segunda-feira, 31 de julho de 2017

CAN'T BUY ME LOVE...?


Estamos sempre ocupados a medir coisas que supomos saber medir, mesmo a felicidade! Ou seja, acreditamos que existe uma maneira de acrescentar mais felicidade, «amor», apenas com um incremento quantitativo, ou com uma diminuição de sofrimento… mas - afinal - as coisas não são bem assim! Embora pareça que o sofrimento humano global diminuiu muitíssimo, a  verdade é que nós, que vivemos numa sociedade relativamente protegida da pobreza em massa, de catástrofes como a guerra ou as suas consequências, não temos em conta a evolução global do mundo. Hipertrofiamos o que está à nossa volta, ao ponto de tudo o que esteja um pouco mais longe do nosso olhar é como se não existisse, ou tem um estatuto de algo abstracto… A sociedade globalizada, em termos de informação, é (paradoxalmente) uma sociedade extremamente centrada no seu umbigo e quando não é assim, quer avaliar os outros, as outras sociedades, pela bitola da sua própria existência.
A qualidade está sempre a ser preterida pela quantidade. A aparência, o «look», é o que importa. Nesta sociedade, não existe nenhuma igualdade de facto, nem «meritocracia», pois as pessoas mais medíocres podem ser içadas aos lugares cimeiros dos negócios, da política, gozar duma popularidade assente apenas em dinheiro, em poder económico. Os pobres ou os remediados não contam ou contam apenas como números, como consumidores, como contribuintes, como votantes… enfim como «coisas» que os «de cima» têm (de vez em quando) de seduzir, têm de fingir que os «compreendem», para melhor perpetuar a servidão voluntária.
A época que vivemos, mesmo nos países afluentes, é caracterizada por uma involução social, mesmo em termos de certos índices quantitativos. As patologias psíquicas e o consumo de psicofármacos (com ou sem prescrição médica) têm aumentado exponencialmente. O sedentarismo, a comida hipercalórica, a acumulação de agressões ambientais, fazem aumentar também exponencialmente os números da diabetes, da obesidade, do cancro …
Os afectos são tratados de forma completamente inadequada. As pessoas jovens em particular são, muitas vezes, enredadas numa visão totalmente distorcida do prazer e da sexualidade. Os suicídios entre jovens também têm crescido.
Eu não sei se podemos considerar que existe um «progresso», quando temos tantas facilidades por um lado e tanto desperdício e tantos problemas ambientais, decorrentes dessa abundância, por outro. Apenas estamos a atirar os problemas para as gerações seguintes. Sabemos que terão muito menos recursos naturais, em todas as coisas largamente consumidas, desde as jazidas de petróleo, às de metais diversos; desde a água disponível para consumo dos humanos, à terra fértil e aos ambientes não degradados, não contaminados.
Valorizamos o dinheiro, que é um mero símbolo, mas - ao mesmo tempo - deixamos que os bancos centrais e os governos organizem uma orgia de desvalorizações, por «impressão monetária», na realidade, electrónica. Há bem pouco tempo atrás, isso era um crime grave! Na realidade, valorizamos o dinheiro enquanto «fétiche», temos uma visão realmente alienada do dinheiro, que vemos como fim em si mesmo, quando apenas deveria ser considerado um meio para determinados fins.
A humanidade tem de voltar a viver noutra dimensão que não a dos bens materiais; não apenas a nutrição do corpo, não apenas a satisfação do desejo hedónico. Deveria parar de «medir» o seu sucesso ou fracasso pela abundância ou falta de dinheiro.
A sociedade fragmentou-se, não existe propriamente, de facto: existe uma colecção de indivíduos, mas solitários, mesmo quando se acoplam. Mesmo quando «convivem», não o fazem senão na superfície mais epidérmica. A sua vacuidade serve para esconder, a eles próprios, a sua tristíssima condição. Muitas pessoas teimam na ilusão pois, lá no fundo, têm medo de serem confrontadas com a sua própria vacuidade.
Uma espiritualidade, que não é sinónimo de religião, mas é outra coisa, pode ajudar a construir indivíduos, famílias e comunidades mais em harmonia consigo próprios. Só podemos realmente progredir na esfera social com uma busca colectiva, mas de proximidade. Os passos teoricamente são simples de enunciar:  
- Reconhecimento da nossa própria alienação e o assumir de que cada pessoa individual não pode, por si própria, encontrar a solução.
- Construção de comunidades intencionais, ou seja, que ponham em comum energias e projectos convergentes, para mudar qualitativamente (aqui e agora) as nossas vidas.
   





SARAH VAUGHAN: THE SHADOW OF YOUR SMILE

Esta canção de amor extraída do filme «The Sandpiper» de 1965, com Liz Taylor e Richard Burton, tornou-se muito famosa e foi cantada por inúmeros intérpretes. 

The shadow of your smile When you have gone Will color all my dreams And light the dawn Look into my eyes my love and see All the lovely things you are to me Our wistful little star It was far, too high A teardrop kissed your lips And so did I Now when I remember spring All the joys that love can bring I will be remembering The shadow of your smile

                                        


Aqui, mais um exemplo da portentosa voz de Sarah Vaughan, da sua sensibilidade artística e bom gosto, que tornam qualquer melodia ou canção por ela  interpretada, algo muito pessoal... 
No final desta gravação, extraída de um documentário, ouve-se também 
comentar que Sarah fumava, bebia, etc. e não se importava de afirmá-lo. 


sexta-feira, 28 de julho de 2017

O SONHO DOS «NEOCONS»: CONQUISTAR A RÚSSIA

Há mais de vinte anos, o regime decorrente da dissolução da URSS estava sob ataque cerrado.
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Os «conselheiros», que rodeavam Yeltsin e toda uma corte da barões envolvidos na maior traficância de bens nacionais jamais ocorrida em toda a História, não apenas russa, como de todo o planeta, tinham como verdadeira missão, não a transformação dos despojos da URSS numa «democracia» de mercado ao estilo ocidental, mas sim numa neo-colónia dos triunfadores da guerra fria, o Império USA e seus acólitos atlantistas.
O saque foi interrompido no entanto, porque Yeltsin, apesar de muito doente de alcoolismo e de cardiopatia, percebeu que estava a ser um joguete de forças que apenas desejavam esse destino para a Rússia, o de neo-colónia.

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Chamou Putin, uma surpresa para os atlantistas e para muitos dos bilionários russos recém-instaurados graças à década de 90, essencialmente a pior vivida pela população russa, desde o fim da IIª Guerra mundial.
Basta lembrar a subida exponencial dos suicídios, do alcoolismo, a diminuição brusca da esperança de vida, a fome, a miséria, o aumento de banditismo, além do terrorismo associado a islamitas salafitas na Tchetchénia e noutras repúblicas do Caucaso.  

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Putin e seus apoiantes souberam dominar os donos de fortunas (Berezovsky, Khodorkovsky…) obtidas com a compra de empresas por um preço ridículo e imediatamente rentáveis.

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Esta venda ao desbarato processou-se da seguinte maneira: os grandes conglomerados da URSS eram juridicamente propriedade do povo soviético. Quando se procedeu ao desmantelamento do regime soviético, houve que dar uma aparência de legalidade a esse processo. Lembraram-se então de distribuir títulos de propriedade dos bens nacionais a cada cidadão russo, por forma que ele teria a possibilidade de transacioná-los.
Assim aconteceu com praticamente todos os tais «donos» de títulos, pois eles estavam perante uma desproteção completa face à hiperinflação que se abatera sobre o rublo (vejam as taxas de desvalorização, nos anos 90, de 1 para mil!).
Com um rublo em queda livre, uma involução total do aparelho produtivo, um aumento exponencial do crime organizado, etc… não foi difícil a um certo número de «espertos» obterem os tais títulos de propriedade, oferecendo aos seus detentores somas muito ridículas, aos olhos de hoje.
Assim, arrivistas da pior espécie conseguiram - num ápice - multiplicar as suas fortunas por dez ou por cem, através de métodos com a aparência de «legais»!
Na primeira década do nosso século deu-se o reerguer do Estado russo, pelas mãos de Putin e seus apoiantes. Desencadeou-se um processo de reverter parte das riquezas, principalmente petróleo e gás, para benefício nacional, sem eliminar porém a totalidade dos oligarcas formados na década anterior.
A partir desse momento, com a restauração da produção industrial e a correlativa capacidade de exportação da Rússia, os aliados atlantistas do Império, começaram a perceber que seria melhor entrarem em parceria estratégica com o novo senhor do Kremlin, beneficiando de fluxo contínuo de gás natural para abastecer as suas economias, assim como de uma parte importante do petróleo (extra OPEP), não sendo mais reféns energéticos absolutos dos países árabes, principalmente da Arábia Saudita e dos Emiratos.

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Estavam eles - os dirigentes dos principais estados da UE - muito contentes, quando os americanos - sob a administração Obama - decidem interferir pesadamente, através de ONGs que recebiam ajudas de milhões (foram, pelo menos, gastos 5 mil milhões, segundo disse Hillary Clinton em público) para derrubar o governo constitucional e democraticamente eleito na Ucrânia.
Em Fevereiro de 2014, sob a estreita tutela de Victória Nulan, os neo-nazis conseguiram derrubar, num golpe violento, o governo ucraniano.

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Eram saudosos do tempo em que legiões ucranianas (o seu chefe, Stepan Bandera, foi promovido a herói e inspirador dessa escumalha neo-nazi) se aliaram a Hitler para massacrar polacos, judeus, e «vermelhos». São histéricos capazes das piores atrocidades, como vieram a demonstrar meses depois, em Odessa. Furiosamente anti-russos, ao ponto de não deixar nenhuma hipótese às províncias do leste, maioritariamente russófonas, senão ficarem independentes do poder instalado.
Os americanos tinham o que queriam. As relações, entre a Rússia e a União Europeia, tinham-se degradado. Para culminar, fabricaram o trágico incidente com o avião de passageiros em Julho de 2017, para incriminar falsamente os russos pelo sucedido, ao mesmo tempo que inviabilizavam uma peritagem independente e neutral para investigar as causas e circunstâncias desta tragédia.

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Desde 2014 até agora e apesar de todas as variações de humor em Washington, apesar da mudança de presidente, que se presumia ser decisiva em política internacional, as políticas de Washington resumem-se a impor um regime de sanções, restringindo o comércio, proibindo  contactos, cercando a Rússia com mísseis, etc.
Este tipo de comportamento é compensador para manter a hegemonia da superpotência no curto prazo, mas tem o grave inconveniente de não poder ser levado para além de um certo ponto. Com efeito, o ponto de ruptura já foi alcançado em dois casos, de forma totalmente visível:
- com o governo turco - há cerca de um ano- na sequência de uma tentativa de golpe contra Erdogan, que este afirma teve apoio dos EUA.  

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- agora, com o governo alemão, visto que a Alemanha tinha sido poupada a incluir a construção do gasoduto Nord Stream no regime de sanções, imposto a todos os membros da NATO e decorrente da situação na Ucrânia.

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Este gasoduto é uma obra conjunta da Rússia e da Alemanha e irá abastecer em gás natural este último país, por um trajeto bem mais seguro do que os gasodutos actuais que passam pela Ucrânia e são susceptíveis de sabotagem, de serem danificados por falta de manutenção adequada, etc.
A Alemanha é um país industrial que teve o bom senso de não exportar toda a sua infraestrutura e produção e, portanto, necessita absolutamente de um fornecimento  regular de energia, a um preço competitivo, coisa que os EUA não poderão dar, pois não têm capacidade de colocar seus excedentes do «fracking» de forma regular, durante largo prazo. Nem jamais conseguirão fazê-lo a preços inferiores aos russos. Ou seja, eles queriam obrigar os europeus a privarem-se de uma fonte de abastecimento de energia abundante e relativamente barata, por uma energia mais cara e contingente!

Não é difícil ver que a hegemonia dos EUA está periclitante.

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É muito menos fácil compreender para onde se dirige o mundo, dado que existem demasiadas forças contraditórias na geopolítica mundial e que as questões decisivas quase nunca são expostas de forma franca e aberta. Pode mesmo dizer-se que nunca o são, pois raras vezes se vem a saber realmente o que estava em jogo, mesmo passados decénios sobre os acontecimentos.
Do meu ponto de vista, a perigosidade do Império Anglo-Americano irá crescendo. Porque não conseguirá ter sucesso em amarrar o sistema financeiro mundial ao petro-dólar, mas verá cada vez mais países se unirem em torno de projectos concretos que irão viabilizar maior intercâmbio, comércio, desenvolvimento, através da iniciativa «One Belt One Road», ou seja, «a nova rota da seda».
Como tem sido hábito desde o final da II Guerra Mundial, os grandes poderes irão continuar a disputar as suas zonas de influência através de guerras  por procuração, cada um procurando desestabilizar o adversário em zonas críticas e onde estejam já presentes as sementes da discórdia.
O Médio Oriente vai continuar por algum tempo a sofrer este destino, como encruzilhada entre vários interesses contraditórios e numa região do globo simultaneamente rica em termos de combustíveis fósseis e vital em termos das rotas comerciais marítimas Leste-Oeste.
Mas o grande «bolo» será, sem dúvida, o Continente Europeu, demasiado grande e poderoso para ser - simplesmente - «neo-colonizado» por americanos ou por sino-russos.
Apenas será possível, a qualquer deles, obter parcerias estratégicas, ou seja, em que a Europa mantenha a sua capacidade de autonomia, não sendo lacaio ou vassalo de nenhum dos superpoderes.
Por isto, ou apesar disto, os EUA apostaram - veja-se o papel deles no golpe da Ucrânia- na desestabilização e em subjugar os seus aliados europeus. O tiro saiu-lhes pela culatra. No entanto, eles deixaram no seu rastro, destruição de vidas, de economias e vários Estados falidos. Não é apenas o caso da Ucrânia, mas também da Líbia e, num certo grau, o da Síria.
Certamente, a principal causa do fluxo de refugiados que assola a Europa, nestes anos e tem desestabilizado os vários governos, é a política americana no Médio Oriente e Norte de África.

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Recentemente, nos EUA, o grupo designado por «neocons», que se entrincheirou há décadas no «Estado profundo», tem mostrado como ainda possui um peso muito grande, por directa ou indirecta sabotagem da política de Trump. Com isso, pretende obrigar o poder presidencial a conformar-se com a política internacional que tem vindo a ser seguida, indiferentemente, por administrações republicanas e democratas.  
É necessário compreender que este grupo dos «neocons» não se contenta com os EUA serem a primeira potência militar do planeta, eles querem dominância total: isto significa que o seu  objectivo é o de fazer com que não existam competidores, não apenas no plano militar, como no plano económico e de desenvolvimento científico-tecnológico, pois estes três aspectos se entrelaçam de forma indissociável.
Assim, o plano deles é tornar o mais difícil possível, que a China e a Rússia se desenvolvam, se expandam, tanto nas suas capacidades industriais, como nas trocas comerciais com o resto do mundo. Eles querem que existam «regimes espantalhos», como o Norte Coreano, para «justificar» uma política de sanções.
Esta forma de guerra económica, de assédio, serve muito bem aos EUA para continuar a intimidar (fazer bullying) aos outros países, sejam eles competidores ou aliados.

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A lógica neocon está completamente viciada por uma visão megalomaníaca de uma América superpoder «bondoso» da história mundial, apenas ela capaz de levar a todo o globo a democracia como eles a concebem, ou seja, o  regime liberal capitalista, tal como existe na Europa e América do Norte.
No longo prazo, porém, eles sabem que a estratégia dita de «contenção» não chega.
Para o seu objetivo ser alcançado, para essa tal hegemonia, têm de desmantelar a Rússia.
A Federação Russa terá, na perspectiva deles, de se fragmentar, ficando como uma série de mini-estados facilmente controláveis, sem poder para contrariar o grande poder hegemónico.
Eles não temem a guerra nuclear; pensam que ela será ocasião de arredar definitivamente a competição que faz obstáculo aos seus grandiosos projetos.

Se esta descrição vos parece vinda de mentes enlouquecidas, pois é verdade: mas não é a minha, nem a de muitos analistas que descrevem os problemas, mais ou menos, nos mesmos termos.
Ela é a visão louca de um poderoso grupo, os «neocons», que tem dominado totalmente a política externa americana desde os tempos do presidente Bill Clinton e tem mantido o seu controlo, apesar das mudanças na Presidência e no Congresso, nestas últimas décadas.

[OBRAS DE MANUEL BANET] PROJECTO PARA UMA SUITE

PROJECTO PARA UMA SUITE*

1-  Andante maestoso

À hora em que o falcão desdobra as suas asas e se eleva para, logo de seguida, planar acima das estepes ainda silenciosas, ouve-se o trotar longínquo de uma mula.
Na curva do caminho pedregoso, surgem a montada e seu cavaleiro, talvez centauro, sobrevivente do tempo em que os licórnios vinham comer flores nas mãos de donzelas apenas recobertas pelo movediço manto de seus cabelos acetinados... do tempo em que os pomos de ouro eram fruto das árvores existentes nos jardins das Hespérides... desse tempo em que  os homens e as mulheres podiam entregar-se sem mácula aos alegres jogos do amor, sob as ramagens acolhedoras de bosques verdejantes.
Agora que o cavaleiro se encontra mais próximo, já se podem distinguir os traços do seu jovem rosto: seus olhos parecem perdidos na contemplação do horizonte; seus lábios finos apenas entreabertos sugerem – mais do que desenham – um sorriso no seu rosto. Todo ele respira nobreza feita de serenidade, de força tranquila, de fusão com a paisagem grandiosa e bravia.


2- Allegro con moto

Duas criança brincam no terreiro de uma casinhota à beira da estrada. Seus gritos estridentes encorajam montadas imaginárias, aladas sem dúvida, como Pégaso; em torno dos seus pés descalços elevam-se nuvens de poeira doirada.
De rompante, começam aã descida do outeiro, fazendo rolar pedras e torrões de terra, numa carga esfuziante até À beira do riacho onde se vão refrescar; mergulham seus corpos na água turbulenta, dando enormes espadeiradas na sua superfície, que afugentam libélulas e outros insectos multicolores... nos seus espíritos juvenis, mais não são do que uma armada de piratas num oceano imenso.
As sombras dos salgueiros alongam os seus braços, afagando os rapazes num amplexo enternecido. O Sol esconde-se atrás das colinas, lá ao longe, fazendo piscadelas aos dois irmãos despreocupados.
Assim como quem se despede da sua amada, mergulham eles uma última vez, antes de saírem deste lugar encantado, com os seus corpos reluzentes, percorridos por arrepios a cada carícia da brisa.


3- Adagio molto

A sombra invade lentamente o vale; a gritaria das aves extingue-se progressivamente, dando lugar a silêncios prolongados, entrecortados de quando em vez, por uivos longínquos, que o eco das montanhas reproduz com várias intensidades. Esses uivos produzidos por um velho lobo, parecem assim provir de uma numerosa alcateia.
Depois, quando a única luz que percorre as encostas escarpadas das montanhas é só a do disco róseo de Diana, o silêncio é total.
Numa atmosfera surreal, á medida que as constelações se acendem uma por uma, na abóbada celeste, pode-se ouvir o piar discreto de corujas, mochos e outras aves nocturnas.
É nesse instante que surge o som rústico de uma flauta, em melodia arrastada, apenas acompanhada por leves acordes de alguma lira ou harpa. As variações sobre o tema vão-se sucedendo, acentuando cada vez mais um vago sentimento nostálgico.
No final, um trilo muito longo deixa a melodia num cume instável e toda a natureza se cala, tensa, como que suspensa por um fio acima de um precipício.


4- Staccato

Primeiro vêem os gnomos; cada cabriola destes pequenos deuses deixa um rasto de luz no solo, como um flash de néon.
Depois, quando a Lua se descobre de entre um biombo de nuvens, surgem as asas membranosas de morcegos, rodopiando numa valsa sabática.
Por fim, em longas filas, pela encosta acima, uns vultos, segurando candeias e tochas.
No cume reúnem-se num largo círculo e entoam preces numa língua desconhecida. As suas vozes confundem-se com o vento que faz balançar os ramos dos pinheiros.
No meio desse círculo mágico, primeiro de forma ténue, depois nitidamente, surge um ser – misto de bode e de humano – cuja cabeça cornuda está aureolada pelo disco lunar. Começa então um fantástico baile, em que os espectros ensaiam grotescos passos de dança.
No auge do Sabat, o bode ergue-se e toma entre suas patas um facho, com o qual “abençoa” os macabros dançarinos.


5- Finale, vivace

A visão do movimento anterior desvanece-se num horrendo trovão e uma tempestade furiosa rebenta. Este final é entrecortado pelos raios que rasgam as trevas, pelos fogos fátuos, no cimo das árvores.
Após o ribombar dos trovões, uma chuva densa cai sobre o vale, imensa cortina de água que ensopa a terra.
A alvorada surge num ambiente ainda nublado mas os cantos das aves – primeiro timidamente e, progressivamente, com maior intensidade – erguem uma sinfonia ao novo dia, retomando o tema da flauta,  transfigurando-o de melancólico em uma melodia plena da alegria de viver.


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* DA RECOLHA INÉDITA «UM CORPO MERECE SEMPRE VIVER» (1987-1989)













quinta-feira, 27 de julho de 2017

[OBRAS DE MANUEL BANET] «A... PASSA»

A… Passa*

Amor, duas palavras tem
          que ser.
Uma para dizer:
         “querer”
  e a outra
para responder:
        “Não”

Novo dia, nova luz
Ora s’alumia, naquela hora,
Senhora, deusa de Luz.

Des-i-lu-sões ... estão meus
Pensamentos cheios,
        Porque é que os devaneios
Têm freios nos pneus
                                 Meus?
           -Santo Deus,
vá deles saber
           as razões!

Se lá achara, aquela que foi
Na hora bela musa – soi.
Ó Sol, sozinho do meu
ninho em vinho se
                         foi?
Se lá achara, nela já lhe dois
Aquela dor grande vela
Mastro e caravela,
Queira vê-la
Se quereis...
                   Sóis!

Equação do vento
na lira:
Ler um tento,
Não se delira,
mas se tento
fazer a ira
da vontade cozer
os versos de frade
é por amor à verdade,
à verde idade
A ver (saudade)
O Largo da Trindade.
De Lisboa, só vem
Coisa boa...
Nos bailes de Sant’António
O seu demónio
paira à toa:
Os versos entoa
vertidos
em pira,
expira,
hélice
d’Alice...
Krakatoa!

Java, porém,
É mais além...
Trovejava
o Nepal
em sânscrito
inscrito
no rito.
Ir ou mito,
o que tem?
Que cantem!
Que digam, felizes:
Doidas perdizes
Deu-me um pagão!
...mas não se pagam
senão com pagem
na voragem
de um sermão.

Ser irmão do Sol,
nascente ou posto
de luz que na cruz
quebra o rosto:
- Do vinho, o mosto.
- Do pinho, o gosto.

Aposto:

            Um quarto de padrinho!
-          “Quieto, quietinho!”
diz o encosto.
-          “Aqui estou, sozinho!”
responde o bem-disposto
autor do presente
verbo demente:
       “Se mente
         a semente,
         não tente
         o potente
          agente
          do dente...
         a gente
        qu’ aguente!
        Já sente
        o pente
         rente
        ao rosto.

Sem cinta que sinta
a santa assenta
a venta na manta.

“Milagre!”
Diz o padre
mas que madre
se há de, no sabre,
dorir, dourada?

Dormir ou nada...
  Nevada, se surgir
Cevada ceifada
a fada de Fado.
Ó malfadado
verso embrulhado,
em chita ensarilhado!
-Não, Conchita,
o telhado
continua aferrolhado
pelo mau olhado
da conta.

                Ia nu, a ferros,
 Ao lado de uma tonta...
Ó Liberdade!
Ó Verdade!
Ó Beldade!
Mata-me depressa
morro-me com pressa
de voltar à puberdade.

Ideia louca
Louvada “Deia”
gentil me destes
a prazeres agrestes
e, com Orestes,
estás sempre prestes,
a despir as vestes...
Vem, não restes
no céu e aos terrestres
dá novos mestres!

                 Fiel labéu
De cão: “Afia-dente”

O que sente
um vidente?
É ponto assente
Que mente
... e no poente
mui contente,
o Sol ardente
            diz:
-          “O sal que rebente
                           no cristal
        Tal como quis!”

Que isto se diga, não importa...
(o que importa é o que vai por dentro)
-          Não voltei à porta do Cristo
       nisto não arrisco o meu petisco!
San Francisco
      deita o isco
      ao marisco deita
      e não deita mal!

Vá ver o quintal
Do Quim
E – que tal ‘ –
- Que sim, que sim,
diz o pasquim
Astral...

Por fim, sem mal
vos dei o talismã
da mamã,
não vim de cal,
         não!
        de...
        Portugal
Por Túgal,
Para vento
Tentúgal
atento,
solúvel,
pregá-lo-
ei  em Vigo
....Se vi,
           digo,
... Se não,

           deixá-lo!

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* EXTRAÍDO DE «TRANSFIGURAÇÕES», RECOLHA INÉDITA DE POEMAS (1985-1986)


quarta-feira, 26 de julho de 2017

[OBRAS DE MANUEL BANET] «QUI DONC PEUT TAIRE LES MORTS»

QUI DONC PEUT TAIRE LES MORTS ?*


Non, rien ne peut taire
Notre désir de chanter aux balcons
De notre jeunesse, tôt grandie
Trop fragile pour un saut de puce
Géante, néanmoins, sur les toits des rues

Non, rien ne peut taire
Notre chanson d’amour blessée
De flamme, embrasant les chaussées
Si près de l’oreille, un souffle
Réveillant des échos de tonnerre

Non, rien ne peut taire
Notre cri perçant tous les rideaux
De fer, de terre, de sable, d’eau
Jaillissant, telles larmes
Sang versé de nos cercueils

____
* DA RECOLHA INÉDITA «LE RÂTELIER SOMNANBULE» de 1983-1986










terça-feira, 25 de julho de 2017

NUNCA PERDOARAM AO HAITI TER-SE LIBERTADO DO JUGO COLONIAL...

Creio que esta entrevista deve ser visionada com toda a atenção: Com efeito, os assuntos aqui abordados, são da maior importância e indesmentíveis, pois são essencialmente factos, totalmente verificáveis. Simplesmente, são omitidos na narrativa dominante da media corporativa. 
Além de explicar como é que as estrelas de Hollywood são usadas para fins que não têm nada de caritativos, mostra a lógica de exploração impiedosa, multi-secular, dos ex-donos de escravos que nunca perdoaram o atrevimento do Haiti se ter libertado do jugo colonial e ter instaurado a primeira república negra no continente americano e em todo o mundo.


                                             

ENTREVISTA DE ELIZI DANTO, ADVOGADA DE  JEAN-BERTRAND ARISTIDE POR SARAH WESTALL