse frequentemente a voz para afirmar algo desagradável aos seus patrões. Também, não há grandes hipóteses de tal vir a ocorrer, pois os candidatos são sujeitos a uma seleção que privilegia a conformidade, em detrimento da criatividade e originalidade. No processo de seleção, uma pessoa que sai fora dos cânones aceites e desejados, até  poderá ser dotada de inteligência e  capacidade criativa acima dos outros concorrentes. Mas, os que selecionam os candidatos não vão selecionar essa tal pessoa, porque têm de escolher alguém que «encaixe» no perfil traçado.

No conjunto, as sociedades ditas de «democracia ocidental» vivem numa espécie de teatro ou de simulação permanente. Ai de quem se atreva a dizer «o rei vai nu!»
As circunstâncias delineadas nos parágrafos acima, não são as únicas em que ocorre uma ficção de «concorrência». Todo o conjunto da sociedade é atravessado pela mesma corrução intrínseca, pela mesma hipocrisia institucionalizada, pela supressão dos mecanismos de controlo popular. É preciso compreender que o poder sobre os indivíduos, implica um controlo, mandar nas pessoas, forçá-las a conformarem-se com as normas (sobretudo, as não escritas) e, por estes meios, manter as hierarquias de poder em todo o tecido social, sem as quais (segundo eles) a sociedade dita «civilizada» não poderia subsistir. Sem hierarquia, tudo cairia no caos, na anarquia. 
De facto, a «civilização» deles, é realmente sinónimo de violência e de caos, sobre os pobres, os destituídos, os excluídos. O «socialismo para a elite e escravatura do capital para os servos», é o verdadeiro mote da sociedade que eles querem implantar (Great Reset), conservando apenas a retórica da «democracia liberal». Mas, isto nunca é patente, antes é sempre ocultado pelo poder!

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

MAIS UM EPISÓDIO DA IIIª GUERRA MUNDIAL (*)



Esta Guerra Mundial, não declarada, não reconhecida como tal, situo o seu início a partir da chamada «guerra do Kosovo», ou seja, da afirmação de poder dos americanos e da NATO, para destruir os últimos focos de resistência na Europa à ortodoxia neoliberal. Este crime de guerra hediondo, foi seguido por muitos outros. 

Como é sabido, antes do monstruoso 11 de Setembro de 2001, já estavam planificadas guerras e invasões de 7 países no Médio Oriente. 

O golpe de Maidan (2014), na Capital da Ucrânia, era dirigido contra a Rússia, considerada a maior inimiga do Império. Segundo planos e opiniões nada secretos os «estrategas» de Washington e os seus think-tanks de neocons queriam, não apenas o fim da URSS, mas também o desmantelamento da Federação Russa. 

Daí, toda a estratégia de avanço da NATO para as fronteiras russas, ao longo dos anos, acrescentando mais e mais países da Europa de Leste ao clube dito «atlântico». Os estados ex-soviéticos ou ex-Pacto de Varsóvia, foram assim transformados em guarda-avançada, no lento cerco. Isto em preparação do ataque final e desmembramento do próprio território russo. 

Estes factos eram evidentes e o barulho mediático tentando fazer de Putin um novo Estaline ou Hitler, foi apenas uma estratégia de propaganda de guerra, junto da opinião pública sempre crédula, porque sujeita a técnicas de lavagem ao cérebro. 

Na verdade, estas técnicas têm funcionado demasiado bem. Fiquei inquieto, há dois anos atrás, quando as pessoas, em grande parte do mundo e especialmente na Europa, aceitaram sem mais a ordem de prisão coletiva: «lockdown» é um termo que designa uma situação de castigo coletivo; quando os presos são fechados nas celas da prisão, por terem sido «indisciplinados». 

Isto funcionou tão bem que temi, na altura, que a «elite» se sentisse audaciosa o suficiente para lançar a outra fase do seu plano. Aí está ela; a guerra total! Agora, já não guerra híbrida, nem guerra económica. De agora em diante, estamos em guerra total.

É que nós somos «gado» e eles, os que nos dirigem, é que detêm o poder sobre nossas vidas! A democracia, é como um cenário, no teatro: enrola-se, depois do drama representado em palco. Agora, o cenário é outro; porque a peça representada chama-se «democracia totalitária», o simulacro das instituições da democracia liberal, com a ditadura fascista em marcha. 

Como tenho vindo a avisar, as situações acontecem, também porque o capitalismo depredador e parasitário, que resulta da chamada financeirização, chegou aos seus limites. Para disfarçar a crise profunda, o colapso das economias, os «donos do Ocidente» não encontram nada melhor que uma guerra, dizem eles que «a guerra é a saúde das nações»!

- Nações e povos do mundo, acordem! não se deixem mais manipular, seja por quem for.*

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PS1: Veja AQUI a edição do dia 24-02-2022 da crónica quotidiana pelo analista em geopolítica Alexander Mercouris. Penso que ele é rigoroso, as suas hipóteses são cuidadosamente separadas do relato dos factos, parece-me uma fonte interessante e não enviesada.

PS2: Willy Wimmer, na altura vice-presidente da OSCE, confirmou que foram dadas «garantias» à URSS, de que não haveria expansão para Leste da NATO, seu testemunho pode ler-se na notícia de RT:  https://www.rt.com/russia/549961-west-nato-expand-willy-wimmer/

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(*) Numa situação deste tipo, não há só um lado culpado: todos os lados têm culpas. Mas o que importaria mais era que todos nós, independentemente da nacionalidade, etnia, simpatias partidárias, ideológicas, etc. mas com sentimentos humanitários, apelassem para o governo do seu país, no sentido de propor um cessar-fogo, seguido de uma trégua permanente, seguida de conversações (sérias) para uma paz efetiva no continente europeu. Paz significa, respeito pelas fronteiras reconhecidas pela ONU, respeito pelos compromissos assumidos (por exemplo, não expansão da NATO, prometida aos governantes russos de 1991 e posteriormente). Significa retirada e garantia de não instalação de sistemas capazes de transportar mísseis nucleares. Manutenção de todos os canais diplomáticos abertos e promessa firme e por escrito, dos responsáveis de não recorrerem a pressões, muito menos a ameaças de guerra, para a resolução dos diferendos.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

AQUILO QUE NÃO TEM PREÇO [entrevista a Annie Le Brun]


 "Aquilo que Não Tem Preço" de Annie Le Brun, um livro de crítica da arte contemporânea e do capitalismo mundializado, que vem desfazer a ilusão gerada pela sociedade do consumo. 
A mercantilização da arte é parte integrante da mercantilização da própria sensibilidade humana.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

[Valérie Bugault] O GLOBALISMO TOTALITÁRIO

A população cega pela sua própria servidão





Tenho acompanhado a obra e as intervenções de Valérie Bugault, jurista e filósofa do Direito, desde há alguns anos. Ela é verdadeiramente brilhante. Seu saber e sua originalidade irradiam, sem necessitar de fazer piruetas e sofismas. É o que existe de melhor, no espírito francês contemporâneo. Por isso, é indispensável ler e ouvir com atenção as suas análises.
Estou muito de acordo com vários aspetos do seu pensamento. Onde me afasto, é nas soluções preconizadas. Compreendo que ela não queira dar o passo de propor uma sociedade inteira autogerida e, portanto, dispensando completamente o Estado. É normal, porque, afinal, é uma pessoa formada em Direito, e este é uma emanação do Estado.
Mas, para mim este aspeto do seu discurso é, somente, um pormenor: Porque a sua inteligência aguda faz a crítica mais certeira das disfunções das instituições estatais e globalistas. O seu olhar crítico não se fica pela França. Valérie Bugault ultrapassa o quadro «franco-francês», retomando a tradição humanista e universalista das Luzes.

domingo, 14 de novembro de 2021

BRINCANDO COM O FOGO, ou como se liberta o génio mau da inflação

 É da natureza dos bancos centrais, em especial da FED, estarem sempre numa posição inadequada, contra-cíclica, em relação à economia. Por exemplo, agora estão com um atraso de muitos meses a tentar a viragem na política de «dinheiro fácil» através de «tapering», que é a desaceleração da impressão monetária, mas não a supressão da mesma. Esta impressão monetária não resolve nenhum problema real, verdadeiro da economia. Com efeito, o aumento da massa monetária total, ou em circulação, vai estimular a perceção dos intervenientes nos mercados, de que há maior riqueza, maior disponibilidade para gastar. Mas não se produziram mais bens nem serviços, não houve acréscimo de autêntica riqueza. É um mecanismo essencialmente psicológico, como, aliás, são de base psicológica muitas das movimentações que ocorrem nas economias. 

A razão pela qual os bancos centrais, em especial os «ocidentais», fazem sistemáticos erros de avaliação da situação económica mundial, é que funcionam com modelos lineares. Baseiam-se nestes modelos e numa visão teórica neokeynesiana. Assim projetam eles as tendências e baseiam o fundamental das suas decisões. O problema com isto, é que tais projeções não colam com a realidade. Se a economia fosse uma verdadeira ciência (não é!), estaria sempre a reavaliar a validade de seus modelos, de suas projeções, incluindo os fundamentos e pressupostos sobre os quais se construíram tais modelos e projeções. 

A realidade é outra: A FED e todos os bancos centrais ocidentais, que lhes seguem as passadas, vão dar sempre prioridade aos conceitos teóricos, sobre a realidade dos factos no terreno. Em todas as crises, especialmente as mais graves,  pode-se notar esse desfasamento. Isso significa que os bancos centrais, em vez de criarem condições para o retorno à normalidade, suas intervenções têm o efeito oposto, o de aumentar a amplitude dos ciclos económicos. 

A recente afirmação de Jerome Powell, de que o surto de inflação era transitório e que, portanto, não haveria nada de fundamental a mudar no rumo decidido pela FED, ilustra claramente a inadequação da política da FED, a qual só pode ter por base uma inadequada visão da realidade, ela própria devida a modelos não apropriados, baseados em teorias parciais, ou defeituosas no fundamental. 

Veja como Mohamed El Erian, numa curta entrevista AQUI, destrói a narrativa emanada da FED e do seu presidente, ao dizer que esta crise foi logo caracterizada por inflação devida a escassez da oferta. Referia as disrupções dos mercados de matérias-primas, bens acabados e, mesmo, de mão-de-obra, resultantes da crise estrutural e de conjuntura - os lockdown a pretexto do COVID - que a exacerbou. Os elementos que El Erian refere estavam patentes, não eram elementos ocultos que somente podiam ser detetados após muitos meses. 

Porém, o que a FED e outros bancos centrais fizeram, com a sua impressão monetária levada ao extremo, foi exacerbar o problema, criando um efeito inflacionário do lado da procura, além e por cima do existente, devido à escassez na oferta. 

A inundação de liquidez nos mercados não veio salvar coisa nenhuma na economia produtiva. Veio apenas insuflar ainda mais as já muito grandes bolhas nas bolsas e em todos os ativos. 

Além disso, houve um súbito aumento de dinheiro disponível, na economia do dia-a-dia, com o dinheiro distribuído às pessoas para compensar as paragens de trabalho forçadas («helicopter-money»). Foi uma medida tornada necessária pelos lockdown, mas os lockdown não eram necessários! 


Assim se destapou a lâmpada de Aladino e deixou-se o génio malévolo da inflação surgir e crescer, com o risco de tudo devorar na onda hiperinflacionária.

A conclusão a que chego é que os bancos centrais são estruturas de poder que se têm pautado por uma política claramente favorável aos muito ricos, os multibilionários, embora tenham o discurso de cuidar da economia para o bem do maior número. 

Isto não pode surpreender alguém convicto da natureza depredadora, parasitária do capitalismo de hoje, com as enormes disparidades de riqueza, logo de poder. 

O diálogo AQUI entre Slavoj Zizek e Yanis Varoufakis demonstra-o: Não há capitalismo, no sentido clássico. Há um domínio dos muito poderosos donos de plataformas (Facebook, Amazon, Google, etc.) que possuem literalmente o campo todo, o chamado «mercado». Este deixou de ser propriamente um mercado, no sentido clássico do termo. Por isso, Varoufakis utiliza a expressão «tecno-feudalismo», outros usam outras expressões, mas vem a dar no mesmo: A realidade é que estamos numa nova era, onde nada é favorável aos pequenos capitalistas e aos trabalhadores, onde tudo está nas mãos de corporações gigantes, monopólios ou oligopólios, que tudo controlam.