Fazer cócegas na cauda do dragão, poderia ser o mote da viagem taiwanesa de Nancy Pelosi. Porém, o que está em causa, é muitíssimo mais que causar irritação no dragão chinês, ou estimular um sentimento independentista no povo e na casta governante de Taiwan. O que está em causa, é o completar da rutura entre o mundo «Atlântico» e o mundo «Euroasiático».
Exercícios de bloqueio e de preparação para invasão de Taiwan, pelo PLA (People's Liberation Army) da China Popular, segundo o «Global Times» de 03 de Agosto 2022.
Durante os anos da Guerra-Fria, que durou de 1946 até 1991, houve episódios de guerra muito quente, como a Coreia e o Vietname. Além destas e outras guerras «por procuração», houve a crise dos misseis de Cuba. Ela poderia ter desencadeado o holocausto nuclear, caso as direções soviética e americana não tivessem tido o bom senso de recuar. Com efeito, os americanos tinham colocado secretamente mísseis com cargas nucleares na Turquia (membro da NATO), às fronteiras da URSS e Nikita Khrushchov utilizou a ilha de Cuba com o governo pró-soviético de Fidel Castro para responder da mesma moeda.
Apesar da total incompatibilidade ideológica, quer Nixon, quer Reagan, fizeram avanços na coexistência pacífica com a União Soviética, certos de que não haveria vencedor numa confrontação nuclear entre os dois superpoderes. Neste pressuposto, as políticas relativas à potência nuclear opositora, foram sempre medidas e avaliadas ao milímetro pelos estrategas e políticos em ambas as superpotências.
Quando se deu a implosão da URSS, em 1991, a política de Washington modificou-se, com a forte influência exercida pelos neo- conservadores («neocons»), dirigentes e membros da alta administração, que tinham uma doutrina (doutrina dita Wolfowitz) que postulava que os EUA se destinavam a ser a primeira e única potência mundial, durante o século vindouro (século XXI) e que para isso, não podiam permitir que outra potência chegasse ao ponto de poder disputar a hegemonia dos EUA, quer económica, quer militar. Esta doutrina teve o seu triunfo com a «eleição» de George W. Bush, que integrava o grupo. Ele teve, na sua presidência, como principais conselheiros e membros da administração, muitos «neo-cons».
Na sequência destas mudanças em Washington e na ascensão (imprevista) de um poder forte em Moscovo (Vladimir Putin), as doutrinas de defesa nos EUA foram alteradas, sendo admitido que podia haver guerra nuclear limitada, ou um ataque de surpresa num dos lados, desfazendo as possibilidades de contra-ataque da outra potência. Este postulado foi tornado doutrina de defesa oficial do Pentágono, nos primeiros anos do século XXI. No entanto, tal visão era tida como absurda e perigosa, há alguns anos atrás. Com efeito, qualquer dos lados iria guardar suficiente poder destruidor e contra-atacar, mesmo com um ataque de surpresa que destruísse muitas das instalações de ogivas nucleares. Basta pensar na frota de submarinos portadores de mísseis nucleares, que navegam discretamente e que não são detetáveis pelos sistemas de vigilância satélite de qualquer um dos lados. Bastaria alguns desses submarinos subsistirem, para desencadear um ataque devastador contra os principais centros políticos e militares do inimigo.
A guerra nuclear continua, assim, a ser aquela modalidade que nenhum dos lados deveria ser tentado a desencadear, pois as consequências nunca são previsíveis e a possibilidade de riposta - do lado oposto - nunca será de excluir. Além do mais, mesmo uma guerra nuclear que fosse completamente vitoriosa por uns, sem possibilidade de retaliação pelos outros (o que é falso, como vimos), esta «vitória» não deixaria aos sobreviventes uma Terra onde valesse a pena viver. Os efeitos de longo prazo dum inverno nuclear (fome, por ausência prolongada de fotossíntese) e a contaminação radiativa generalizada e prolongada, inviabilizando a agricultura em todo o planeta, a multiplicação de cancros e doenças resultantes da perda de imunidade dos indivíduos, fariam com que fosse mais desejável morrer-se logo, no decorrer da explosão nuclear, do que sobreviver e morrer-se aos poucos, num cenário de inferno total.
Como tenho escrito há vários anos, a potência em decadência acelerada, que é o império USA e os seus vassalos, tem sofrido uma sucessão de lideranças, cada qual mais incompetente que a anterior, com um risco incalculável para o nosso Planeta: O de estarem ao comando duma potência nuclear de primeiro plano e possuindo bases militares espalhadas por todo o lado.
Face a esta situação, a Rússia tem desenvolvido armas estratégicas híper- sónicas, mísseis poderosos mas indetetáveis pelos sistemas de radar americanos. As armas referidas foram testadas em guerras, não apenas em exercícios. Foram usadas tanto na guerra da Síria, como na Ucrânia. Os peritos da NATO puderam constatar que esses mísseis podiam ser disparados a grande distância e teleguiados - com uma precisão inédita - até ao alvo.
Ora, quanto ao incidente Pelosi-Taiwan (que, espero, não vá além duma exibição de força), o importante, em termos de estratégia mundial, é aquilo que vai catalisar: A consolidação da aliança entre Moscovo e Pequim. Não é de pouca importância tornar-se uma aliança formal. Porque isto equivale a dizer que, quem efetuar um ataque contra um deles, contará com a riposta do outro. É este o «último feito geoestratégico» da administração Biden, responsável por outros feitos do Império, nestes últimos tempos, nos quais incluo:
- O Afeganistão, chave para o controlo da Ásia Central, logo do continente euro-asiático, a «Ilha do Mundo» segundo Mackinder.
- A Síria, nada do que foi tentado desde a administração Obama, quando Biden era vice-presidente, se pôde consolidar. Em contraste, a influência e prestígio do Irão cresceram na Síria e na região.
- O Iraque, donde os americanos estão basicamente excluídos e incapazes de influir, sendo o Iraque, agora, um bastião do Islão Xiita.
- A Ucrânia, o que pode surpreender, porém, veja-se que nenhuma das manobras tentadas surtiu efeito. A guerra está perdida para o governo ucraniano: Este, só não se senta à mesa para negociar um cessar-fogo, porque está pressionado para não o fazer, pelos Anglo-Americanos. A tragédia das pessoas, da sociedade e até mesmo a perda da independência da Ucrânia, não importam aos imperialistas. Eles quiseram que esta guerra acontecesse com o objetivo de criar um «novo Afeganistão às portas da Rússia», arrastados pela sua húbris, numa visão totalmente irrealista em relação às forças do lado russo. As sanções económicas à Rússia tiveram o efeito oposto ao que o «Ocidente» contava.
Nada do que americanos e aliados previram deu certo. Apenas conseguem espalhar o caos. É o «Império do Caos». [Refugiados sírios regressam a sua cidade, devastada pela guerra]
Tudo aquilo de que os países «Ocidentais» se orgulhavam, desde o nível de vida dos cidadãos, suas proteções sociais, preocupações ambientais, respeito pelos direitos humanos, etc. tudo isto se desmoronou, tudo isto se revela como ilusão, nem o mais ingénuo observador pode nela cair. O que se desmorona agora, não é apenas um conjunto de governos, forças políticas, correntes ideológicas dominantes. Daqui por diante, a própria consciência das pessoas estará cada vez mais desperta e não será possível readormecê-la tão depressa. Não existe maior despertador do que a fome, quando ela aperta, quando há escassez de todas as coisas que antes eram dadas por adquiridas, pela generalidade da população.
Nós ainda estamos na fase inicial duma longa depressão, que pode durar décadas. Não se pense que estou a tomar os «meus desejos pela realidade», pois esta visão, de uma longa etapa de depressão, é partilhada por autores pró-capitalistas conhecidos, como Jim Rickards, entre outros.
A minha visão é constante, desde há uns cinco ou mais anos: Os grandes poderes capitalistas, vendo que as ambições globalistas de hegemonia mundial do Império não se podem realizar, decidiram desfazer a globalização, mas conservando o domínio férreo sobre o mundo dito «Ocidental», criando portanto uma clivagem artificial, uma nova guerra fria, ainda mais profunda que a anterior. Assim, conservariam o seu domínio sobre uma parte do Mundo. Quanto à outra, aquela que escaparia ao seu domínio, seria objeto de fricção constante, de sanções económicas, de guerras de atrito, de aproximação e afastamento, de alianças efémeras e oportunistas, para arrancar os mais frágeis da órbita adversária. Na realidade, não existe um projeto civilizacional autónomo, não existe um conjunto de valores que possam juntar os governos das nações díspares, que se encontram sob a tutela da hegemonia anglo-americana. Trata-se, para eles, de manter o domínio imperial, o mais próximo possível em extensão, do que foi alcançado pelo Império britânico no século XIX, não para benefício dos povos, mas da elite aristocrática.
Como tudo isto carece da mínima coerência, de qualquer moral ou ética, este projeto de «tardo-capitalismo» tem, necessariamente, de ser cada vez mais autoritário, despindo-se rapidamente dos trajes de humanismo, defesa dos direitos humanos, justiça social, etc. Evidentemente, estes permanecerão «pendurados» nas constituições e leis, e nos discursos inflamados dos períodos pré-eleitorais, mas não mais do que isso. De resto, será um estendal de instrumentos de repressão, servindo-se das técnicas de vigilância generalizada e as moedas digitais (obrigatórias), emitidas por governos e bancos centrais. Teremos uma sociedade totalitária idêntica, no essencial, aos regimes recordistas em violações dos direitos humanos.
Espero que estes planos fracassem, que surja uma onda revolucionária, embora esta minha esperança tenha pouco fundamento, por enquanto: O meu fundamento, é constatar que a vontade de liberdade e igualdade, de justiça e fraternidade, têm existido nas mais diversas sociedades e indivíduos, na História. E não acredito que satanistas e malthusianos, por muito ricos e poderosos que sejam, consigam transformar o humano, impondo o seu «transumanismo», que afinal é somente anti-humanismo.