«O Colosso» de Francisco de Goya
terça-feira, 27 de outubro de 2020
«O COLOSSO» de Francisco de Goya
domingo, 25 de outubro de 2020
A ESTRANHA PROPRIEDADE DE NÃO NOS COMPREENDERMOS
Quando olho através da janela e vejo o céu, plantas, uma cerca... estou a ver algo real. Mas as palavras que escrevi, agora mesmo, não descrevem sequer o real. Não poderia esse real ser descrito por uma filmagem pois, o que uma filmagem mostra, é uma paisagem sob determinado ângulo (escolhido pelo indivíduo que está filmando) e as imagens captadas estão «congeladas» num dado momento do tempo. O filme não capta as transformações que ocorrem ao longo de meses, nem tão pouco pode captar o micro detalhe do que se passa no interior das estruturas, do solo, das plantas, etc... O problema que tenho - todos temos afinal - é que o real está para além do trivial. Temos aqui uma situação paradoxal. Não queremos especular, queremos nos limitar ao que «vemos», ao sensível. Mas, sabemos que existe - na realidade - muito, para além do que nos é oferecido conhecer através dos sentidos. Porém, logo que começamos a pensar em processos atómicos ou cósmicos, nas escalas do espaço e do tempo, começamos a especular, entramos no domínio da especulação.
Há uma distância irredutível do homem à realidade do mundo, mas também à sua realidade interior, afinal a base do seu ser, da sua personalidade. Não nos é suportável a introspecção, senão por breves momentos, a introspecção permanente é caminho certo para a loucura, já é um sinal de loucura. A subjectividade existe, porém: estamos sempre a reelaborar o nosso passado, somos seres dotados de um cérebro extremamente sofisticado, completamente diferente, nos princípios lógicos e no modo operacional, dos computadores da nossa tecnologia. O cérebro é um órgão, é um componente do corpo, nós «raciocinamos» com o corpo todo, não apenas com o cérebro. O cérebro tem a propriedade única de integração das diversas partes do organismo, permitindo a homeostasia, esse maravilhoso poder de manter um determinado estado interior.
Tal como a homeostasia de funções «orgânicas», como o intervalo de flutuação dos níveis de glucose no sangue, ou de hormonas, a homeostasia das funções emotivas e cognitivas é realizada através de operações no cérebro. Isso traduz-se pela activação ou inibição de certa categoria de circuitos neuronais, etc., mas também pela própria modificação estrutural, visto que estamos sempre a fabricar dentrites e mesmo neurónios, numa arquitectura extremamente complexa e bem organizada.
A nossa fala espelha de um modo grosseiro a complexidade do mundo. É característico do mais simplista e equivocado pensamento, confundir a «etiqueta», o nome dado às coisas, com as coisas. Mas, todos nós - insensivelmente - fazemos isso, e com grande frequência, porque o nosso cérebro gosta de atalhos, gosta de poupar energia; evita gastar energia num grande número de operações.
Talvez o problema da nossa abordagem ao real, esteja relacionado com a hiper sofisticação dos nossos modos de viver e de pensar. Talvez sejamos construídos basicamente com uma estrutura igual ou equivalente à dos primeiros homens modernos, mas o nosso cérebro e o nosso ser de sapiens contemporâneos está confrontado, talvez desde o nascimento - certamente, desde os primeiros anos de vida - com os desafios da complexidade. Falo de complexidade social, relacional, sociológica, cultural... Nós conseguimos, graças à nossa «incompletude» (a propriedade da «neotenia»), nos adaptar ao mundo tal como ele é, evoluir e transformar múltiplos aspectos (físicos, emocionais e intelectuais) do nosso comportamento. Mas, o homem, durante perto de 300 mil anos (e só considerando o homem anatomicamente moderno), viveu num mundo completamente diferente, onde as interacções sociais significativas eram muito poucas, mas - talvez - mais intensas. As questões de sobrevivência eram sempre prementes (não havia um excedente acumulado pelo agrupamento humano). Certamente, os comportamentos e os cérebros destes nossos antecessores estavam totalmente mobilizados para atender às tarefas relacionadas com a sobrevivência.
No entanto, a nossa capacidade de inovar estava presente, a transformação - progressiva ou brusca - das comunidades humanas, significou uma série de desafios inéditos, para os contemporâneos dessas transformações. A vertente do conhecimento e exploração da realidade mais desenvolvida na nossa espécie, porque verdadeiramente importante, foi da realidade social. Os indivíduos percebem que pertencem a uma certa comunidade, que têm de lutar dentro dela para que lhes seja reconhecido um dado estatuto: a realidade social foi - desde muito cedo - apreendida como vital, mais importante que o conhecimento do entorno natural.
Por mais que certas teorias o neguem ou o menosprezem, o ser humano sempre foi um animal social. O tipo de relacionamento que os humanos estabelecem em sociedade evolui, mas a espécie humana, em si mesma, não é concebível sem uma estrutura social complexa. Graças à plasticidade cerebral, desde os alvores da humanidade (e mesmo das espécies que a precederam, há milhões de anos) e até hoje, podemos dedicar trabalho cerebral a resolver um problema matemático, apreciar uma obra literária, ou a construir um arranha-céus... mas, não perdemos a capacidade de nos relacionar entre indivíduos, de nos apaixonarmos, de termos conflitos pessoais, de sentirmos afecto, ternura, repúdio e aversão... O cérebro emotivo está na base do desenvolvimento do cérebro racional. Somente devido a uma espécie de soberba é que muitas pessoas, incluindo as mais inteligentes, colocam as funções racionais acima das funções de gestão das emoções. A situação, hoje, pode ser menos nítida; mas, ao longo dos últimos 500 anos, foi esta a posição dominante.
A incapacidade do homem em se perceber a si próprio, apesar de ter usado sua inteligência para resolver tantos mistérios da natureza e desenvolvido tantas técnicas com base nestes saberes, é o que há de mais estranho. Mas, isto não se deve à escassez de obras de psicólogos, filósofos, etc... que se debruçaram sobre os diversos aspectos do problema, avançando com teorias, mais ou menos convencionais ou revolucionárias. A literatura sobre o assunto é enorme e fisicamente impossível de conhecer em pormenor. Somente podemos ter alguma ideia das teorias em voga; podemos intuir como as pessoas assimilam tais teorias; como são referidas na media, nas obras de divulgação e no ensino.
Nos últimos 150 anos, a negação da espiritualidade recebeu o beneplácito do mundo científico-académico, ao contrário das épocas anteriores. O materialismo tornou-se - de facto - a filosofia implícita nos meios científicos. A espiritualidade em si mesma, não implica maior ou mais aprofundado saber sobre a nossa subjectividade, sobre o eu emocional. Mas, o materialismo bloqueou qualquer progresso neste domínio, insistindo em modelos completamente absurdos. Penso que se pode falar de «obstáculo epistemológico» a este propósito, sobretudo em relação ao reducionismo, associado ao materialismo. Esse modo de proceder consiste em reduzir/degradar ao nível de impulsos electro-químicos, de conexões neuronais e de influências hormonais, tudo o que esteja relacionado com o eu emocional / relacional e seu modo operativo. O modelo da «actividade racional», pelo contrário, foi o do computador, a analogia mais fraca que se possa imaginar, mas que continua, como mito nas sociedades urbanizadas (o nosso «computador interior», o cérebro).
As neuroses, o fechamento sobre o ego, o narcisismo, o egoísmo, o hedonismo, todas estas patologias dos indivíduos são, em simultâneo, sociais. São características de uma sociedade alienada e alienante. Os indivíduos, hoje em dia, não encontram, nem as referências tradicionais (que reforçavam as normas sociais, mas também davam segurança ao indivíduo), nem constroem novas referências, adaptadas à época. Por isso, experimenta-se um mal-estar de fim de época. Nestes tempos, tornam-se óbvios sintomas de decadência que surgiram precisamente noutros momentos, dos mais perturbados da História: O relativismo moral impera, confunde-se o dogmatismo com valores, predomina o raciocínio e acção segundo padrões identitários. Estranhamente, ou talvez não, reencontramos atitudes e ideologias muito semelhantes, noutros momentos de crise civilizacional. Nomeadamente, nos últimos tempos de Império Romano do Ocidente, na decadência dos dois super poderes ibéricos no Século XVII, na véspera da Revolução francesa de 1789, da Revolução Russa de 1917, na Europa, durante o imediato pós-guerra de 1918/1919, etc...
Neste quadro, não admira que as pessoas estejam desorientadas e possam desenvolver comportamentos «anti-sociais», de uma ou outra forma. A desagregação na sociedade dá-se sempre a vários níveis, que se reforçam mutuamente.
É como um edifício que entra em ruína. A decadência ocorre, em simultâneo, em várias estruturas: tanto na fachada, como nos alicerces; tanto na consistência do cimento, como na podridão das vigas.
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Não preconizo «um remédio» social, nem individual. Mas gostaria de debater* estes assuntos com pessoas, quer tenham opiniões concordantes ou discordantes comigo.
[ * Se o/a leitor/a tiver interesse em fazê-lo, pode inserir seus comentários. Pode colocá-los livremente neste blog. Apenas retirarei conteúdos manifestamente insultuosos e ofensivos.... ]
sexta-feira, 23 de outubro de 2020
O Temperamento em J. S. BACH: «DAS WOHLTEMPERIERTE CLAVIER»
quinta-feira, 22 de outubro de 2020
O EXACERBAR DA UNI-POLARIDADE
Na media dominante no meu país (Portugal), como na media dominante na Europa, é vulgar verem-se notícias e análises que tomam como facto auto-evidente que os EUA sejam os nossos «aliados». Esta visão das coisas pode muito bem ser devida, em parte, ao facto de muitas pessoas nesses meios estarem sob influência ou mesmo sob pagamento das agências que levam a cabo a guerra ideológica do Tio Sam. Mas, mais além disso, a própria sociedade está muito condicionada, por anos e decénios de propaganda da guerra-fria: para muitos, «vêm aí os russos» é equivalente ao «vêm aí os comunistas».
O complexo de falsidades que se tece nos discursos, mesmo nos auto-designados anti-sistema, leva a que alguns factos fundamentais sejam constantemente ignorados. Ora, são estes os que têm relevância maior, quando se fala de política internacional, de relações entre Estados. Vou, de seguida, tentar esclarecer um pouco as questões.
1- A «Aliança Atlântica», embora formalmente seja uma estrutura supra-nacional, cujos membros são Estados soberanos e com igual assento nos seus órgãos políticos, tal não acontece no domínio militar. Tem sido sempre, sem interrupção, um general dos EUA o chefe das forças da NATO na Europa, com poder para tomar um vasto número de decisões, a partir do momento que exista, ou que «decretem» que existe, perigo para a segurança de algum aliado ou da aliança no seu todo.
A NATO, tinha, segundo os seus fundadores, a função de defesa contra um inimigo do Leste, que eles viam como ameaçador, com poderio militar suficiente para invadir o Ocidente do continente europeu. Pelo menos, esta era a sua retórica, a sua justificação para erguer, logo a seguir à IIª Guerra Mundial, esta aliança claramente dirigida contra a URSS e o bloco de Leste. Mas, a URSS desfez-se, o Pacto de Varsóvia desapareceu, as forças políticas que estão no poder em todos os países do ex-bloco soviético, ou são francamente neo-liberais ou mesmo não o sendo, não exibem qualquer veleidade agressiva contra os países da Europa ocidental, membros da NATO.
É evidente que a razão de ser da NATO desapareceu e que os que estão nos postos de comando (civis incluídos) tentam desesperadamente encontrar razões para fazer prolongar a sua existência. Porém a NATO - neste contexto- tornou-se uma espécie de «polícia mundial», muito para além da zona geográfica do seu suposto âmbito. Além disso, o complexo militar-industrial (principalmente americano) tem sido beneficiário da compra - cada vez mais abundante - de armamento e equipamento sofisticado, proveniente dos EUA. Em relação aos armamentos, ultrapassam os piores tempos da «guerra -fria», os volumes produzidos e vendidos (aos Estados), as somas gastas (e lucros das empresas de armamento), a quantidade de laboratórios de investigação e mão-de-obra altamente especializada, etc.
São em número superior a 800, as bases militares dos EUA no estrangeiro, em todos os continentes, sem contar com as instalações de forças aliadas, mas que podem em qualquer momento ser usadas pelas tropas dos EUA. Isto significa que a hegemonia dos EUA, ao nível mundial se afirma sobretudo pela ameaça, chantagem surda ou declarada, de uso da força contra países que não se submetem, mas mesmo contra países ditos aliados que não aceitam submeter-se na íntegra às directrizes de Washington.
2- A política dos governos dos EUA, com a conivência de alguns governos aliados, tem um cunho anti-liberal, na sua essência: É anti mercado livre, anti livre concorrência.
Igualmente, é anti-direitos humanos, pois apenas os invoca (com ou sem razão) quando lhe convém diabolizar um governo estrangeiro, uma nação, se esta não se submete. Mas, os governos que se submetem ao poderio imperial americano podem exercer as piores violações dos direitos humanos, sem que os dirigentes dos EUA e das ditas «democracias ocidentais» levantem um dedo: em África, Médio Oriente, América Latina, Ásia, por todo o lado onde ocorram atentados aos direitos humanos, violenta opressão, supressão de opositores, se os criminosos estiverem «no campo ocidental» (ou seja, regimes submissos ao Ocidente), não terão qualquer problema.
3- A ingerência nos assuntos internos, das agências e mesmo de diplomatas em posto nos diversos países, está institucionalizada, como sendo o «comportamento normal» no caso dos EUA, incluindo em países ditos «amigos», aliados. Mas, se porventura os mesmos comportamentos forem atribuídos à Rússia ou à China (ou a outros, aliados destes), estes comportamentos são classificados como graves e perigosos. A ingerência dos EUA dá-se, em geral, através de ONGs subsidiadas por grandes multimilionários, como George Soros, ou por dinheiro público do próprio orçamento dos EUA, ou ainda pelo dinheiro «negro», resultante de operações «secretas» da CIA, como as relacionadas com tráfico de droga (em larga escala) como está profusamente documentado, nomeadamente, no Afeganistão, em vários países da América Central, no chamado «Triângulo Dourado», etc.
4- Os EUA são o único país no mundo que invoca «uma extra-territorialidade» das suas leis. Consegue impor - unilateralmente -sanções e aterrorizar os governos e empresas de países europeus, que queiram fazer negócio, comerciar com o Irão, com a Rússia, etc. Grandes bancos franceses e suíços foram multados nos EUA, por fazerem - fora dos EUA - negócios perfeitamente legais, segundo as leis internacionais e dos seus próprios países.
5- A propaganda e a intimidação que exercem os EUA, mesmo em direcção aos seus mais fieis aliados (incluindo Portugal, que, segundo entrevista do Embaixador dos EUA.... teria de «escolher» entre a China e eles próprios...), radica na sua doutrina de «superioridade moral», de «nação escolhida», de ser «a nação indispensável». Mas, pelos seus actos*, o governo dos EUA deve ser designado por «governo-pária». Pois este termo corresponde a uma potência que não reconhece as normas e o direito internacional, quando se trata da sua própria acção. Considera-se acima da lei internacional, recusando e ameaçando o Tribunal Penal Internacional de Haia, caso este avance com a instrução de processo contra os EUA, pelos seus crimes de guerra.
Muito mais poderia referir. O que afirmo acima, tem muitas provas materiais a apoiar. São factos reconhecidos por políticos, jornalistas, juristas, em todo o mundo. Uma parte importante de tais personalidades, que inquiriram e denunciaram comportamentos dos dirigentes dos EUA, são cidadãos deste país. Estou convencido que o povo dos EUA tem sido mantido numa redoma de propaganda e de narrativas falsas ou distorcidas. As pessoas, iludidas, pensam que o seu «patriotismo» se deve exprimir quando a sua nação é posta em causa. Mas aqui, não se trata da nação em si mesma, trata-se de dirigentes concretos, responsáveis materiais e morais por muitos crimes cometidos, pelas políticas de violência contra Estados e povos, que não eram nenhuma ameaça para os EUA.
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
METAMORFOSES - PHILIP GLASS
Contrariando interpretações simbolistas / psicanalíticas, Nabokov chama a atenção para o facto de que o tema central da ficção é a luta do protagonista pela própria existência, numa sociedade repleta de filisteus, que o destroem passo a passo.
Franz Kafka (3 de Julho 1883 – 3 Junho 1924) é um dos grandes autores da primeira metade do século XX. As suas obras (romances «O Processo», «O Castelo», «América» e outros, contos, escritos vários, correspondência), não apenas anunciam muito do que iria ser o século XX, como exercem uma influência fundamental na geração posterior, literária e filosófica.
Ele é um daqueles raros escritores que, através da ficção, exprime indirectamente questões centrais da sua/nossa época. As questões presentes na sua obra, serão retomadas pelos escritores e filósofos existencialistas (o sem-sentido existencial, a angústia difusa, a máquina burocrática que oprime, a fuga impossível ...).
Museu Franz Kafka em Praga (Rép. Checa)
terça-feira, 20 de outubro de 2020
A 250 ANOS DO NASCIMENTO DE BEETHOVEN
Valentina Lisitsa - Sonata nº17 Op. 31 No.2 «A Tempestade» [*]
A 250 anos do nascimento de Beethoven, estou um bocado triste. Porque me parece que a cultura europeia, da qual ele é um expoente, está em franca involução, para não dizer que se tornou um pálido e fantasmagórico reflexo da civilização centrada no continente europeu.
Se isto significasse que a mesma civilização está a definhar, mas que outras civilizações se ergueram entretanto e tomaram a dianteira, óptimo! Não sou eurocêntrico, nem na cultura, nem no resto.
Mas, para grande pena minha, verifico que existe uma preocupação maior em cultivar a música europeia, dita clássica ou erudita, nos países do extremo-oriente asiático, do que -propriamente - em países ditos «ocidentais». Estes incluem EUA, Canadá, Austrália, Brasil... ex-colónias britânicas, espanholas, francesas e portuguesas.
O movimento de destruição dos vestígios do passado, a que se tem assistido nos EUA, impulsionado por forças obscuras, em franca contradição com supostas filiações ideológicas (**), não nos deixa agoirar nada de bom para o futuro deste país e doutros. Muitos têm estado sob influência e tentam imitar tudo o que vem dos EUA.
Durante mais de meio século, nos EUA e na Europa Ocidental, foi-se propagando, porque convinha aos poderes, uma cultura de irresponsabilidade, de promoção/sedução da juventude, com intensa propaganda comercial de toda a ordem, da música mais abastardada, aos adereços de moda, erigidos em padrão identitário geracional. Com isso, os senhores do poder, não apenas reservavam lucros fáceis, como alimentavam a ilusão dos jovens estarem a manifestar irreverência, revolta, e não a consumir determinados produtos.
A promoção dessa «cultura jovem» pelos mesmos que eles odiavam e desprezavam, enquanto burgueses exploradores... deveria tê-los feito sobressaltar. Mas, estas formas inócuas de manifestar suas diferenças, estavam radicadas somente num sentimento de frustração, sem uma análise das causas profundas das disfunções sociais, na sua base.
O triunfo, além Atlântico, da visão anti-classista, anti-progressista, que consiste em arrumar as pessoas em categorias estanques, faz o jogo dos poderosos. Além de dividir o povo em inúmeras categorias identitárias (falsas), impede-os de ver a realidade em frente: muito poucos se interrogam «em que consiste realmente a opressão e que origem tem essa mesma opressão?»
Os que dominam o discurso da media, querem que as pessoas, incluindo as mais esclarecidas, fiquem confusas. Impõem o discurso deles, a narrativa deles, excluindo ou distorcendo - até à caricatura - qualquer outra visão e análise que entre em contradição com a sua propaganda.
Estamos já num universo totalitário. O totalitarismo dito «soft» da nossa época, consiste em deixar os dissidentes discursar no quase vazio, na ausência de meios para difundir sua mensagem: bem podem falar no «Speakers Corner» de Hyde Park, ou algo equivalente, no universo da Internet, mas... o grande público nunca os ouvirá, pois está colado/condicionado ao que consideram «bonito» (cool), ou na moda (trendy). Estão condicionados pelos que controlam as «redes sociais» (social networks) e grandes empresas de comunicação (media mainstream). Ambas são propriedade de um número muito pequeno de multi bilionários.
Estar «fora de moda», gostar realmente de Beethoven e de outros, é - hoje - uma forma real de dissidência. Porque, para se apreciar música clássica, deve-se ter aperfeiçoado a sua instrução musical e continuar a fazê-lo. Além disso, é preciso cultivar o conhecimento, não apenas dos sons, como do contexto civilizacional que os produziu. Ter este comportamento durante a vida inteira, não é um capricho de seguir uma moda.
As pessoas ignorantes do passado, em todos os sentidos, são as mais manipuláveis, pois os poderes podem facilmente iludi-las. O aligeirar da história, da filosofia e mesmo da língua, enquanto expressão rigorosa e subtil dos pensamentos e sentimentos, tem-se verificado nos programas do ensino básico e secundário. Isto é demonstrativo de que a cultura, a verdadeira, a viva ... é correctamente percebida como um perigo pelos poderosos.
Se eu fosse compositor, escreveria uma sinfonia: Uma sinfonia que começasse com um instrumento solo, por exemplo uma flauta, para se irem juntando outros instrumentos, variando e transformando, até ao infinito, o tema do início.
Faria empréstimos a grandes compositores do passado: não disfarçaria a utilização dos seus temas, evocando-os enquanto homenagem aos mestres do passado e às épocas em que viveram.
Num tempo destes, é revolucionário preservar o passado, sob todas as formas, em todas as artes!
Manuel Baptista
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[*] Para mim, é impossível escolher uma peça de Beethoven, sem sentir que estou a fazer injustiça a várias outras, que são, no meu gosto subjectivo, tão notáveis e tão preciosas como a que escolhi.
(**) Nem Martin Luther King, nem Malcom X, nem Franz Fanon, nem Marx, nem Bakunin, nem Malatesta, nem Gramsci...etc. nada têm a ver com isso!
segunda-feira, 19 de outubro de 2020
A VERDADEIRA LIÇÃO DO TITANIC E O FALSO «GRANDE RESET»
No entanto, não irei aqui repetir os argumentos do autor acima citado, convidando os leitores a lerem o original, porque o meu objectivo é de por em evidência a futilidade das «medidas» que têm sido tomadas no campo das políticas monetárias, ao nível global.
Com efeito, o «rearranjo das cadeiras no convés do Titanic, depois da colisão», analogia frequentemente usada para evidenciar a futilidade de certas medidas perante a avassaladora dimensão da crise que se está a abater - neste momento - sobre a economia mundial, é por demais apropriada, infelizmente.
Considere-se o facto das «elites» no poder (não apenas os governos, como bancos centrais, as organizações internacionais e regionais), nos quererem convencer que as medidas que estão implementando ou que preconizam vão ter uma real implicação no contexto de uma crise sistémica, como a presente.
Só para colocar em perspectiva a ilusão e futilidade das suas «medidas», consideremos a questão da digitalização das moedas (ou, pelo menos, as mais usadas para as transacções internacionais):
A digitalização vai resolver para eles - banqueiros e governos - o problema da «fuga» à visibilidade de transacções directas entre indivíduos. Ela ocorre, pelas razões mais diversas. Longe de ser veículo principal de transacções criminosas ou ilegais, a grande maioria das trocas em «papel-moeda» é do domínio da «economia informal». O canalizador que não entrega factura de uma reparação, se o cliente não a pede; o pequeno agricultor que vende à beira da estrada os seus legumes e frutas, etc. conseguem sobreviver, mas o seu negócio deixa de ser rentável no momento em que as transacções passam a ser digitais.
Na realidade, esta economia dita informal é vital e será fortemente afectada, mormente nos países pobres, chamados do Terceiro Mundo, onde nem sequer existe cobertura de energia eléctrica em todo o território e onde nas cidades a quantidade de interrupções do fornecimento eléctrico inviabiliza o uso - na prática - de equipamento electrónico.
Ora, o «Grande Reset» que nos querem impingir, tem como medida emblemática a digitalização absoluta das divisas. Nas economias mais afluentes, calcula-se que mais de 70% das transacções são efectuadas sem utilização de dinheiro físico. Das quantidades totais transaccionadas, a parte da utilização de dinheiro físico tem diminuído nos últimos anos. Como medida indirecta desse fenómeno, pode-se observar a cada vez maior percentagem de comerciantes que aceitam cartões como pagamento, assim como a estagnação do número ou diminuição de caixas automáticas, para levantamento de dinheiro em notas. Portanto, o público está familiarizado com a digitalização do dinheiro, a sua utilização quotidiana mostra-o.
Mas, a perversidade desta mudança reside noutro ponto...
Com efeito, têm sido feitos estudos, no FMI e noutras instâncias, sobre o efeito que teria a utilização de juros «muito» negativos (juros de -5 , -6 ou -7%) nas contas bancárias.
Este princípio de cobrar juros aos depositantes, tem como razão primeira a impossibilidade da banca comercial ser rentável com a estrutura geral dos juros que tem sido levada a cabo. Os juros directores - que comandam os restantes juros - estão num ponto de quase zero. Nesta situação, é impossível os bancos comerciais obterem rentabilidade real de operações de empréstimo. Para colmatarem isso, os bancos têm feito uma política de cobrança de taxas, pelos mais diversos serviços; estas, são vistas pelo público como extorsão, pois as operações são hoje automáticas: na imensa maioria, não envolvem trabalho humano de qualquer espécie.
Os bancos centrais querem empurrar as pessoas a consumir e não a fazer quaisquer poupanças. O «mantra» de que é preciso «estimular» a economia, para que ela tenha uns 2% de inflação anual, é a política decorrente de empréstimos, sem conta e medida, sem haver qualquer correspondência do lado dos bens e serviços produzidos. Devido a essa política, os Estados (as empresas e indivíduos também) estão metidos num ciclo vicioso. As economias do «mundo ocidental» estão cada vez mais enterradas em dívidas, que já são - em muitos casos - dívidas não cobráveis. Os Estados já estão na espiral descendente de terem de pedir mais e mais emprestado para cobrir os juros das dívidas que contraíram. Este comportamento insustentável verifica-se numa maioria dos países «ocidentais».
O incentivo constante a gastar, a não poupar, tem efeitos nefastos, também, nas famílias: em certos países, uma grande parte não possui capacidade de acorrer a qualquer pequeno imprevisto. Um estudo recente indicava que 40% das famílias, nos EUA, não dispunha sequer de uma soma de 500 dólares em caso de imprevisto. Mas, na economia dos países também tem efeitos graves, pois é das poupanças acumuladas que se forma a massa de capital necessária para os empreendimentos, investimento produtivo e reprodutivo. Também aqui, a renúncia em estimular o comportamento de poupança das pessoas, por um lado e, por outro, o constante comportamento despesista por parte dos Estados, conduz inevitavelmente ao aumento de impostos. Estes são uma punção à economia real, é dinheiro quase todo usado em despesas e muito pouco em investimentos, que trariam aumento de riqueza.
Assim, com dinheiro digital a 100%, a economia real não vai sofrer nenhum impulso. Vai tornar-se imperioso gastar todo o dinheiro que se ganhou. A formação de poupança nas famílias não irá ocorrer. Não haverá dinheiro disponível para investimento. Entretanto os bancos ficarão aliviados, pois poderão impunemente fazer uma punção periódica nos salários e pensões, sem qualquer problema. Será exactamente tão fútil e perverso como a preocupação do comandante do Titanic, em impedir que a "ralé" da terceira classe se misturasse com os da primeira.
O investimento produtivo, feito pelos Estados ou pelas empresas, esse sim, seria o caminho para se desfazer o ciclo vicioso. Seria o caminho da responsabilidade monetária, onde não houvesse possibilidade de traficar o valor do dinheiro. A inflação é a salvação dos governos, porque ficam obrigados a pagar o mesmo, mas - de facto - essas quantias em dívida (e os próprios juros no caso de taxas fixas) vão sendo cada vez menos expressivas. Historicamente, demonstra-se que os governos, em situações de aperto, recorrem à impressão monetária. Mas, esta impressão não pode ocorrer, sem que seja muito óbvio o jogo, se houver um padrão ouro. Por isso, os governos não gostam dele. Porém, o padrão ouro funcionou muito bem internacionalmente e foi o garante da estabilidade monetária de 1815 (fim das guerras napoleónicas) até 1914 (rebentar da Iª Guerra Mundial), para falarmos apenas dos tempos mais recentes em que havia papel-moeda em circulação. Só a política económica e monetária keynesiana, que tem tido um papel hegemónico nos governos, nos bancos centrais e noutras instituições do mundo «ocidental», tem levado o sistema monetário e económico para este território de constante aumento descontrolado da massa monetária.
Muitos dos problemas económicos actuais decorrem da visão neo-liberal, keynesiana, que tem dominado: desde o endividamento, a desorganização da produção, até à guerra monetária e comercial, com o risco real de guerra física em larga escala.
PS1: O Guia para o Grande Reset de James Corbett fornece muitas pistas para compreender o que se está a passar.