quinta-feira, 3 de novembro de 2022

CRISE SISTÉMICA


Os grandes banqueiros estão muito à frente da maioria de nós nas jogadas dos mercados, porque estão a jogar no «tabuleiro principal», enquanto nós apenas temos uma ideia - a posteriori - do que se passa no jogo. Sim, em tempos «normais», eles, banqueiros têm o tempo do seu lado. Têm na mão as rédeas de empréstimo do dinheiro, sempre com base em garantias ou colateral, que está bem seguro. Assim, as desgraças de uns são as oportunidades de outros. 

Só que a subida rápida das taxas de juro de referência dos principais bancos centrais traz consigo a subida correlativa de todo o tipo de obrigações no mercado, as quais constituem grande parte do colateral de vários negócios. A subida do juro duma obrigação, equivale a esta valer menos em absoluto; o valor duma obrigação desloca-se no sentido inverso do juro associado a ela. 

Igualmente, os maiores bancos têm elevada exposição à enorme quantidade de derivados chamados OTC («over the counter»). São os bancos que detém, normalmente, uma das partes do contrato, ou são os seus garantes. Ora, a maioria dos derivados está correlacionada com taxas de juros. Se as taxas se tornam repentinamente diferentes do que está previsto nos contratos, os seus detentores podem acionar cláusulas de salvaguarda. Aí, a outra parte, ou os que se ofereceram como garantes, estão na obrigação de «resolver» estes contratos. A crise recente, que obrigou à intervenção de urgência do Banco Central no Reino Unido, distribuindo biliões de libras aos fundos de pensões britânicos, para estes não se afundarem,  foi devida a estes se terem lançado nos negócios perigosos com derivados, para assegurar os pagamentos das pensões aos seus pensionistas. O risco deste mercado global de derivados é incalculável. Estima-se que estão investidos mais de 2 quadriliões de dólares, ao nível global, em derivados. 

Para a banca, um negócio que foi durante muitos anos seguro, o dos empréstimos sobre hipotecas para compra de residência, foi agora afetado pelas subidas das taxas LIBOR que, por sua vez, determinam o montante dos juros das hipotecas. Isto, além da quebra do mercado do imobiliário, traduz-se em situações de não-pagamento e em renovadas ondas de despejos. Pense-se nos numerosos dramas de famílias despejadas por alturas de 2008. 

A destruição massiva de riqueza, seja ela devida à inflação, bem acima dos 10% dos números «oficiais», seja por haver uma onda de falências e desemprego, vai fazer com que a crise de 2008 se assemelhe a «um passeio no parque». 

Muitas pessoas, com mais credenciais do que eu, avisaram sobre o desfecho que as coisas iriam tomar, pouco tempo após a crise de 2008. O rumo observado desde então, foi o resultado da determinação dos governos e bancos centrais em pouparem os privilegiados com as sucessivas ondas de «QE», ou seja, de impressão monetária. O resultado, previsível, é a espiral de inflação que já está fora de controlo das autoridades financeiras e monetárias. As consequências serão muito mais graves do que na crise de 2008, porque nenhum banco central ocidental, nem sequer todos eles juntos, têm «a varinha de condão» que lhes permita afastar o mal que eles próprios causaram.

Desde 2017 que, sem sensacionalismos, pude fazer o diagnóstico das disfunções deste sistema e do seu provável desfecho. Fui buscar a informação aos mais sérios analistas dos mercados, a economistas que não são do «mainstream», na sua maioria, e analisei criticamente todas as informações que me chegavam. Globalmente, não errei nos meus diagnósticos. As decisões que  tomei, em boa altura (o timing é sempre muito importante!), foram as mais apropriadas e permitem-me que enfrente com serenidade o «Grande Tsunami». 

Verifico porém que, nos últimos tempos, muito do que se pode ler ou ouvir, tem o objetivo de precipitar as pessoas na ilusão de que «agora há grandes oportunidades de investimento», quando - afinal - tudo está a desmoronar-se. De facto, os que fazem estas sugestões são irresponsáveis, pois, neste momento, qualquer investimento, seja em que área for, deve ser visto com imenso cuidado. 

Penso que a atitude correta é a de preservar o que já se tem, sem ter a veleidade de fazer apostas, sejam elas «prudentes» ou «arriscadas»: Imagine-se uma situação, em que tem de se defender com um número restrito de balas da sua arma: - Vai desperdiçar balas, disparando contra qualquer sombra que julgue ser a do inimigo? - Ou vai poupar as balas, para quando houver maior probabilidade de acertar no alvo?  

O bom senso fundamental deveria ditar-nos o seguinte comportamento: Do momento, manter uma certa capacidade de investimento, quando se está no início de uma gravíssima crise, de que não sabemos ao certo a duração, para que, depois no final desta, possamos investir com segurança e garantirmos um retorno positivo do investimento.

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PS1: Leia o brilhante e profundo artigo de Mike Whitney, AQUI: Ele fornece o contexto geopolítico, que eu não abordei no meu artigo acima. Noutros artigos, tenho analisado os problemas enunciados por Mike Whitney.

PS2: Lynette Zang explica tudo! Dos derivados, ao "Shadow Banking", da crise de 2008 à crise atual...



PS3: Como referi, a Arábia Saudita está a virar completamente de aliança, hoje encontro entre Xi Jin Pin e MbS.


PS4: A grande bolha de tudo, está rebentando. Porém, os gestores dos fundos especulativos, para fazer durar a «festa» da especulação um pouco mais, decidiram lançar a narrativa de que a FED iria mudar brevemente de orientação, só que isto não tem qualquer base real. Verifica-se mais uma vez que, para os que estão por fora, a bolha irá rebentar-lhes na cara, enquanto os que estão por dentro, irão retirar discretamente as «castanhas do lume»!

Dmitry Orlov & Jeffrey Sachs: DUAS VOZES DE PAZ

A política é dominada pelas paixões. Isso não nos irá surpreender muito. Mas, aquilo que surpreende, é que no «Ocidente», em especial nos EUA, os responsáveis políticos fazem um papel de irresponsáveis
Não encontro explicação simples e unívoca para o fenómeno: será húbris, será autointoxicação com narrativas de propaganda bélica, será a pressão constante do complexo militar industrial, será que esperam assim ganhar eleições e obter maior poderio?  
A ala Democrata do partido único (Chomsky dixit) do establishment americano, não apenas colhe imenso descrédito face aos seus concidadãos, como é vista como causa de imenso sofrimento nos povos. 
A administração Biden é claramente responsável pela guerra na Ucrânia, pelo seu desencadear e prolongamento, pelo afundar as economias da Europa ocidental, dos seus «aliados», pela perda de qualquer «capital de sedução» junto das nações do Terceiro Mundo. Estas nações estão a virar-se (incluindo a Arábia Saudita) em direção aos BRICS, à China, à Rússia! 
Digam-me se esta liderança democrata fez algo de positivo: Semear o caos, não me parece senão causar desgraça, a destruição, o mal!

Duas pessoas, cidadãs dos EUA, que tenho acompanhado, pelas quais tenho imenso respeito, embora não me identifique com os seus percursos e com muitas das suas afirmações. No entanto, nesta época de pequenez, têm a coragem de dizer a verdade e de proporem um caminho para a paz.



                                                   Entrevista com Jeffrey D. Sachs




DMITRI ORLOV: 


The New Cuban Missile Crisis That Isn’t

("A nova e inexistente crise dos mísseis cubanos")

 

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

HOMO NALEDI: DESCOBERTA QUE REVOLUCIONA NOSSO SABER SOBRE EVOLUÇÃO HUMANA

 Quem disse que a Evolução Humana é algo SÓ para especialistas? Que sua investigação é um trabalho rotineiro de análise de ossos fossilizados e pedras talhadas? 

Não é pequena ironia haver uma revolução da maior importância e esta ser IGNORADA - LARGAMENTE - NA MEDIA.  Porém, não restam dúvidas de que, desde os finais do século passado até ao presente, deu-se uma profunda transformação nas Ciências do Homem e na Biologia Evolutiva. Esta transformação tem implicações* em muitos domínios, do Estudo do Comportamento, à Genética, à Bioquímica e à Ecologia...Uma autêntica revolução, da qual não se fala!!!

Porém, eu acho que, não apenas é um domínio do conhecimento muito dinâmico, como tem repercussões em todos os outros domínios: Antes de mais pela modificação profunda que temos da compreensão da nossa própria espécie, da maneira como esta veio a surgir e evoluir. É a Revolução Antropognósica, assim como a Revolução Coperniciana foi em relação à Astronomia e Cosmologia!

Mas, além disso, esta busca das origens da humanidade mostra o absurdo de todos os racismos, sua estupidez e ausência total de cientificidade. Se as escolas do mundo inteiro ensinassem, às crianças e adolescentes, a saga da Evolução Humana, haveria muito menos bases para racismos e, pelo contrário, maior respeito e aceitação da diversidade anatómica, cultural, comportamental e das sociedades. 

O conferencista - John Hawks - é um excelente professor e divulgador. Ele continua ativo no terreno e no laboratório. Participou na aventura da descoberta e extração de Homo naledi na gruta de «Rising Star», na África do Sul. A conferência vale a pena, porque ele tem o talento de comunicar de modo a cativar, tanto uma audiência de estudantes em antropologia, que já sabem alguns dos factos apresentados, como um público geral, que apenas tem uma vaga ideia sobre o assunto, mas que pode - graças a ele - ficar com a curiosidade aguçada. 

Bom visionamento!

 




*) Sempre estive convicto que a estupidez e ignorância são uma componente maior do Mal. Embora, haja pessoas inteligentes e cultas, que são maldosas, estas são poucas. O que há mais é pessoas que se deixam arrastar por pessoas sem escrúpulos, manipuladores de toda a espécie.
Ora numa época em que a civilização está a mergulhar no caos, a involuir a olhos vistos, onde a destruição (de pessoas e bens) predomina e, através da crise energética induzida, nos atira a todos para a incerteza dos amanhãs... que importância têm estudos de paleoantropologia? Pois eu penso que é fundamental aprofundá-los e também divulgá-los da melhor maneira possível: O conhecimento da nossa própria espécie ajuda-nos a ter um comportamento mais responsável em relação à guerra, à preservação do ambiente, da cultura, da própria humanidade. Porque temos de reconhecer como esta evolução é algo muito frágil, precioso e improvável, portanto temos de fazer tudo para manter a nossa espécie e o ambiente, que é o planeta todo. 


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Outros escritos e factos sobre Evolução:

https://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2021/06/evolucao-humana-arborescente.html

https://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2022/09/dialogos-sobre-o-fenomeno-humano.html

https://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2018/09/somos-todos-hibridos-falsidade-do.html

https://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2018/11/nos-os-pequenos-deuses-n4.html

https://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2021/10/o-adn-lixo-que-afinal-nao-era.html

https://manuelbaneteleproprio.blogspot.com/2020/01/h-erectus-durou-mais-que-todas-as.html

terça-feira, 1 de novembro de 2022

OTIS REDDING - "THE SOUL"


Apresento nova playlist, com algumas composições e interpretações do «Rei da Música Soul»:

OTIS REDDING - THE SOUL

 Otis Redding (9 de Setembro 1941 – 10 de Dezembro 1967) foi um autor, compositor e cantor americano, considerado dos maiores ídolos da música popular e artista de primeiro plano da música soul e rhythm and blues

Ele influenciou muitos artistas que, não só interpretaram suas composições, como também se inspiraram do seu estilo vocal, gutural, rude e apaixonado. 

Esta playlist inclui atuações em palco de Otis Redding, que mostram como ele criava uma atmosfera de exaltação, de conivência com o público e de entrega total. 

A sua morte trágica, num acidente de avião, que envolveu também a morte de quase todos os passageiros e músicos da sua banda, ocorreu no auge da sua carreira.
Muitos discos surgiram após a sua morte; ele tinha gravado um grande número de inéditos.

Os seus álbuns são de qualidade muito acima da média, mesmo em relação aos anos 60, época de elevada criatividade, na música popular anglo-saxónica.

domingo, 30 de outubro de 2022

Açores - Descoberta de Civilização Atlântica (Idade do Bronze / 2000 A.C.)



                                 Documentário da BBC

NB: Depois de eu ter publicado este vídeo, recebi uma curta nota de um amigo meu, arqueólogo português de reputação internacional, que dizia em substância que estas «provas» não tinham qualquer consistência e credibilidade.
Fiz um pequena pesquisa e encontrei relatos na imprensa regional açoriana, de 2012 salvo erro, em que uma comissão de peritos arqueólogos, nomeada pelo governo regional, chegava à conclusão que as estruturas referidas por certos arqueólogos amadores, não tinham a idade que lhes era atribuída e que os «artefactos da suposta civilização perdida» não o eram, mas somente estruturas naturais. 

Parece-me improvável que um grupo numeroso de colonizadores, no passado distante, tenha chegado ao arquipélago dos Açores, dada a enorme distância deste, em relação aos dois continentes (Europa e América) e mesmo em relação a ilhas que foram povoadas, caso do arquipélago das Canárias. Mas, se devemos exercer o nosso espírito crítico, também devemos ficar abertos a todas as hipóteses, nomeadamente porque no Pacífico, as culturas das ilhas da Polinésia, da Ilha de Páscoa, do Havai, resultam de colonizações a partir de vários pontos de dois continentes (América do Sul; Indonésia, Filipinas e a Ilha Formosa na China). Dada a tecnologia de construção das embarcações e do saber náutico desses povos, nessas épocas, é qualquer coisa que nos espanta hoje, saber que empreenderam tais viagens. Mas, neste caso, temos a prova disso pelas sequências dos ADN dos respetivos povos da Polinésia, da Ilha de Páscoa e do Havai: Possuem traços comuns com os ADN de populações atuais, do Sul-Este da Ásia, ou da América do Sul.
Em termos práticos, é necessário um número de famílias mínimo, para que uma colonização deste género tenha sucesso, da ordem da centena de famílias, para não haver endogamia excessiva. Isso significa várias e sucessivas expedições.  Teria de haver um incentivo para que houvesse tal povoamento, a partir de conhecimento prévio por exploradores, que tivessem abordado essas ilhas. Veja-se o caso da Groenlândia e de zonas da América do Norte, povoadas por Inuítes. A sua colonização por povos escandinavos, em várias épocas, foi proporcionada pelo clima mais ameno, em determinadas épocas da Idade Média, permitindo pastorícia e agricultura e fundação de aldeias e  vilas, assim como o comércio de vários produtos marinhos altamente cotados, tais como os «chifres de unicórnio», na realidade, defesas da baleia do ártico, o narval.

Admito que o arqueólogo amador que dá as explicações ao repórter da BBC seja um entusiasta, mais preocupado em fazer valer a sua tese, do que em aceitar os pareceres críticos dos arqueólogos profissionais. Mas, na minha ótica, a capacidade, o potencial de alcançar os Açores, por exploradores pertencentes a civilizações hoje desaparecidas não é de todo  fantasista. Os vikings, os povos das ilhas do Pacífico, e outros, possuíam tecnologias de construção de embarcações e, sobretudo, técnicas de navegação que nos espantam, hoje, mas temos as provas inegáveis disso. 
Porém, no caso dos Açores, não existem factos incontroversos. E uma hipótese não é um facto. Espero que pessoas com a competência que eu não possuo, venham nos esclarecer.

sábado, 29 de outubro de 2022

[Glenn Greenwald] O CONSÓRCIO QUE IMPÕE A CENSURA É FORMADO PELO ESTADO E CORPORAÇÕES



[Citação da Newsletter de Glenn Greenwald: 

Glenn Greenwald greenwald@substack.com]

 Tem havido alguma notícia - por  mim e por outros — sobre a nova e francamente fraudulenta indústria de «desinformação». Esta auto- proclamada peritagem, baseada em pouco mais do que uma ideologia política simplista,  reivindica o direito de ser oficialmente quem decreta o que é «verdadeiro» e «falso», para, entre outras coisas, justificar a censura feita pelo Estado e as corporações, exercida pelos «peritos»  que são quem decreta aquilo que é «desinformação». Estes grupos são financiados por um consórcio de um pequeno grupo de bilionários neoliberais (George Soros e Pierre Omidyar) junto com as agências de serviços secretos dos EUA, Reino Unido e U.E. Tais grupos, financiados pelos bilionários e governos, estão quase sempre disfarçados sob nomes com conotações inócuas, tais como: 

The Institute for Strategic DialogueThe Atlantic Council's Digital Forensics Research LabBellingcatthe Organized Crime and Corruption Reporting Project

Estes, estão desenhados para darem uma aparência de serem grupos de estudiosos apolíticos. No entanto, sua finalidade real é a de fornecer o enquadramento justificativo de campanhas para estigmatizar, reprimir e censurar quaisquer pensamentos, opiniões e ideias, em dissidência com a ortodoxia neoliberal dos poderes. Eles existem, por outras palavras, para dar a impressão de que a censura  e outras formas de repressão, têm fundamento científico, em vez de ideológico.

Leia a continuação (em inglês) no link seguinte:

https://greenwald.substack.com/p/the-consortium-imposing-the-growing?utm_source=substack&utm_medium=email


PS1: Greenwald refere o trabalho de Udo Ulfkotte, falecido jornalista alemão. Escreveu um livro, confessando como ele e outros se tornaram «prostitutas» da CIA.


sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O «LIVRE» MERCADO, EXISTE?

 
Eu não sou «competente» para falar deste assunto, segundo os especialistas que se arrogam o exclusivo de perorar sobre economia. Porém, tendo eu vivido e estudado, estou em condições - como qualquer um - de observar a realidade do «livre mercado» ou sua ausência.

                      Adam Smith designava-se a si próprio como «filósofo moral»

Podemos retomar as obras de Adam Smith, David Ricardo, e outros, para nos certificarmos que o seu liberalismo significava outra coisa, completamente diferente daquilo que  as correntes neoliberais contemporâneas postulam em relação a este assunto.

As correntes neoliberais atuais, defensoras do «livre mercado», pretendem que este seja uma espécie de «Deus ex Machina», que acaba por tudo regular, por satisfazer os compradores e os vendedores, com o seu jogo de valores, pelas intervenções de uns e de outros. 

Mas, logo aqui, os modelos dos neoliberais sobre o comportamento dos intervenientes nos mercados são totalmente abstratos: Com efeito, o interveniente no mercado é representado como uma entidade abstrata com conhecimento instantâneo de todos os preços praticados nos mercados! Um átomo que tudo vê, tudo sabe, como se fosse Deus!? Esse agente-mitificado seria capaz de fazer, para cada operação de compra e venda, um lance otimizado. Além disso, o seu raciocínio e comportamento seriam inteiramente racionais, não sofreria do viés de quaisquer preconceitos. Mas, afinal, este «agente-robot-do-mercado» não teria nada do que há de humano no comportamento. 

Mesmo que se queira atribuir à «mão invisível»(1), essa propriedade misteriosa que faz com que os preços finais acabam por ajustar-se aos desejos, tanto dos vendedores como dos compradores, tal está muito longe da realidade sentida, da realidade económica do dia-a-dia. 

Atrevo-me a dizer que é observável por todo o lado a distância entre o modelo de mercado livre, segundo os neoliberais e a realidade, quer se trate da transação de couves (uns poucos euros), quer de apartamentos (dezenas ou centenas de milhares de euros). Na realidade, o que eu e muitas pessoas verificamos, é que a capacidade aquisitiva por parte do comprador e a perceção do vendedor, de que tem muitos ou poucos clientes para seu produto, são os fatores decisivos para o ajuste dos preços. 

Não existe ciência económica no mesmo plano que as ciências naturais. Esta ciência económica «matematizada», que nos querem fazer engolir do ensino secundário até à faculdade e mais além, como se fosse uma ciência rigorosa, é simplesmente uma fraude. 

Os clássicos acima referidos consideravam a economia, como fazendo parte das ciências «morais»: Queriam com isso dizer que estavam sujeitas a muitas das paixões humanas, o que - não tenho dúvida - continua a ser atual. Se não tivermos em conta o jogo psicológico, do nível dos indivíduos ao das relações internacionais, não podemos compreender nada do que se passa. 

Os pânicos das bolsas, as manias e outros ventos de loucura, que estão sempre a surgir, em tal ou tal ponto do globo e em tal ou tal circunstância, seriam - a meu ver - a prova cabal de que a economia é uma ciência humana, que está correlacionada com as paixões, as políticas, as ambições de poder, de status, de proteção, etc. Sentimentos muito humanos, quer lhes demos uma conotação positiva ou não; o facto é que as matematizações desses comportamentos são apenas construções arbitrárias, não descrevendo  de forma adequada, nem os fenómenos aparentes dos mercados, nem a psique. Os modelos não têm em conta a enorme diversidade e maleabilidade do comportamento humano, devido à diversidade e riqueza da psique. 

A economia contemporânea, na sua versão dominante, está conscientemente a fazer inferências abusivas, no que respeita aos indivíduos e ao seu comportamento nos mercados. Não espanta que os modelos construídos com base em tais falácias, sejam apenas «bonitas construções» para fazer correr um programa de software e ... nada mais.

Mas, o modelo «da economia de livre mercado» está tão arreigado na mente dos políticos e economistas, que penso seja um caso de construção obviamente ideológica, que se infiltrou no discurso dominante, ao ponto de convencer muitos da sua validade.

Os mercados existem e não apenas nas economias capitalistas: existiram desde a mais alta antiguidade. Não me insurjo contra a noção de mercado. É uma realidade, desde os alvores das civilizações; mas temos de compreender como é que os nossos antecessores realizavam as trocas, como as encaravam. O capitalismo obnubilou muita coisa. Antes do triunfo do modo de produção capitalista (final do século XVIII ou princípio do século XIX), as relações humanas não se guiavam pela «ditadura da mercadoria». Não existia, em muitos casos, uma economia onde o dinheiro dominasse, mas isto não significa que não existissem uma economia e trocas comerciais. 

Hoje mesmo, em que a mercantilização de tudo predomina, existem numerosas instâncias em que as pessoas e organizações não são movidas por critérios económicos, mas por outros (2). Não significa que tais comportamentos sejam resquícios do passado, mas antes que nós somos essencialmente os mesmos (afetivamente e psicologicamente) que os humanos de há dez mil, ou mais anos. 

A questão do mercado ser «livre», reduz-se somente à questão de existir - ou não - intervenção estatal no mesmo, se eu bem compreendo os defensores do neoliberalismo na economia. 

Ora, o Estado tem regulado os mercados de várias maneiras: Não vejo que a ausência de regulação do mercado possa ser benéfica para os intervenientes. O respeito por regras é fundamental para haver mercados ordenados, logo, para serem «livres», no sentido de exprimirem a concorrência entre os vários intervenientes, de modo não falseado.  Tem de existir, nas sociedades capitalistas contemporâneas, uma intervenção do Estado nos mercados. Não acredito que os defensores dos tais «livres mercados» prescindam dessa mesma intervenção.

Parece-me que as pessoas muito preocupadas em preservar a «liberdade dos mercados», estejam sobretudo preocupadas com o mercado do trabalho, quer o afirmem, quer não. Se houver um enquadramento legislativo, que constrange os patrões e os empregados a estabelecer relações contratuais coletivas, a  liberdade de recrutar e de despedir está efetivamente restringida. 

Não penso que os trabalhadores queiram prescindir da sua liberdade de estabelecer um contrato com os patrões, de mudar de emprego, de rescindir o contrato de trabalho, em caso de incumprimento por parte da entidade patronal, etc. 

Portanto, quer-me parecer que se fosse aplicada a liberdade de contratação segundo as regras e leis vigentes nos países onde os direitos laborais são  respeitados, não haveria boa parte da conflitualidade entre as classes patronal e trabalhadora. Estes conflitos surgem, muitas vezes, devido à negação dos direitos dos assalariados, em termos de contratação, ou de negociação e perante a obstinação dos patrões em não aceitarem discutir as reivindicações pertinentes dos trabalhadores. 

Afinal, os trabalhadores são os reais defensores da liberdade de contratação e de negociação. Muitas vezes os patrões, não apenas se negam a negociar, como vão pedir a intervenção estatal, para reprimir (por vezes violentamente) as reivindicações dos empregados.

A liberdade do mercado de trabalho ganharia se os capitalistas e seus suportes mudassem de postura. Em vez de falarem constantemente de «livres mercados», deveriam antes aplicar os princípios legais em vigor ao mais importante mercado económico e social, que é o do trabalho. 

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(1) Expressão usada por Adam Smith na sua obra «A Riqueza das Nações». Usou-a para exprimir, não a confiança cega nos mecanismos do mercado, o sentido que agora lhe é atribuído (falsa interpretação), mas antes, no contexto dum discurso teórico, uma idealização das relações mercantis na sociedade. Trata-se dum processo literário, o da «experiência mental». Este tipo de demonstração, usando situações imaginárias, era frequente nas Luzes. Muitos escritores usaram-na: Diderot, D'Alembert  e  Jonathan Swift, entre outros.

(2) Um artigo de Karl Polanyi dá-nos uma visão global da evolução das sociedades e dos respetivos valores: https://www.commentary.org/articles/karl-polanyi/our-obsolete-market-mentality/