sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

NEANDERTAIS E HUMANOS «MODERNOS» - CIÊNCIA E VULGARIZAÇÃO CIENTÍFICA

                 
                            Conchas perfuradas e restos de ocre em sítios arqueológicos datados
                             e identificados com os Neandertais 
                             http://advances.sciencemag.org/content/4/2/eaar5255
                             
A somar a muitas outras anteriores, chega-nos a notícia de que grutas em zonas do Sul de Espanha tinham pinturas rupestres (não figurativas) originárias de uma época em que a zona somente era povoada por neandertais, sendo certo que os «Homo sapiens modernos» ainda não tinham aí chegado. Estes saíram de África, segundo se estima actualmente, há menos de 60 mil anos, tendo permanecido vários milénios no Levante (onde é hoje Israel, Líbano...). 
Eles, os homens «modernos», antes de chegar à Península Ibérica, dispersaram-se por zonas do Centro e do Leste da Europa e por outro caminho - bordejando o Mediterrâneo - ocuparam territórios no Sul e Oeste europeu.


                                     
Sendo os humanos modernos uma espécie em competição directa pelos mesmos recursos que seus parentes, os Homo sapiens neanderthalensis, as zonas anteriormente povoadas  exclusivamente por neandertais foram sendo também aquelas onde os humanos «modernos» se vieram a estabelecer. 
A substituição não foi brusca, pelo contrário, foi muito longa. Houve - de certeza  - hibridação genética (todos os euroasiáticos possuem pedaços de ADN de origem neandertal, sabe-se isso desde os princípios deste milénio); houve também «hibridação cultural», desde há muito que se reconheceu que populações neandertais, supostamente mais «primitivas», teriam copiado muita tecnologia dos Homo sapiens «modernos», sendo muito incerto atribuir certos sítios arqueológicos a homens «modernos» ou aos neandertais, somente com base em artefactos obtidos nas escavações. 

Não há dúvida de que, no caso da humanidade ancestral, a dinâmica populacional é complexa e não se coaduna facilmente com o estereótipo de uma «progressão linear», de uma «evolução progressiva e ininterrupta» instilada pela media ignorante e apressada, ou pelos «manuais de História» adoptados no ensino, que retraçam os primórdios da Humanidade de modo muito esquemático, ao ponto de transmitir ou reforçar ideias-feitas (preconceitos) nos alunos. 
Por fim, temos uma comunidade científica que debate com calor os seus pontos de vista, nem sempre utilizando bons argumentos: Veja-se o caso da polémica (científica, antes de se tornar mediática) em torno do «menino de Lapedo» (descoberto e descrito por João Zilhão, 1998).

Para mim, é ocasião de me maravilhar, pelo facto de cientistas estarem muito preocupados em fazer encaixar a realidade das suas descobertas dentro dum quadro rígido conceptual, ou seja:
Existem conceitos de espécie diversos. 
Por exemplo, o conceito de espécie de Lineu, implícito na taxonomia de espécie bi-nominal (o nome específico do homem é Homo sapiens; o género ao qual pertence é apenas "Homo")... ainda está presente, cada vez que se dá um nome (segundo a nomenclatura taxonómica) a nova espécie...
Ou o conceito biológico de espécie, devido Ernst Mayr: segundo esta definição, são da mesma espécie os indivíduos que -no seu ambiente natural (não enjaulados, etc)- se cruzam e dão descendência fértil. Isto significa que os híbridos, resultantes do cruzamento das duas populações iniciais, podem cruzar-se entre si, sem perda de fecundidade e tendo descendência plenamente fértil.
No século XIX e princípio do séc. XX, com a popularização do Darwinismo e de teorias evolutivas associadas a uma antropologia «racial», punha-se a questão de saber se as diversas «raças» humanas  deveriam ser classificadas como seres da mesma espécie... Foi necessário muito sangue e sofrimento para que fossem varridos os preconceitos racistas que imbuíam os discursos de muitos cientistas (antropólogos, historiadores, biólogos, sociólogos... e claro, depois repercutidos pelos media, até ao «homem da rua»). 
Só se começou a questionar seriamente o conceito de «raça» aplicado ao humano na década de 1960, com LewontinStephen Jay Gould e outros. 
Segundo a biologia, uma nova raça (no sentido verdadeiro, sem aspas) é uma nova espécie que está em formação, que ainda não se separou completamente da espécie de origem. Há ainda interfecundidade com a espécie de onde provém,   mas esta já não é perfeita. Por exemplo, a taxa de fertilidade dos híbridos (a descendência de 1ª geração, resultante do cruzamento entre raças «puras») está diminuída. 
Uma população onde os indivíduos possuem um decréscimo significativo da fecundidade no estado natural, está - a prazo - condenada a desaparecer. 
Suponho que tal deve ter acontecido, ao longo de muitas centenas e mesmo milhares de anos, às populações dos neandertais que se intercruzaram com homens «modernos». 
Os híbridos teriam menor viabilidade do que qualquer uma das linhagens puras - neandertal e homem moderno. 
Tal é possível nas espécies em causa, porque os neandertais evoluíram durante muitos milhares de anos (mais de 100 mil?) de forma completamente separada dos restantes Homo, que permaneceram em África
Por outras palavras: após tanto tempo, o homem de Neanderthal, devido às adaptações ao clima muito frio e agreste do continente euro-asiático (equivalente aos climas do extremo norte da Europa ou da Sibéria, de hoje), era inevitável que seus genes tivessem diferenças significativas em relação aos homens «modernos», que permaneceram em África, do outro lado do Mediterrâneo: estes últimos só entraram na Europa há cerca de 60 mil anos... 
O encontro e cruzamento entre as várias sub-espécies (ou raças verdadeiras) que constituíam as várias populações do género Homo no continente euroasiático, com a espécie Homo sapiens «ancestral» vinda de África, acabou por esbater as marcadas diferenças físicas (morfológicas, bioquímicas, etc). 
A espécie humana actual é única e as chamadas «raças» não são verdadeiras raças*, pois a inter-fecundidade, entre os membros de diversas etnias ou populações e a fecundidade dos seus híbridos é plena: não existe qualquer tipo de barreira genética ao cruzamento. 
O preconceito é que torna tão complicado o assunto, pois as espécies humanas desaparecidas são vistas, subjectivamente, como «nossas» ancestrais. 
Se as víssemos apenas como um conjunto de espécies que evoluíram, espécies que são objecto de estudo em paleoantropologia, em biologia e em genética das populações... talvez houvesse menos carga emotiva no debate! 
- Mas nós, os humanos, somos assim... subjectivizamos tudo!  

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*ver também o meu livro de 2008, sobre o processo de humanação: 
https://app.luminpdf.com/viewer/cSg3omvykP9g3rj5u

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