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terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

GOYA E O SONHO DA RAZÃO, REVISITADOS

 


As pessoas são alimentadas, ao longo da vida, por narrativas lineares. A ideia de que as sociedades e a tecnologia vão ser «mais isto ou aquilo». É muito divertido observar as publicações de magazines populares, que estimavam há cem anos atrás (ou menos), «como seria o futuro»: É um lugar-comum verem-se automóveis que também voavam, ou pessoas a viverem em apartamentos cheios de gadgets, embora as coisas que eram imaginadas, há várias dezenas de anos, como fazendo parte dos confortos da «modernidade», ou nunca se concretizaram ou, se vieram a existir, são de uma forma substancialmente diferente.

Sociologicamente, também, as projeções do futuro são lineares; há o alargamento - a quase generalização - do modo de vida do tipo «classe média», uma população de engenheiros, doutores, cientistas, profissões de elevado prestígio. É costume as pessoas projetarem os seus desejos no futuro. Mas é singular haver tão fraca imaginação, uma incapacidade, incluindo nos «futurologistas», em decifrar no presente aquilo que serão as linhas de força da próxima década, já para não falar do próximo século. 

As pessoas estão muito cientes de «verdades» que lhes foram transmitidas por inúmeros canais, a maior parte, sem relação nenhuma com a realidade das coisas. Mas, mesmo quando fazem um esforço genuíno para projetar as tendências observáveis no presente em direção ao futuro, incluindo o mais próximo, a regra é errarem redondamente. 

Assim, deveríamos estar completamente abertos a todos os campos de hipóteses, aquelas que conseguimos vislumbrar e mais ainda aquelas de que não fazemos a mínima ideia, no presente. 

Por vezes, tais  são as transformações, que as pessoas ficam completamente desnorteadas. A nossa mente é feita para apanhar a tendência dominante, projeta-la no futuro e construir a realidade a partir destas projeções. 

Mas, os fenómenos complexos ultrapassam - em muito - as capacidades de os equacionar, mesmo que sejamos «génios». Os fenómenos não se submetem a uma lógica linear. Linearidade ou «lei estatística» é o que a nossa mente gostaria que fosse. O nosso inconsciente está sempre a procurar a conformidade, porque é algo que nos tranquiliza, nos dá uma sensação (ilusória) de continuidade. Não somos feitos para incorporar o  insólito, o estranho, o irracional no nosso mundo. Assim, estamos com frequência de pé atrás face à novidade, sobretudo se tal novidade vem contradizer as «certezas», que nós julgávamos eternas.

Os ilusionistas, os demagogos, servem-se sistematicamente do efeito de «normalidade», que está tão arreigado no nosso psiquismo. Este efeito, é uma das principais fontes de equívocos, de avaliação errónea dos dados ao nosso dispor. 

Os sentidos podem ser facilmente «iludidos», mas note-se que eles não são a fonte da ilusão, do equívoco, nem tão pouco, a natureza exterior do que eles veiculam: Afinal, as ilusões ditas dos «sentidos», são antes ilusões da interpretação cerebral das imagens ou sons, etc. que nos vêm pelos sentidos.  Mesmo a imagem que seja «ambígua» à partida, não o será, de verdade: 

- Somos nós que construímos, com aquilo que recebemos dos sentidos, uma certa interpretação ou a descartamos, no momento seguinte, por outra, que nos pareça igualmente coerente. É sempre a reconstrução da imagem que fazemos no cérebro, que  desencadeia a interpretação ambígua. A imagem em si mesma, as manchas de cor e de sombra, os contornos, etc.,  são o que são. Não mudam: É o nosso dispositivo cerebral que é tomado pela interpretação ambígua. 

Porque razão continuamos iludidos, sabendo como é fácil nos ilusionarmos, sabendo também que as ilusões ou miragens, resultam de certa visão que nós próprios damos às coisas, não das coisas em si mesmas. 

Se fizermos uma reflexão profunda sobre a falibilidade dos sentidos e dos juízos que (conscientemente, ou não), fazemos a partir destes, é possível atingir o primeiro grau da sabedoria: 

- A nossa própria psique é que nos engana, na maioria das vezes. Não fazemos a análise adequada das informações que nos chegam pelos sentidos. Assim, somos nós próprios a fonte os enganos.

Se extrapolarmos para o domínio da vida política, económica, etc. verificamos que evoluímos como crianças que se enganam a si mesmas, julgando ver o objeto real no seu mero reflexo, estando convencidas de que a ausência de algo, significa que esse algo não exista realmente, etc.

Temos de reconhecer que, por muito «racionais» que nos consideremos, a maioria das pessoas vive fora da realidade. A realidade é reduzida à imagem distorcida, limitada da mesma. 

Por isso, não considero que exista um fosso intransponível entre o «patológico» e o «normal». De facto, as pessoas estão sempre a tomar os seus desejos por realidade. E quanto à pessoa doente mental: Está ela sempre «fora da realidade»? Mas o que é a realidade? Eu  tenho impressão que, em vez da realidade inteira, é «entronizada» a ideia comum que as pessoas têm da realidade. 

Pode uma mente genial ver aquilo que as pessoas vulgares não conseguem ver; pode também uma pessoa perturbada mentalmente ver algo que as outras não vêm. Mas, quem decide o que é lúcido e não lúcido? Realmente, é muito difícil estabelecer a fronteira entre o normal e o patológico. A História mostra-nos, vezes sem conta, que pessoas, perfeitamente ajuizadas, emitiram hipóteses, ou teorias, que foram descartadas como extravagantes ou pior, inspiradas pelo demónio. Mas, na verdade, eram perfeitamente racionais e lógicas. A sociedade, ao fim de algum tempo, terá assumido tais «elucubrações» como a coisa mais normal deste mundo.

A nossa neotenia abre-nos a porta dos possíveis. A nossa necessidade de proteção, de segurança, fecha essa mesma porta.  A criança que tem medo, tapa os olhos com as mãos, para não ver. A sociedade, ao longo dos tempos, tem feito o mesmo. Tem sido tentada por mundos desconhecidos, que lhe batem à porta; em simultâneo, tem sido afugentada pelo medo do desconhecido, das trevas cheias de monstros, de emanações fantasmagóricas dos nossos próprios medos.

  

 

sábado, 18 de junho de 2022

MITOLOGIAS (VII) O GRANDE MITO DO NOSSO TEMPO



O pensamento sobre o mundo que nos rodeia é condicionado pela nossa experiência sensível. Mas não é essa experiência sensível. Esta, depende dos aparelhos sensoriais de que somos dotados, não se pode dissociar da «janela de realidade» à qual eles estão associados. Por exemplo: os olhos humanos estão limitados, na sua capacidade de  deteção, ao espectro visível das radiações eletromagnéticas; a gama de sons que os humanos conseguem ouvir está limitada a um certo intervalo de frequências.
Mesmo que a humanidade tenha superado muitas das limitações à perceção direta do real, através de instrumentos, estes são - afinal - órgãos sensoriais artificiais, como o microscópio, o telescópio, etc.: a perceção tem limites.
Mas, além disso, todo o equipamento científico contemporâneo é baseado nos pressupostos afirmados por uma elite científica nos vários campos e aplicam-se as leis da física. Estas leis, não apenas formam a trama da nossa compreensão do Universo, como são o fundamento sobre o qual construímos os instrumentos, físicos e concetuais, sobre os quais repousa o nosso saber científico.
O Bios é um domínio especial do Cosmos. Pode-se colocar a hipótese de que qualquer ser biológico esteja dotado de sensibilidade e duma forma de consciência, a qualquer nível de complexidade em que realizemos o nosso inquérito. Assim, em relação a bactérias, ou a células integradas num tecido do corpo, não se pode falar duma ausência de sensibilidade, mas de sensibilidade adaptada às suas funções vitais. Esta sensibilidade é finalizada: Claramente, possui um propósito que é o de viver, de continuar a existir enquanto conjunto coerente e integrado. Esta situação é comum a qualquer célula, seja com vida independente, ou integrada num conjunto mais vasto. Note-se que, todas as células estão relacionadas entre si pela descendência; uma célula descende sempre de uma outra, ou outras, células. Temos portanto, para cada célula, seja ela de vida autónoma ou integrada num organismo, a sensibilidade e a «genealogia»: Não serão estas duas características suficientes para determinar que estas unidades de matéria viva, possuem propósito e, mesmo, consciência? O problema é antes devido ao facto da nossa mente estar amarrada ao materialismo mecanicista persistente, disseminado como «senso comum» na nossa época.
Não podemos nos dissociar do instrumento de medida, para fazer uma medição de algo. O princípio da incerteza  de Heisenberg tem grande importância teórica na Física Quântica. Mas, ao nível da filosofia do conhecimento (ou epistemologia), devia-se também adotar o postulado de que não podemos nos debruçar sobre qualquer realidade, empírica ou conceptual, sem que o «aparelho conceptual/metodológico» que é o nosso, deixe de interferir na observação, na interpretação dos dados e na teoria que as enquadra. Trata-se de um vai-e-vem, pois a teoria é influenciada pelas observações do objeto sob investigação, mas o referido objeto não é «visível» sem  teoria explícita, ou implícita. O exemplo seguinte, dá uma ideia do que pretendo exprimir: Quando os humanos olham a Lua, veem mais do que um disco brilhante no céu; veem a Lua como planeta, como satélite do nosso planeta, cujas propriedades foram descobertas ou confirmadas pelas viagens do homem à Lua no século XX, etc. Os homens da antiguidade viam a Lua como Deusa, ou como uma manifestação especial da Divindade. Não há nenhuma civilização ou cultura que veja a Lua somente como um "disco esbranquiçado, no céu noturno". De facto, quando se olha para a Lua é impossível vê-la, simplesmente e somente, assim.
A um nível sistemático pode-se dizer que a observação direta ou mediatizada por instrumentos técnico-científicos, de um qualquer objeto, está profundamente imbuída do modo como nós - indivíduos dentro de determinada cultura, sociedade, época - vemos e pensamos o Mundo. Note-se que a conceptualização do objeto se enquadra dentro da nossa visão do real. 
Tenha-se em conta que existem muitos casos, na história das ciências, em que - literalmente - os cientistas observaram determinado ser ou fenómeno, sem o reconhecer enquanto algo digno de ser analisado, estudado, descrito em detalhe, investigado. Não foi por descuido ou miopia, mas porque não possuíam o conceito que lhes permitia isso: Este, foi criado e desenvolvido depois, noutra geração de cientistas. A partir desse momento e não antes, tal conceito poderá ter sido usado para descrever e estudar o referido objeto ou fenómeno. A transformação deu-se ao nível do domínio cognitivo  ou psicológico; quanto ao objeto, ele sempre foi igual, ou equivalente.
Assim, a realidade que nos dizem ser a «ultima ratio» da ciência, não é mais que um conjunto de visões ou preconceitos duma dada época. Não existe visão «objetiva» na ciência: Há pesquisas, mas elas ocorrem no interior dum certo aparelho ideológico/científico; existe um enquadramento dos fenómenos, das observações, das experiências, dentro do paradigma aceite.
Esse paradigma é difícil de modificar, muitas vezes: Se o pensamento dos físicos fosse realmente objetivo, eles teriam adotado, muito antes de Copérnico, a interpretação heliocêntrica. Existe prova segura de que tal teoria foi enunciada por filósofos gregos da antiguidade. Eles, aliás, forneceram muitos argumentos em apoio de tal teoria.
Uma situação análoga se verificou com a Teoria da Relatividade de Einstein: Muitos cientistas notáveis, na primeira década do século XX, recusaram a teoria de Einstein. Curiosamente, o próprio Einstein, que recebeu o Prémio Nobel, não pela sua Teoria da Relatividade, mas pela explicação do efeito fotoelétrico (um fenómeno quântico), era cético em relação às interpretações da Física Quântica, que outros cientistas desenvolveram na primeira metade do século XX. Ele recusava a existência duma indeterminação ontológica, no íntimo da matéria.
A abertura não é sempre caraterística do pensamento dos científicos. A ideia de que o cientista típico é alguém com grande criatividade intelectual, que pensa fora da rotina, do convencional, é muito romântica, mas totalmente errada, especialmente na nossa época. Com efeito, nos laboratórios de pesquisa ou departamentos científicos das universidades, o mais frequente são atividades de reprodução, com maior ou menor variação, é continuação dos caminhos já traçados. As propostas mais inovadoras são - com frequência - rechaçadas. Os cientistas em posições dominantes, decidem sobre a atribuição - ou não - de créditos para tal ou tal investigação. Eles têm receio de que um projeto envolvendo demasiadas incógnitas, não dê origem a resultados publicáveis. A investigação científica tornou-se convencional, dominada por carreirismos e pouco favorável - afinal - à verdadeira inovação. O único aspeto que mantém este sistema institucional, é a capacidade em atrair financiamentos (estatais e privados). Por outras palavras, os responsáveis pelos laboratórios e institutos especializaram-se em fazer «lobbying», em captar verbas para suas linhas de investigação, para suas instituições.
A ignorância científica, ao contrário do que muitos pensam, está em progressão na nossa sociedade e o fenómeno tem-se acelerado. Os programas do ensino secundário são cada vez mais «leves», nas componentes científicas. Os adolescentes não têm contacto com a ciência experimental, propriamente dita. O que chamam de «revolução» informática consiste em transformar jovens em «ratinhos de laboratório», conectados ao computador, que reagem a estímulos e são mantidos numa dependência (como a adição aos jogos de computador). Isto dá enorme satisfação aos adultos (os pais, ou os educadores), encantados, porque as crianças estão «muito sossegadinhas» em frente aos computadores!
Certos domínios, menos tecnologizados, como a epistemologia (a filosofia das ciências), podem ainda ter alguns progressos nesta civilização. Porém, a generalidade dos domínios tem uma produtividade real muito escassa. Porque razão afirmo tal coisa?  Porque, comparando resultados científicos de hoje com os dum passado não muito remoto (alguns decénios), verificam-se várias coisas imprevistas: Há uma multiplicação de artigos em publicações científicas, mas demasiados não correspondem a reais avanços nas respetivas ciências. Se fizermos uma medição qualitativa honesta, vemos que os investimentos e o número total de pessoas técnicas e científicas se multiplicaram, mas quanto ao progresso científico e técnico, deixam muito a desejar. Para uma mesma quantia investida, a ciência que se fazia há 50 ou mais anos atrás, era bem mais produtiva. Com menos, fazia-se mais, descobria-se mais e inovava-se mais. O aparelho dito científico tem, hoje, um papel de «validação» da sociedade tecnocrática. Isto é patente, por exemplo, em Medicina. Rios de dinheiro são gastos, sem real progresso na saúde da população geral. Este é o resultado mais visível.
Na sociedade futura, alguém que se debruce sobre a realidade da ciência do começo do Século XXI, irá espantar-se com os volumes de investimentos em investigação aplicada à medicina - que implicaram défices de investimentos noutras áreas - consentidos pelas pessoas e pelos Estados. Mas que são tragados por uma medicina devoradora de recursos,  ultra- tecnologizada e com resultados no inverso daquilo que seria de esperar. Com efeito, a população está cada vez mais doente. Está mais dependente dos cuidados de saúde, mais frágil, menos autónoma, em todas as faixas etárias, sobretudo nos países industrializados. 
Sabe-se perfeitamente que muitas doenças podem ser eficazmente combatidas com prevenção, educação e hábitos de higiene. Apenas esta abordagem é eficaz, ao nível populacional, para as doenças ditas «de civilização» (obesidade, diabetes, cancros, alcoolismo, doenças psíquicas, etc.). Isto não é do interesse das grandes farmacêuticas, pelo que as pessoas vão continuar a adoecer e consumir mais remédios, para lucro dos grandes acionistas destes empórios.

 


sábado, 5 de outubro de 2019

ROTEIRO PARA ESCAPAR DA MATRIX/LABIRINTO [parte III]





Nas espécies animais mais próximas da espécie humana do ponto de vista evolutivo, os grandes símios antropóides, a existência de comunidades estruturadas de modo muito idêntico, de geração em geração, reforça a noção de que existe uma determinação genética nos seus modos de se relacionarem e de se estruturarem em sociedade. 

Nos gorilas, a estrutura social é diferente da sociedade dos chimpanzés, e nestes difere grandemente da dos seus «primos», os bonobos. Porém, a distância genética entre eles não é muito elevada. 
Estão todos muito dependentes do grupo para a criação e integração dos infantes e dos jovens. A sociedade está estruturada de modo hierárquico e familiar nos gorilas, hierárquico e supra-familiar ou de família alargada nos chimpanzés, e não-hierárquico,  sexualmente promíscuo, nos bonobos.

A estruturação dos grupos pré-humanos - ou homininos - pode ser inferida pelos vestígios quer da anatomia, quer de restos arqueológicos, permitindo inferir a estrutura dos bandos, a partir de uma série de parâmetros. 
Mas, só podemos ter a certeza sobre os detalhes dos modos de organização social, na nossa espécie - o Homo sapiens - a qual terá cerca de 300 mil anos, segundo as descobertas mais recentes.
A estrutura familiar foi - em muitos casos-  o único nível de complexidade que muitos humanos das épocas mais remotas conheceram. 
Isto não invalida a existência de agrupamentos supra-familiares, como os clãs ou as tribos, mesmo nas etapas anteriores ao «homem anatomicamente moderno». 
Porém, a estruturação das sociedades em conjuntos maiores é típica das épocas pós-paleolíticas: neolítico, calcolítico, bronze, ferro..
Nas sociedades agrárias e pastoris iniciais, já existia uma hierarquia dos géneros, das idades, do poder e da riqueza. 
As relações eram - no entanto - quase «cara a cara», havia um conhecimento directo dos chefes pelos súbditos e vice-versa. A complexidade crescente e o tamanho dos conjuntos humanos, veio trazer uma distância cada vez maior entre os dominantes e seus subordinados. 
Nas sociedades do paleolítico e do início do neolítico, aquele que se impunha pessoalmente como chefe do bando, do clã ou da tribo, seria quase sempre um homem forte e respeitado pela sua coragem e argúcia. 
Nas sociedades agrárias mais tardias, como no Egipto, a casta de sacerdotes dominava o poder, pondo e dispondo de monarcas divinizados. 
Irrompe, nas sociedades humanas, a partir de há cerca de oito mil anos, a religião organizada e de estado, um elemento decisivo de organização da sociedade. Nesta, o exercício do poder estava integrado na ordem cosmológica havendo, portanto, uma vinculação comum a esse poder, como emanado directamente da ordem divina. 
Só num período muito curto e recente a humanidade não esteve submetida a um poder patriarcal, autoritário, fortemente apoiado na religião. 
O restante, foi o período das sociedades pré-históricas (cerca de 300 mil anos), mais o  longuíssimo período superior a 5 milhões de anos, em que os homininos se foram afastando do ancestral comum a estes e aos grandes símios. 
Claramente, isto mostra-nos que os comportamentos sociais têm uma profunda raiz na nossa história propriamente biológica. 
Também as formas de organização das sociedades humanas, ao longo da História e que antecederam a nossa civilização contemporânea, mantiveram, de alguma forma, relação com este fundo comum da espécie.

Para inúmeras gerações, a questão central da vida não era a liberdade do individuo, mas a subsistência. O conseguir alimento suficiente para si e para os filhos, era a preocupação quase exclusiva de inúmeras gerações de homens e mulheres.  
A questão da submissão ao grupo ou gregarismo nasce dessa situação. 
Nunca foi fácil o ser humano ou hominino sobreviver. Nos primeiros milhões de anos, os homininos tinham de contentar-se com o que os grandes carnívoros deixavam das carcaças das prezas mortas por eles. 
Existem muitas indicações de que a humanidade (e as formas que a antecedem) vivia na carência ou no limiar desta, além de que eram muito mais frequentemente presas do que predadores: não faltam evidências disso, desde marcas de dentes de grandes carnívoros nos ossos fossilizados de homininos, até às composições isotópicas dos dentes, que nos dão uma ideia da composição da sua dieta. 
As estimativas da densidade populacional, correlacionadas com a  abundância ou escassez de alimento, mostram uma humanidade no limiar da fome em vastos períodos históricos. 
Tem de compreender-se então o gregarismo como uma tendência forte, no ramo da evolução animal ao qual pertencemos. Forte, no sentido de ter havido muitas forças no entorno dos indivíduos, que favoreceram este comportamento, que até o reforçaram com dispositivos sociais (as castas, as classes, as ordens...) e com uma super-estrutura ideológica (as crenças, os mitos, as religiões, as ideologias...). 
Mas, as coisas são muito mais complexas, pois em simultâneo, surgem forças que se exercem no sentido contrário. Estou a referir-me à  plasticidade do comportamento humano, que alguns assimilam ao «livre arbítrio» mas que - afinal - se pode resumir à capacidade de auto-determinação do indivíduo, em relação ao grupo no qual está inserido. Esta liberdade face ao grupo, obviamente, tem mais oportunidade de se exprimir e desenvolver numa sociedade onde exista uma certa abundância, ou onde os indivíduos não estejam tão constrangidos, tão dependentes do entorno social, para a sua simples subsistência. 

Os ideólogos do individualismo colocaram as liberdades e garantias individuais como direitos inerentes e inalienáveis de todos os humanos, claramente acima de quaisquer direitos de grupos. 

Os direitos humanos foram assim entendidos como coisa absoluta, independente das sociedades. Nalguns filósofos, foram tidos como independentes da contribuição dos indivíduos para as mesmas sociedades.

Porém, pouco tempo depois, desenvolveram-se regimes totalitários, como o nazismo e o bolchevismo, em que o indivíduo era subordinado ao Estado todo-poderoso.  

As guerras e enormes destruições ocorridas conduziram ao Direito Internacional, aos princípios da ONU, à sua Carta e Convenções, aos organismos supra-nacionais. Infelizmente, todo o edifício está fortemente posto em causa pela própria utilização abusiva dos poderes dominantes, que violam impunemente esta legalidade internacional. 

O gregarismo é um mecanismo biológico e não adianta muito contrariá-lo. Mas, deve-se compreender que a manipulação deste gregarismo, que está na nossa biologia, é um dos ingredientes da propaganda ou das «relações públicas». Esta manipulação está integrada no âmago das nossas sociedades, condicionando de forma inevitável praticamente todas as pessoas. 
Através de mecanismos psicológicos infundem a ilusão nas pessoas de uma liberdade no consumo, na política, na religião, etc. Isto consiste, claro, num processo hábil de neutralizar as salvaguardas racionais e a verdadeira autonomia dos indivíduos, sem que estes tomem consciência disso. 
A questão da propaganda (ou «public relations») na sociedade contemporânea será tratada, em pormenor, noutra parte.   



sexta-feira, 4 de outubro de 2019

ROTEIRO PARA ESCAPAR DA MATRIX/LABIRINTO [parte II]

                           

Quando me decidi a escrever algo do «sumo» da minha experiência, relativamente a questões que só superficialmente são tidas como do foro íntimo - a consciência, a autonomia do indivíduo, a responsabilidade individual e social - não estava querendo dar «lições de moral», mas antes motivado pelo desejo de arrumar - na minha própria cabeça - conceitos e experiências. 
Depois descobri que, ao arrumar este conjunto de questões, estava a tornar tudo muito mais claro, na minha mente. Este era um «fio de Ariadne» que me poderia conduzir, no futuro, para fora de situações embaraçosas e de constrangimento, como acontece nas vidas de quase todas as pessoas. 
Este «fio» talvez seja demasiado frágil e talvez apenas uma hipótese. Porém, se tal hipótese se confirmar, mesmo que só eu consiga recorrer a ele para sair do labirinto, já é muito. 
Para si, leitor/a, isso significa que o/a leitor/a pode encontrar o seu próprio método, também! Não será isto uma boa notícia?  

As pessoas todas precisam de um «vestido aureolar», uma roupa invisível que proteja a nudez do seu ego. Elas deslocam-se na sociedade, exibindo esse traje, embora estejam nuas, face a alguém com o olhar ingénuo duma criança. 
É curioso ver as pessoas imbuídas das suas roupagens e adereços, como se fossem personagens de teatro, ou de ópera. Serão elas capazes de descolar de suas próprias «representações teatrais», verem-se a si próprias e o papel que estão desempenhando?
- Os personagens da história (os monarcas, chefes militares, etc) construíram deliberadamente um «avatar» de si próprios, um ser mítico, que os súbditos adoravam, um símbolo, algo que não tinha realidade, senão na imaginação dos seus adeptos.
Assim procedem, igualmente, os «ídolos» do desporto, do cinema, da música pop, da política-espectáculo, enquanto manipulação hábil desse «vestido-aureolar». 
Do lado dos adeptos, do lado das massas, existe um desejo, não-satisfeito, de amor, de um amor impossível de satisfazer porque é o amor que uma criança com poucos meses de vida possui/recebe do seio materno, que o nutre e lhe dá tudo, calor, carinho, segurança, prazer. 
A nostalgia dos humanos pelo seio materno é universal. 
Aquilo que não é tão universal é um desejo sôfrego pela satisfação do retorno ao seio materno, mesmo que seja de modo totalmente simbólico, ou o mais  irrisório, até. 
Mas devemos compreender que, em larguíssima escala na sociedade, existe uma regressão infantil de certo número de pessoas. São estas pessoas com grande pulsão para «se entregarem», que procuram uma identificação com um ídolo. Elas colocam-se (interiormente) na postura do «bebé que mama o seio materno». Isto não deveria surpreender, pois estas pessoas não conseguem encontrar na sua vida - que, elas próprias desprezam - algo que supere a quase perfeita felicidade do bebé. É como uma droga, como a «soma» do romance de Aldous Huxley.  E a isto, pode chamar-se alienação.

Note-se que, quanto mais frustradas, mais se agarram à sua «droga» preferida: numas, pode ser  mesmo «droga» no sentido usual de substância aditiva. Noutras, pode ser a identificação com e adoração do ídolo. 
Tal mecanismo é patológico, na medida em que vai escamotear a realidade: o ídolo, não é assim na realidade, mas é essa a imagem retida pelos adeptos que o adoram. 
Além disso, o reforço constante da imago do ídolo, na media popular de massas, cria e alimenta em permanência, o mecanismo de identificação com ele: os adoradores recebem através da imago, um pouco de sua aura, do seu poder mágico, etc, etc.

As pessoas podem estar de tal maneira reprimidas ou anuladas, que não têm a coragem - nem pensam sequer - de viver a sua vida, construindo os seus projectos, aceitando desafios, lutando pelos seus objectivos. Assim, um pequeno grupo consegue perfeitamente manter controlo das restantes pessoas, dominadas. A receita é simples e muito velha: 
- Fazer com que a imagem da(s) pessoa(s) dominante(s) coincida com um mito pré-existente, vestindo a mesma roupagem do mito, ou levemente diferente mas facilmente reconhecida pelas massas, o vestido-aureolar de que falei acima.

Mas, nada disto seria possível se não houvesse, profundamente, em todos nós, uma tendência genética, hereditária, para o gregarismo. 
Esta tendência já está presente, antes do aparecimento dos humanos, no mundo animal, não sendo portanto uma contribuição original da evolução humana, mas antes uma herança ancestral, transportada pelos homininos até  Homo sapiens e presente em todas as culturas humanas, passadas e presentes. 

Irei desenvolver este tema no capítulo seguinte.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

ROTEIRO PARA ESCAPAR DA MATRIX/LABIRINTO [parte I]


                        
Por vezes, a mente é levada a construir complexas construções, as quais se apoderam do próprio funcionamento do indivíduo. A sua consciência é auto-adormecida, pela falsa evidência, aparência, ou ilusão, de que a realidade que o cerca se conforma ao modelo interior, por ele construído. 
Por outras palavras, temos a tendência - forte e generalizada - de interpretar as informações, tanto o que nos chega pelos sentidos, como o que entra pela via do «universo medio-cognitivo», duma maneira que se encaixe no modelo interior que construímos (não conscientemente) do mundo e de nós próprios.
Quando nos deparamos com evidência de que assim é (como escrevi acima) e, sobretudo, que o nosso ponto de vista não pode ser senão o ângulo subjectivo do indivíduo, que interpreta as coisas de acordo com a sua conveniência, podemos ser tentados a adoptar uma postura cínica, como: «se as coisas são assim, então irei fabricar a minha narrativa do real, de acordo com a minha conveniência».
Mas, a narrativa do real, não é o real. O real está para além do alcance da mente humana, não porque ele não exista... nem porque a mente humana seja conceptualmente deficiente, para alcançar esse conhecimento. Não, a impossibilidade de ver o real é ontológica. 
É aquilo que nos transmite o «Koan» seguinte: 

   «os olhos não podem ver-se a si próprios». 

Dirás «mas os meus olhos, que se reflectem no espelho e dos quais vejo a imagem, são reais, pois os fluxos de ondas luminosas que chegam aos meus olhos, o são»... 
Para lá da explicação imediata, de que os olhos não podem ver senão o reflexo (ou seja, ondas luminosas) ao espelho, de si próprios.... devemos ter em conta que o próprio tecido do real é composto de uma grande complexidade. 
Estaremos convictos de que «vemos» algo, que os olhos não nos estão a enganar, no instante preciso em que estamos a sofrer uma ilusão. 
Além disso, a realidade física, as leis da reflexão dos objectos num espelho, a luz que incide e é reflectida, o modo como isso acontece, etc...existem, mas, também elas não proíbem que determinados parâmetros variem, e isso fará com que o observador interprete - de modo erróneo - uma determinada imagem. 
Deve-se ler a discussão acima, não meramente no sentido literal, mas também metafórico: compreendemos que estamos permanentemente a nos enganar a nós próprios, com os «olhos da mente» coloridos por lentes, de cores diversas, como um caleidoscópio que varia, consoante nossos estados internos.
Poderia desenvolver e ilustrar longamente o que acima delineei, mas peço ao próprio leitor para fazê-lo, reflectindo, recorrendo a memórias da sua experiência pessoal, ao que tem ocasião de observar no mundo que o rodeia. 

Assumindo pessoalmente os pressupostos acima, como é que eu me poderei libertar desta «teia», desta «matrix», que me impede a ver o real sem «filtro», sem as ilusões de «óptica» decorrentes da minha própria pessoa? 
- Fará sentido procurar «sair de mim próprio»? 
- Será que posso me desdobrar em «observador do real» e «observador do observador do real»... num jogo de espelhos sem fim,  até ao infinito? 
- Não será melhor eu assumir que - faça o que fizer - estarei sempre imerso nesta matriz, neste vai e vem entre o mundo real e a minha percepção do mesmo, a qual não é «mecânica», «automática», mas sim uma construção? 
O meu cérebro tende a procurar «fazer sentido» da informação, porque foi feito para isso, geneticamente. 
Também  foi treinado pela educação, reforçando este comportamento na vivência de todo o tempo de vida... 
Mesmo que tente descolar do realismo ingénuo - a realidade é «aquilo que vemos» - o certo, é que não comando as minhas pulsões, o meu «fundo animal», etc, pelo que - no melhor dos casos, somente poderei «a posteriori», depois duma ocorrência, tentar compreender o que se passou. 
Também neste caso, terei necessariamente de recorrer às experiências passadas e ao armazenamento das mesmas na memória, não poderei raciocinar de outra forma, senão da maneira como me foi ensinado, condicionado, habituado a fazê-lo, etc. 
Em qualquer situação, estará sempre um subjectivismo irredutível, no centro da interpretação do que vejo.  

A consciência da não-distância ao real, da não-descolagem do personagem que observa, em relação à informação que lhe chega pelos sentidos (ou mecanismos cognitivos), poderá ser um princípio. 
Tendo em conta esta complexidade, não deverei ter a veleidade de saber tudo, nem de ter uma clara visão do que vejo. Terei uma grande prudência em relação aos meus juízos. Nomeadamente, de que sendo eu centrado, ancorado, na minha existência (e isto não pode ser de outro modo), não poderei abarcar a realidade numa visão global, como se fosse «Deus».
A impossibilidade de uma parte (nós) ter um total conhecimento e consciência do todo, no qual está incluída (o Universo), foi demonstrada matematicamente por Gödel, um dos mais brilhantes matemáticos do século XX.

Eu adopto a posição de um realismo prudente, não trivial, não «materialista», não ingénuo em relação à ciência, nem à sua ideologia (cientismo) que muitas vezes nela se esconde. 
Mas sou realista e reivindico esta minha opção, pois me parece ser a única que poderá alimentar uma abordagem saudável e construtiva dos problemas éticos, que se me deparam a cada passo.

Se falamos de ética e de consciência, estamos a falar de quê? 
- Estou a fazer algo pelo sentido do dever ou do prazer? 
- Estou a auto-avaliar a minha escolha, a minha acção, por valores que poderão ser adoptados pelo conjunto da sociedade e até do universo, ou estarei meramente a jogar com as palavras, para me «enganar» a mim próprio?

Muito poderia e deveria ser dito e escrito sobre estas questões, mas aqui irei apenas dar uma indicação de caminho:
- A consciência de si e a noção do real, da realidade, são dois aspectos indissociáveis do «ethos» do indivíduo; tal pode também ser aplicado, com modificações, à ética social, à «moral pública».