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terça-feira, 20 de outubro de 2020

A 250 ANOS DO NASCIMENTO DE BEETHOVEN

                   Valentina Lisitsa - Sonata nº17 Op. 31 No.2 «A Tempestade»  [*]


 A 250 anos do nascimento de Beethoven, estou um bocado triste. Porque me parece que a cultura europeia, da qual ele é um expoente, está em franca involução, para não dizer que se tornou um pálido e fantasmagórico reflexo da civilização centrada no continente europeu. 

Se isto significasse que a mesma civilização está a definhar, mas que outras civilizações se ergueram entretanto e tomaram a dianteira, óptimo! Não sou eurocêntrico, nem na cultura, nem no resto.

Mas, para grande pena minha, verifico que existe uma preocupação maior em cultivar a música europeia, dita clássica ou erudita, nos países do extremo-oriente asiático, do que -propriamente - em países ditos «ocidentais». Estes incluem EUA,  Canadá, Austrália, Brasil... ex-colónias britânicas, espanholas, francesas e portuguesas. 

O movimento de destruição dos vestígios do passado, a que se tem assistido nos EUA, impulsionado por forças obscuras, em franca contradição com supostas filiações ideológicas (**), não nos deixa agoirar nada de bom para o futuro deste país e doutros. Muitos têm estado sob influência e tentam imitar tudo o que vem dos EUA. 

Durante mais de meio século, nos EUA e na Europa Ocidental, foi-se propagando, porque convinha aos poderes, uma cultura de irresponsabilidade, de promoção/sedução da juventude, com intensa propaganda comercial de toda a ordem, da música mais abastardada, aos adereços de moda, erigidos em padrão identitário geracional. Com isso, os senhores do poder, não apenas reservavam lucros fáceis, como alimentavam a ilusão dos jovens estarem a manifestar  irreverência, revolta, e não a consumir determinados produtos

A promoção dessa «cultura jovem» pelos mesmos que eles odiavam e desprezavam, enquanto burgueses exploradores... deveria tê-los feito sobressaltar. Mas, estas formas inócuas de manifestar suas diferenças, estavam radicadas somente num sentimento de frustração, sem uma análise das causas profundas das disfunções sociais, na sua base.

O triunfo, além Atlântico, da visão anti-classista, anti-progressista, que consiste em arrumar as pessoas em categorias estanques, faz o jogo dos poderosos. Além de dividir o povo em inúmeras categorias identitárias (falsas), impede-os de ver a realidade em frente: muito poucos se interrogam «em que consiste realmente a opressão e que origem tem essa mesma opressão?»

 Os que dominam o discurso da media, querem que as pessoas, incluindo as mais esclarecidas, fiquem confusas.  Impõem o discurso deles, a narrativa deles, excluindo ou distorcendo - até à caricatura - qualquer outra visão e análise que entre em contradição com a sua propaganda. 

Estamos já num universo totalitário. O totalitarismo dito «soft» da nossa época, consiste em deixar os dissidentes discursar no quase vazio, na ausência de meios para difundir sua mensagem: bem podem falar no «Speakers Corner» de Hyde Park, ou algo equivalente, no universo da Internet, mas... o grande público nunca os ouvirá, pois está colado/condicionado ao que consideram «bonito» (cool), ou na moda (trendy). Estão condicionados pelos que controlam as «redes sociais» (social networks) e grandes empresas de comunicação (media mainstream). Ambas são propriedade de um número muito pequeno de multi bilionários.

Estar «fora de moda», gostar realmente de Beethoven e de outros, é - hoje - uma forma real de dissidência. Porque, para se apreciar música clássica, deve-se ter aperfeiçoado a sua instrução musical e continuar a fazê-lo. Além disso, é preciso cultivar o conhecimento, não apenas dos sons, como do contexto civilizacional que os produziu. Ter este comportamento durante a vida inteira, não é um capricho de seguir uma moda. 

As pessoas ignorantes do passado, em todos os sentidos, são as mais manipuláveis, pois os poderes podem facilmente iludi-las. O aligeirar da história, da filosofia e mesmo da língua, enquanto expressão rigorosa e subtil dos pensamentos e sentimentos, tem-se verificado nos programas do ensino básico e secundário.   Isto é demonstrativo de que a cultura, a verdadeira, a viva ... é correctamente percebida como um perigo pelos poderosos.

Se eu fosse compositor, escreveria uma sinfonia: Uma sinfonia que começasse com um instrumento solo, por exemplo uma flauta, para se irem juntando outros instrumentos, variando  e transformando, até ao infinito, o tema do início. 

Faria empréstimos a grandes compositores do passado: não disfarçaria a utilização dos seus temas, evocando-os enquanto homenagem aos mestres do passado e às épocas em que viveram. 

Num tempo destes, é revolucionário preservar o passado, sob todas as formas, em todas as artes!

Manuel Baptista

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[*] Para mim, é impossível escolher uma peça de Beethoven, sem sentir que estou a fazer injustiça a várias outras, que são, no meu gosto subjectivo, tão notáveis e tão preciosas como a que escolhi. 

(**) Nem Martin Luther King, nem Malcom X, nem Franz Fanon, nem Marx, nem Bakunin, nem Malatesta, nem Gramsci...etc. nada têm a ver com isso!


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O ESPECTRO DO POLITICAMENTE CORRECTO

Hoje, quando pessoas bem pagas, com um lugar garantido no «establishment», tais como professores universitários, opinadores com lugar cativo em diversos canais de tv ou colunas de opinião nos jornais ditos de referência, se colocam em bicos de pés e clamam contra o escândalo da eleição de Trump, anunciando um terrível futuro, semelhante ao que se viveu na Europa sob Hitler, o que é que está em causa?
Afinal essa ínfima minoria que assim se exprime mostra a sua identidade de classe. É a que se aproveitou dos privilégios, todos estes anos. 
A que substituiu o «politicamente correto» à luta de classes, a que incentivou toda a espécie de divisões no seio da classe trabalhadora, com a ideologia identitária. 
Quando me refiro à ideologia identitária, não estou a negar que as pessoas tenham identidades definidas, num certo grau, pelas suas origens étnicas, pelo género, pela orientação sexual ou por outras características eminentemente culturais. 
Estou a referir-me à sobreposição dessas «marcas» de identidade a quaisquer considerações de classe socio-económica, à sua hipertrofia e até à redução total da identidade complexa de um ser humano, a um desses vetores. 
Assim, um determinado indivíduo «é» antes de mais um «branco» da «classe média»... Eliminam a identidade de classe, se dissessem «um trabalhador», seria susceptível de solidariedade espontanea, portanto tem de ser algo «diferente», a «classe média» (uma espécie de «tampão» entre trabalhadores e patronato). 
Eliminam a própria identidade étnica, pois colam a essa pessoa a pseudo-identidade étnica de «branco», a qual não tem significado, a não ser ideológico, como quem diz: «és branco/a, fazes parte dos exploradores, dos que se serviram dos escravos de cor, ao longo dos séculos e ainda estás cheio/a de complexos de superioridade rácicos»... É isto que se está a transmitir. 
Tornou-se impossível suportar o ataque ideológico constante, sem terem as pessoas uma reação de rejeição, pois seria necessário analisar friamente o discurso desses cultores do «politicamente correto» para perceber o quão odioso ele é, o quão anti-liberdade de opinião, o quão racista, no fundo, sob a etiqueta de «anti-racismo». O único comportamento verdadeiramente anti-racista é a não discriminação, não julgar alguém pela sua origem étnica, seja ela qual for.  
O mesmo se passa com o «feminismo bom tom», que utiliza a separação natural, biológica, dos sexos, para dividir as pessoas, para fazer «guerra de sexos»:  para tal, vão buscar uma mítica «identidade feminina», ou a construção dessa identidade, como se as pessoas devessem «construir» a sua sexualidade, pelo mesmo processo como constróem uma carreira... Totalmente absurdo, mas funciona, pois as pessoas envolvidas nessa dialética se fixam nessa «identidade de género» e passam a considerar tudo sob o ângulo dessa ideologia. 
Ser-se igual em termos de igualdade masculino/feminino só pode ser entendido com ter iguais direitos, serem ambos dignos da mesma consideração e respeito. Quando alguém coloca o seu género «acima» do outro, está também a ser ridículo/a, além de discriminador/a... 
O pensamento «politicamente correto» conseguiu - em poucas décadas- substituir as ligações naturais das pessoas que são sujeitas a trabalhar para viver, a classe trabalhadora, sem aspas - pelas falsas categorias como «classe média» e «identidade de género».  
Assim, ao serviço dos seus donos, os que detêm o privilégio de falar e escrever nos media têm propagado, em moldes de lavagem ao cérebro, a linguagem «politicamente correta», que apenas esconde -como um véu- a sua canina sujeição à classe dominante, ao 0,1%. Os que detém as rédeas do poder, permitem-lhes assim usufruir das migalhas do regabofe que tem sido «a crise», quando vista do lado dos dominantes.
As pessoas que são mais influenciadas pelo «politicamente correto» confundem as questões e vivem numa correria de «lutas» por esta ou aquela «causa» confundindo militantismo, com ativismo. 
- Ativismo é uma pessoa auto-assumir-se como alguém sempre pronto a «aderir» a uma luta, sem analisar os fins ou os meios da mesma. 
- Militantismo é o contrário, ou seja, quando se adere a determinadas lutas, isso é feito porque se refletiu e decidiu, conscientemente assim fazer. Além disso, o militante toma uma parte verdadeiramente ativa pois contribui para a organização das referidas lutas, reflete sobre as estratégias e táticas mais apropriadas, mais consentâneas com os fins em vista. 
O «ativista» apenas quer mostrar aos outros, que está «na onda», que ele/a é «radical q.b.» enfim, é uma pose, um estado de espírito... o seu estado de espírito vai de uma exaltação e agitação enorme, para uma completa indiferença e inatividade...
Foi assim que os senhores do capital e do poder conseguiram dominar nestes anos todos: dividindo para reinar. Nada mais velho e mais eficaz do que esta fórmula. 
Para esse fim, dispõem de uns opinadores, uma espécie de cães de guarda do regime, revestidos de boa consciência, cheios da sua missão de esclarecer as massas... 
Sim, eles estão a fazer o seu papel sujo, todos os dias, a todo o momento, na media corporativa, na qual não têm lugar, nunca, as vozes alternativas realmente capazes de denunciar as verdadeiras desigualdades, os verdadeiros crimes contra as pessoas, contra o ambiente, etc. 
As pessoas incautas vivem na ilusão de uma «liberdade» de informação e de opinião, que - na verdade- é cada vez mais escassa e marginalizada. 
A cegueira atinge as pessoas que teriam todas as razões do mundo em se unirem em torno de objectivos comuns, em vez de se deixarem dividir por «lutas» identitárias. Elas pensam: deixa-me ter atividade neste domínio, porque ao menos aqui pode-se conseguir melhorias no imediato, enquanto a luta pelo derrube do sistema capitalista, no seu todo, será muito difícil, haverá imensos obstáculos, posso sofrer muito mais por me envolver nela, ela tem estado a ser criminalizada.
No fundo, é esse o raciocínio de muitas pessoas, cheias de boa vontade, de mudar algo. 
Querem ser realistas, não reivindicam «o impossível», que seria mudar a própria base sobre a qual assenta a sociedade, a sua organização e a sua produção. 
É assim que a luta por um socialismo autêntico, não um capitalismo de Estado, se foi tornando cada vez menos prestigiada, cada vez mais «antiquada»... 
Mas podemos compreender os truques que usaram para nos enredar:
1- Desfazer a consciência de classe: os explorados, os assalariados, deixam de estar unidos numa classe... fala-se de «classe média» e dos «pobres»...o termo de «burguesia», por contraste, caiu em desuso, tal como o de «proletariado»
2- Criar falsas consciências pelas lutas identitárias: uma pessoa bem intencionada indigna-se com uma discriminação, uma forma de opressão, então considera que deve fazer seu estandarte desta causa, que terá prioridade sobre tudo o resto...
3- Demonizar a luta e a unidade de classe verdadeiras: com base em tais ativismos identitários, os explorados e oprimidos estarão separados, mesmo quando a sua união poderia trazer vitórias imediatas. Por vezes, os pobres, os explorados, os marginalizados irão mesmo combater-se ferozmente uns aos outros, em vez de combaterem o inimigo comum, a classe opressora.

São precisas pessoas com coragem e lucidez para reconhecerem esta estratégia....Para reconhecerem que ela foi aplicada com persistência e talento pela classe dominante... Que ela resultou, em grande parte, o que explica o marasmo em que se encontra a luta de classes, nesta época em que a classe trabalhadora tem sofrido tanto do ponto de vista económico, como de direitos.
Mas as pessoas -coletivamente- são capazes de inverter completamente as situações, uma vez que tomem consciência dos problemas, uma vez que sejam capazes de ver claramente o que é preciso fazer.
«Será que tal posição X, tal luta Y, serve o objetivo de aumentar a unidade e consciência de classe geral dos trabalhadores, ou não?» 
Esta será uma pergunta-chave para já não se deixarem manipular, para deitarem pela borda fora falsos conceitos, encontrarem sua orientação própria, evitando uma  série de becos-sem-saída...