A armadilha da finança, com computador e isco de dólares gratuitos
Quando estamos a presenciar, nas bolsas, um movimento em alta (mercado altista ou «bull market»), na realidade, estamos a presenciar um movimento de descida do dólar e das restantes divisas ocidentais. O paradoxo é fácil de explicar: Sabemos que o dinheiro «fiat», não é mais do que crédito, do que dívida. Essa dívida é tanto mais procurada quanto os países emissores da referida dívida sejam considerados seguros, no que respeita a assumirem os seus compromissos. Ora, ninguém pode ignorar que os EUA e Europa estão a viver, há muito tempo, numa bolha artificial causada pelos respetivos bancos centrais. O volume da dívida é avassalador e, essencialmente, incobrável: Considera-se ser incobrável, quando atinge valores da ordem de 100% do PIB. Hoje, no Ocidente, existem vários Estados endividados a 130% ou mais do PIB. As obrigações soberanas de ambos os lados do Atlântico têm de subir, pois há cada vez menos investidores (são sobretudo institucionais: bancos, fundos de pensões, hedge funds) que desejem tomar essa dívida dos Estados. Os Estados têm pois que subir os juros oferecidos, sem o que não conseguirão compradores para sua dívida.
Não é a quantidade irrisória do aumento da taxa de juro de referência da FED (ou do ECB) que vai mudar algo substancial. Na realidade, o aumento dos juros de referência dos bancos centrais segue sempre a tendência altista dos juros no mercado geral de obrigações (que inclui as obrigações de empresas).
Estamos perante um dilema impossível de resolução. Porque, sendo a dívida pública (e privada) tão elevada, havendo obrigação de inscrever nas contas públicas dos Estados os juros das obrigações que emitiram, é evidente que se chegou ao ponto onde já não se pode manter esta situação com o simples «renovo» («roulement») da dívida, ou seja, pagar dívidas que chegam a termo, com empréstimos frescamente obtidos.
Existe uma acumulação de dívida. Ela vai subindo de forma praticamente contínua, dada a degradação da situação económica em geral (crise devida à desindustrialização no Ocidente). Além disso, há circunstâncias particulares (crise do COVID, guerra na Ucrânia e as sanções contra a Rússia) que surgem, fazendo com que os governos despejem a rodos mais e mais euros ou dólares. Com isso, estão a adiar, no melhor dos casos (e podem até apressar), o colapso inscrito não «nos astros», mas nos factos económicos puros e duros. Nunca uma crise da dívida poderá ser resolvida com a acumulação de mais dívida. Se o valor de uma moeda é realmente correspondente àquilo que uma determinada unidade dessa mesma moeda consegue comprar, então o dólar e todas as moedas «fiat» existentes têm perdido valor. A inflação não deve ser vista como fenómeno de «aumento dos preços» das mercadorias, mas como perda da capacidade aquisitiva da divisa. Assim, os que têm um rendimento fixo - sejam assalariados, ou pensionistas - vão perdendo o seu poder de compra de maneira acelerada, pois - geralmente - não possuem suficiente força para obrigar os patrões a fazer os ajustamentos devidos aos montantes de seus salários e pensões. Mas, para o Estado e para os grandes capitalistas que são, em geral, grandes devedores, a inflação é uma benesse pois, graças a ela, o que realmente terão de pagar, quer em juros, quer o montante próprio da dívida, vai representar cada vez menos em valor real, até se tornar irrisório. Em todos os casos, as divisas fiat vão sempre diminuindo de valor: umas vezes, de modo suave e dificilmente quantificável e outras, de modo brusco, aquando de crises económicas (como agora).
Mas, no Ocidente, a classe política e os governos estão exclusivamente interessados no curto prazo. Eles fazem o raciocínio seguinte:
- os eleitores têm de estar contentes e satisfeitos no curto prazo;
- assim, irão votar em nós e manter-nos no poder nas próximas eleições;
- no curto prazo, a injeção de dinheiro na «economia» (= nos bancos e nas bolsas) irá criar uma «sensação de crescimento»;
- o estado real da economia deve ser camuflado, para evitar o descontentamento popular;
- os défices das contas públicas vão-se aprofundando, mas a dívida só será paga pelas gerações futuras, quando nós tivermos morrido, ou quando estivermos reformados.
A «economia da dívida» gera um enorme travão ao crescimento autêntico e induz à estagnação, porque implica um desinvestimento no que seja inovador e produtivo. O que os Estados têm feito, essencialmente, é uma gestão cosmética das finanças, para poderem agradar aos eleitores. Claro que isto também agrada muito aos grandes capitalistas financeiros, que sabem obter vantagens da situação, mesmo quando se lamentam na comunicação social.
Assim, entrámos num período de «stagflation» (inflação com estagnação), ou seja, temos o pior dos dois mundos. Porém, esta situação não se irá manter por muito tempo. É praticamente uma certeza, que se irá entrar - não a longo prazo - numa espiral hiperinflacionária. A situação da economia mundial é não previsível, no curto prazo; mas, nas suas grandes linhas, há coisas que são certas. Considera a seguinte metáfora: Não há maneira de sabermos exatamente o trajeto duma bola, quando atirada ao ar; mas, todos os trajetos possíveis estão condicionados pela gravidade e, portanto, sabemos que a bola irá acabar por cair no chão.
O mundo financeiro não é nada sem a economia real. A finança é uma espécie de parasita da economia real e consegue sugar muita energia e produtividade, causando prejuízo à sociedade, em geral, aos que trabalham, que investem o seu esforço e criatividade.
Porém, as pessoas são atraídas para o casino das bolsas, para o lucro sem esforço e sem contribuir com algo (além do dinheiro, que é somente um símbolo). Como todo o mundo da finança, as bolsas, as atividades especulativas, não criam - em si mesmas - nem «um grama de valor».
Então, de onde vêm os grandes lucros gerados? Eles têm de vir de algum lado: por um lado, foram arrancados a muitos ingénuos que foram atraídos pelo casino bolsista e ficaram depenados. Mas, a maior quantidade de valor foi desviada, roubada do nosso bolso e sob os nossos olhos:
- Desde as isenções fiscais aos muito ricos e às grandes empresas, até às «privatizações», ou seja, o roubo organizado ao património das empresas públicas, pago durante gerações com os nossos impostos. As «joias da coroa» do setor público, são empresas do Estado, que dão lucro garantido ou que, potencialmente, poderão fazê-lo. O Estado fica com as empresas não rentáveis. Mesmo o governo mais favorável aos interesses privados aceita isto. Compreende que é essencial manter a funcionar esses serviços, para a própria sobrevivência da sociedade e do Estado. O interesse dos capitalistas numa privatização deste tipo de empresa estatal é muito baixo: Só pode ser estimulado com a garantia de benesses constantes, da parte do Estado, que assim torna «rentáveis», empresas que não têm, ou deixaram de ter rentabilidade. Pense-se no caso dos caminhos-de-ferro: A rede ferroviária, pouco ou nada rentável, é dificilmente privatizável. Mesmo quando há privatização, é frequente ser parcial. Os carris continuam a pertencer a uma empresa estatal, enquanto os comboios, incluindo os de alta velocidade, são privados ou pertencem a parcerias público-privadas.
Mas, para voltar ao tema deste artigo: A finança está interessada em extrair valores seguros de empresas dos setores industriais, estatais, ou do imobiliário*. Ela sabe quais são os investimentos que terão um bom valor, após o «Reset», ou seja, após a queda programada das moedas que conhecemos, a sua colocação fora de circulação e a instauração da moeda digital sob controlo dos bancos centrais. Para se capitalizar ao máximo, a alta finança tem atraído os capitais pertencentes a pessoas da classe média, que irão perder o seu património, com a vã esperança de se tornarem «ricas». O jogo é portanto de predação, só que esta não se traduz em guerras diretas (até agora...) entre imperialistas; haverá, quanto muito, guerras por procuração. Sob capa da crise financeira e das outras crises, trata-se duma guerra aos pobres: «Não terás nada e serás feliz». Mas, o que Klaus Schwab e seus epígonos não nos dizem, é que os super-ricos, caso triunfe o tal «Great Reset», irão ficar com tudo. Tendo em conta esta tomada de controlo económica, pode-se facilmente prever quais os seus reflexos políticos: Seria o advento dum totalitarismo planetário. Felizmente, o fiasco do neoliberalismo** é cada vez mais notório; não consegue mobilizar o entusiasmo dos povos. Mas, como os muito ricos malthusianos têm grande poder de influência, graças à media e aos governos (que eles compraram), não se deve «baixar a guarda», mas expor o mais possível as manobras desta oligarquia para que ela fique cada vez mais isolada.
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(*) Não é por acaso que os fundos financeiros Blackrock e Vanguard (gigantes mundiais) se tornaram nos maiores proprietários de imobiliário para arrendamento, nos EUA. Nem que Bill Gates se tenha (recentemente) transformado no maior proprietário de terrenos agrícolas nos EUA.
(**) O lema do neoliberalismo é o seguinte: «privatização dos lucros, socialização dos prejuízos»