PROJECTO PARA UMA SUITE*
1- Andante maestoso
À hora em que o falcão desdobra
as suas asas e se eleva para, logo de seguida, planar acima das estepes ainda
silenciosas, ouve-se o trotar longínquo de uma mula.
Na curva do caminho pedregoso,
surgem a montada e seu cavaleiro, talvez centauro, sobrevivente do tempo em que
os licórnios vinham comer flores nas mãos de donzelas apenas recobertas pelo
movediço manto de seus cabelos acetinados... do tempo em que os pomos de ouro
eram fruto das árvores existentes nos jardins das Hespérides... desse tempo em que os homens e as mulheres podiam entregar-se
sem mácula aos alegres jogos do amor, sob as ramagens acolhedoras de bosques
verdejantes.
Agora que o cavaleiro se encontra
mais próximo, já se podem distinguir os traços do seu jovem rosto: seus olhos
parecem perdidos na contemplação do horizonte; seus lábios finos apenas
entreabertos sugerem – mais do que desenham – um sorriso no seu rosto. Todo ele
respira nobreza feita de serenidade, de força tranquila, de fusão com a
paisagem grandiosa e bravia.
2- Allegro con moto
Duas criança brincam no terreiro
de uma casinhota à beira da estrada. Seus gritos estridentes encorajam montadas
imaginárias, aladas sem dúvida, como Pégaso; em torno dos seus pés descalços
elevam-se nuvens de poeira doirada.
De rompante, começam aã descida
do outeiro, fazendo rolar pedras e torrões de terra, numa carga esfuziante até
À beira do riacho onde se vão refrescar; mergulham seus corpos na água
turbulenta, dando enormes espadeiradas na sua superfície, que afugentam
libélulas e outros insectos multicolores... nos seus espíritos juvenis, mais
não são do que uma armada de piratas num oceano imenso.
As sombras dos salgueiros alongam
os seus braços, afagando os rapazes num amplexo enternecido. O Sol esconde-se
atrás das colinas, lá ao longe, fazendo piscadelas aos dois irmãos
despreocupados.
Assim como quem se despede da sua
amada, mergulham eles uma última vez, antes de saírem deste lugar encantado,
com os seus corpos reluzentes, percorridos por arrepios a cada carícia da
brisa.
3- Adagio molto
A sombra invade lentamente o vale; a gritaria das
aves extingue-se progressivamente, dando lugar a silêncios prolongados,
entrecortados de quando em vez, por uivos longínquos, que o eco das montanhas
reproduz com várias intensidades. Esses uivos produzidos por um velho lobo,
parecem assim provir de uma numerosa alcateia.
Depois, quando a única luz que
percorre as encostas escarpadas das montanhas é só a do disco róseo de Diana, o
silêncio é total.
Numa atmosfera surreal, á medida
que as constelações se acendem uma por uma, na abóbada celeste, pode-se ouvir o
piar discreto de corujas, mochos e outras aves nocturnas.
É nesse instante que surge o som
rústico de uma flauta, em melodia arrastada, apenas acompanhada por leves
acordes de alguma lira ou harpa. As variações sobre o tema vão-se sucedendo,
acentuando cada vez mais um vago sentimento nostálgico.
No final, um trilo muito longo
deixa a melodia num cume instável e toda a natureza se cala, tensa, como que
suspensa por um fio acima de um precipício.
4- Staccato
Primeiro vêem os gnomos; cada
cabriola destes pequenos deuses deixa um rasto de luz no solo, como um flash de
néon.
Depois, quando a Lua se descobre
de entre um biombo de nuvens, surgem as asas membranosas de morcegos,
rodopiando numa valsa sabática.
Por fim, em longas filas, pela
encosta acima, uns vultos, segurando candeias e tochas.
No cume reúnem-se num largo
círculo e entoam preces numa língua desconhecida. As suas vozes confundem-se
com o vento que faz balançar os ramos dos pinheiros.
No meio desse círculo mágico,
primeiro de forma ténue, depois nitidamente, surge um ser – misto de bode e de
humano – cuja cabeça cornuda está aureolada pelo disco lunar. Começa então um
fantástico baile, em que os espectros ensaiam grotescos passos de dança.
No auge do Sabat, o bode ergue-se
e toma entre suas patas um facho, com o qual “abençoa” os macabros dançarinos.
5- Finale, vivace
A visão do movimento anterior desvanece-se num
horrendo trovão e uma tempestade furiosa rebenta. Este final é entrecortado pelos
raios que rasgam as trevas, pelos fogos fátuos, no cimo das árvores.
Após o ribombar dos trovões, uma
chuva densa cai sobre o vale, imensa cortina de água que ensopa a terra.
A alvorada surge num ambiente
ainda nublado mas os cantos das aves – primeiro timidamente e,
progressivamente, com maior intensidade – erguem uma sinfonia ao novo dia,
retomando o tema da flauta,
transfigurando-o de melancólico em uma melodia plena da alegria de
viver.
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* DA RECOLHA INÉDITA «UM CORPO MERECE SEMPRE VIVER» (1987-1989)
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