Lenine dizia... mais ou menos, isto: «Há décadas em que não se passa nada de muito relevante; e depois, surgem períodos em que os acontecimentos se precipitam, dando a sensação de que se viveram décadas, durante apenas uns meses ou semanas.»
Esta citação pareceu-me adequada para abrir uma reflexão sobre a mudança e - em particular - a mudança que temos experimentado, nos últimos anos. Temos a sensação de que a História se acelerou, de que grandes transformações ocorreram, de que se passam muitas coisas insuspeitas do grande público e mesmo de muitos dos peritos, que têm o potencial de transformar a nossa relação com o mundo, com o Estado, com a sociedade, com a economia, etc.
Seria muito interessante avaliar as diversas expetativas do que seria o século presente, enunciadas por eminentes intelectuais ou políticos no século anterior (século XX): Muitas delas revelaram-se muito distantes do real, quando confrontadas com os acontecimentos da história recente. Mas este exercício não se destinaria a fazer «chacota» dessas pessoas (nós também, tínhamos perspetivas que se revelaram falsas!), nem a nos mostrarmos mais clarividentes, que os nossos contemporâneos.
Esse exercício mental seria um bom «remédio» para as pessoas (de quaisquer setores do espectro político-ideológico), que estão cheias de certezas, capazes de dar resposta a tudo, etc. Seria, afinal, um exercício de humildade, se efetuado honestamente. Obrigava-nos a ir aos fatores fundamentais e analisar, não a partir dos nossos desejos, ou das nossas construções ideológicas, mas a partir da realidade.
Veio-me à memória outra citação de Lenine; ele dizia: «Os factos são teimosos!».
Não creio estar errado, se disser que a economia real deve prevalecer - numa visão de conjunto - sobre a economia financeirizada.
Com efeito, as necessidades globais em alimentação, energia e matérias-primas, sobrepõem-se (muito visivelmente, agora) aos movimentos erráticos e caóticos do dinheiro especulativo. Porém, este facto não é particular à época atual; sempre foi assim! Mas, quando existia bonança ou, quando o abastecimento dos mercados em relação a esses produtos (alimentos, energia, matérias-primas), estava a funcionar normalmente, a atenção das pessoas era puxada para a componente especulativa da economia, ou seja, para a ganância do lucro, de «fazer dinheiro» com dinheiro.
Se nós tomarmos um bocado de recuo, agora, neste momento particularmente conturbado da cena internacional, com as repercussões enormes que se estendem em todos os setores da economia, com particular incidência nos aspetos mais vitais, o que vemos? Vemos que a globalização capitalista, a engenharia económica e financeira, para aumentar as mais-valias da exploração do trabalho, com a exportação de fábricas e outros meios para os países do «Terceiro Mundo», onde não havia regulação séria do mercado de trabalho e onde era possível as multinacionais aí instaladas obterem um rendimento muitas vezes superior ao obtido na América do Norte ou na Europa, essa globalização ruiu.
Ela, globalização, ruiu e os países em «piores lençóis» são exatamente aqueles cujas burguesias mais beneficiaram dessa exploração acrescida, durante a fase de expansão e internacionalização mais agressivas do capital.
As pessoas ainda não perceberam, porque continuam embaladas na ideologia neocolonial, ou no consumismo acéfalo, mas o facto é que as componentes tecnológicas essenciais estão a ser fabricadas pelas nações e pessoas que elas (no fundo) desprezaram. Estas pessoas são técnicos altamente qualificados, engenheiros, investigadores, que enxameiam muitas das instituições de ponta do orgulhoso «ocidente» e, sem elas, simplesmente não haveria capacidade humana para realizar o trabalho de investigação e desenvolvimento, nos vários setores. Eu sei isso muito bem, pois tenho acompanhado na minha área (biologia molecular e genética) essa progressão, mas tenho informação segura de que se passa o mesmo, noutras áreas muito diferentes, mas igualmente ditas «de ponta».
Assim, o próprio desenvolvimento da economia financeirizada, o capitalismo na fase senescente, veio dar - a ele próprio - a machadada final.
O efeito político e geoestratégico disto é o que estamos a presenciar neste ano de 2022. Uma separação radical em dois mundos, o eixo Russo-Chinês, incluindo a Índia e muitos parceiros da Ásia Central e do Sul, além de uma ampla gama de acordos com África, América Latina e mesmo em setores da Europa. Por outro, um mundo dito Ocidental, que está mais ou menos limitado à Europa da UE, ao Reino Unido, aos EUA e aos anglófonos Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Neste bloco, os EUA reinam como potência hegemónica, ditando o que se deve ou não fazer e que posições tomar, até ao pormenor.
Atrevo-me a dizer que não haverá mais globalização liderada pelo «Ocidente», pois ela foi propositadamente deitada abaixo, tendo os estrategas norte-americanos decidido que era melhor assim para o seu poderio. Esta tendência já se afirmara claramente no consulado de Donald Trump. Agora, apenas está a ser levada ao extremo pelos neocons que decidem a política em Washington.
Segundo esta visão, é melhor ter uma mão forte, segurando um conjunto de países-vassalos (os da NATO e sua réplica no Pacífico), ao Império ter que se confrontar em permanência com competição, resultante da ascensão económica e geoestratégica dos que não se conformam com sua ditadura. Eles chamam isso: «Rules based order».
Isto serve também, ao fim e ao cabo, os interesses geoestratégicos da Rússia e da China, que estão apostadas ambas em maximizar a conectividade entre si e com os países da Organização de Cooperação de Xangai.
No meio, ficam nações falidas, destruídas pela guerra : a Ucrânia é a última de tais nações, mas não devemos esquecer a Líbia, o Afeganistão, o Iraque, o Iémen, e outras... Cada uma dessas nações terá de se reconstruir após guerras cruéis, o que poderá corresponder a decénios.
Nunca a história volta atrás; O que aconteceu num dado período, deixa um traço indelével que se prolonga até ao presente. Sem inteligência da História, dum modo aprofundado, somos conduzidos por clichés, por preconceitos, por ideologias de pacotilha.
Nunca é fácil compreender o mundo. Ele não se rege por qualquer «lei», ao contrário do que Marx e os marxistas criam; o mundo dos homens, das sociedades, das civilizações é caótico, ou seja, não é possível se aplicar qualquer «lei, regra ou princípio».
É preciso compreender isto e compreender que o mundo natural - o mundo das necessidades energéticas, incluindo alimentação, que é afinal energia para o nosso corpo - esse obedece a certas constrições, que não se podem eliminar: as leis da termodinâmica, as leis da vida, das leis genéticas até às leis que governam as populações; as leis da ecologia, dos sistemas renováveis e dos recursos finitos, etc.
As pessoas que têm formação em biologia ou áreas conexas, têm natural propensão em ver o mundo deste modo: Este modo de ver, se não for transformado numa pseudo- ciência, ou numa forma atualizada da ideologia cientista dos séculos XIX e XX, pode ser um instrumento muito mais fértil, quer para a prospetiva, quer para a planificação flexível.
Afinal, o melhor modelo é aquele que passou «o teste» de Éons de evolução biológica: Compreender a fundo estes mecanismos não implica compreender tudo o que respeita ao mundo dos humanos e suas sociedades, mas ajuda a colocar a economia, a sociologia e política, em perspetiva.