Uma economia natural ou inspirada diretamente na Natureza, como começar a pensá-la, a pô-la em prática?
- A economia tem sido associada com o dinheiro, nas nossas sociedades. No entanto, o dinheiro é uma invenção «recente». Data muito provavelmente das primeiras civilizações agrárias (sumérias etc.). Nestas, foi um instrumento de contabilização de propriedade (por exemplo os animais duma manada) ou relacionadas com o imposto devido ao rei (por exemplo, um terreno correspondia, em imposto, a «X» alqueires de trigo).
Mas, antes disso, havia sociedades humanas, havia trocas no interior e exterior nos grupos, clãs e tribos. Com certeza que eles sabiam contar. As gravuras rupestres mostram uma profusão de animais, mas também muitas figuras abstratas, como pontos e traços, cujo significado não é possível restituir, mas que podem ter algo a ver com um sistema de contagem e numeração. A função de contabilidade não podia ser totalmente alheia aos humanos. Mas, as necessidades dessas épocas pré-agricultura não eram as mesmas das civilizações agrárias. As pessoas partilhavam os produtos da caça e da recoleta. Não havia possibilidade de fazer um stock de comida por longo tempo. O alimento que não podia ser consumido, estragava-se e tornava-se impróprio para consumo.
Fazendo um grande salto, vemos que a característica de nossas economias atuais é a superabundância de objetos, os quais não têm, muitas vezes, qualquer utilidade; ou, em que sua utilidade é apenas significativa dentro do presente sistema de códigos e convenções. Grande parte das coisas com valor de uso concreto, sejam utensílios ou produtos consumíveis, não estão associadas a prestígio social. Aqueles, não são considerados objetos com «valor», no complexo mental de alienação, de portadores de «status» para quem os possui, ou consome.
A acumulação foi um reflexo da necessidade, durante milénios, nas sociedades em que havia escassez crónica. Nas sociedades da abundância, a acumulação é uma patologia. As pessoas ficam literalmente afogadas em objetos, têm uma visão do mundo associada à posse desses objetos, nem têm outra forma de avaliar - de dar valor - as relações sociais. A própria sexualidade tornou-se assunto de posse, não é troca igual, como seria de esperar; muitas vezes assume caráter violento, opressivo, de domínio.
A economia restaurada seria um retorno saudável ao que realmente nos ajuda a viver, a desempenhar nossas funções, a ter real conforto e a usufruir do belo.
Alguns autores empenharam-se em calcular a energia consumida, por pessoa, na nossa civilização tecnológica. Uma pessoa, em média, teria em permanência ao seu dispor máquinas, aparelhos, veículos e energia para os operar, no equivalente a cerca de 200 «escravos energéticos» e isto, sem exagero nenhum. As pessoas médias de hoje, teriam acesso ao poder e ao conforto, numa escala semelhante aos grandes proprietários de escravos (e de terras) da antiguidade.
Claro que este devorar de energia e de matérias-primas, é destruidor. Ele não pode ser magicamente «renovável», de modo nenhum. Há depredação, ou seja, não existe maneira de regenerar o ecossistema empobrecido por tudo aquilo que os humanos fazem «normalmente». Evoco aqui o papel deletério da agricultura industrial sobre a capacidade de regeneração dos ecossistemas agrícolas. Ou a impossibilidade de reciclar os minerais essenciais para o funcionamento dos telemóveis (lixo que se acumula), extraídos à custa de autêntico trabalho escravo, em minas situadas nos países mais pobres do planeta. Os inúmeros exemplos de depredação incluem a poluição dos oceanos e da sua vida, indispensáveis à sustentabilidade do planeta e da espécie humana.
Tudo isto resulta duma certa visão da Natureza, como um «recurso» que se pode «explorar», que é «lícito» usar como nos apetecer, desde que o Estado, a Lei, reconheçam a nossa propriedade sobre essas coisas. A propriedade é vista como direito absoluto sobre seres vivos e objetos inanimados. Pode ela ser individual ou coletiva: Tanto num, como noutro caso, o resultado prático é o mesmo. A razão disto, é que são os sistemas políticos que regulam o acesso à propriedade. As normas são decretadas por homens, exclusivamente. Não são, nem jamais foram, um «mandato divino».
A abolição deste estado de coisas não é possível, senão com a mudança real de perspetiva.
Não vamos esperar mais uns milénios, até que as mentalidades mudem. Nessa altura, já será tarde demais, já demasiada degradação terá ocorrido. Mas, podem-se construir, agora, alternativas reais e não ficções de comunas hippies, ou outros devaneios de classes burguesas enfadadas. É muito triste vermos, hoje, que os esforços e sonhos dos jovens sejam «aspirados», com falsas lutas pela «sustentabilidade climática». Um aspeto elementar da estratégia ecológica verdadeira, é que a fragmentação das lutas ambientais e sua separação das lutas sociais, não pode servir senão para as transviar.
A transformação da sociedade por meios pacíficos, implica consciência, outra forma como a nossa relação à Natureza é pensada e sentida. Também necessita duma compreensão inteligente do que dizem as religiões e sistemas de filosofia sobre o assunto. Quem estiver consciente, tenha compreensão e compromisso com aqueles valores, pode encontrar e construir em conjunto com outros, uma comunidade intencional.
O radical divórcio do espírito humano em relação ao mundo natural, aconteceu como «avatar» da ciência mecânica triunfante, no período 1700 - 1900. O materialismo mecanicista, o deísmo e a «ideologia do progresso», estiveram associados à colonização. Esta já tinha começado muito antes, porém, nos séculos XVIII e XIX alcançou o cume, como sistema de exploração colonial e esclavagismo.
É evidente que muitas coisas de grande valor, descobertas científicas, obras literárias, artes, filosofias, aconteceram nesse período. Não seremos nós a «deitar fora o bebé, com a água do banho». Pelo contrário, temos de nos apropriar e assumir que os valores científicos, filosóficos, estéticos, foram produtos de determinadas condições sociais de exploração, por mais deploráveis que tenham sido.
Por isso mesmo, os ditos produtos são pertença de todos; não dos poucos descendentes das aristocracias de então, mas dos descendentes dos explorados, que somos quase todos: Ou seja, a educação real é emancipatória, não é um exercício de exclusão, de destruição, de obscurantismo.
Podemos nos emancipar da visão de acumulação de riqueza, pela alternativa clara em favor das trocas diretas e horizontais. Pela não conivência com a mercantilização da vida, seja a vida humana, seja a de quaisquer espécies. Mas, sobretudo, tentando aproximar (fugindo dos fundamentalismos idiotas) a nossa visão, o nosso ideal, do concreto, do prático. Alguns, chamam a isso «utopias»; eu chamo «utopias realizadas e desprezadas». Voltaremos a ver as coisas da Natureza com respeito, teremos de novo como ideal de vida, não acumular os bens e riquezas, mas a sua partilha com os outros.
Esta forma de ver e de organizar a vida, está em contradição apenas com a sociedade mercantil, com a sociedade onde o ter anula o ser. Isto corresponde somente a uma pequena camada superficial da nossa história enquanto espécie, como produtos da biologia e evolução, que se medem em biliões de anos.
A nossa espécie tem de ser capaz de perceber o que eu acima esbocei. Ela não pode estar refém de sistemas de poder, de imposições autoritárias, do desprezo pelas capacidades limitadas de regeneração dos sistemas naturais. A única via possível, inteligente e ética é de sermos guardiães (não proprietários gananciosos), tanto do mundo natural, como do património civilizacional acumulado. O corolário disto, é não aceitar que a nossa vida esteja sob o mando de psicopatas, que só pensam em termos de poder, de posse, acumulação de riqueza, por cima e em prejuízo de todos os outros.