Um longo poema que escrevi, há mais de 25 anos, num retiro, frente ao mar.
CANÇÃO DERRADEIRA
I
Tensão geratriz de movimento, azul – sentir de oceano encrespado
Nota voraz em perseguição da dúvida, laço de espuma da memória,
Ocaso sem brilho de trompas ensanguentadas, esquecimento fortuito,
Tango de passo trocado
Fôlegos infindáveis de vendavais nocturnos; castiçais de alabastro lascado
Corrida desenfreada de espectros teimosamente presentes
Vaga sensação de vertigem no refluxo de um olhar
Nova descida ao silêncio do corpo
Gotejar de suor em taças de porcelana; figuração amarga
Do sem - sentido martelado na caixa craniana
Esbracejar do vento em troncos mortos, calcinados
Ecos de codornizes nos mecanismos desengonçados de robôs
Feitos palhaços. Multiplicidade de histórias em torno de uma sombra
Projectada.
Paciente coleccionar de secretos oráculos; distância feita de deriva
Em relação à quotidiana necessidade
Invencível arpão de um saber sub – liminar
Súbita vocalização de estrofes numa língua jamais ouvida
Continuidade da evidência nas asas de uma borboleta tardia
Necessária aplicação de máscaras sorridentes, delimitando vazios
De subterrâneos pestilentos
Vacuidade de cadeiras no teatro dos murmúrios; tratados de
Necromancia a boiar em lagos de chumbo
Ressurreição de colchas acetinadas sobre falésias desérticas
Rugir de vozes em grutas escavadas pelo oceano
Movimentos incertos nos tendões da claridade
II
Mais fácil seria sentir o Universo
Que um grão de areia de encontro à janela
Mas os vidros espessos da miopia
Embotaram a nossa capacidade de sentir
Porém, mil janelas tem o nosso ser
Quando a outros se associa
Diz-me tu, presa dos teus próprios afazeres
Não sentes no respirar que a vida principia?
Encontrar nos gestos simples prazer tamanho
Que mais não se deseje da vida
Eis um princípio que não desdenho
Para nele minh’ alma encontrar guarida
III
Eras tu que meu ser procurava
Eras tu, agora me dói a certeza
Tua frágil e tranquila nobreza
Tua ternura que tudo transmutava
Bem pode o presente se apagar
Pois se o destino nos afastou
Que me importa onde estou
Só a saudade me vem magoar
Se igual sentir também te obriga
A secretos suspiros -por vezes- guardar
Que eu sofra e assim prossiga
Mas se em ti nada se quedou
Da paixão que nos fez ambos vibrar
Venha a morte, a ela me dou
IV
Nos teus braços conheci a paixão
Um tormento violento e puro
O nosso amor alumiou o escuro
E na noite se fez imenso clarão
Não podes compreender estas palavras
Elas são grito de alma ferida
Que muito chora e não olvida
Os grilhões que no meu peito lavras
A causa deste cativeiro duro
É termos tomado como seguro
Um querer que não nos larga
Foram juras solenes, ilusão perdida
Que me deixou na despedida
Um sabor a doçura amarga
V
Vá-se lá confiar na ventura do amor
Para logo ruir tudo como castelo
N’areia erguido e vir o mar arrastá-lo
Porém, nos amantes grande é o destemor
Vá-se lá construir muralhas de carinho
E logo, sem apelo nem agravo
Se romper ao meio tão doce favo
Como vendaval em pano de linho
Estas certezas que na mente gravo
Se as espalho com a flor do pinho
Riem-se os amantes de mansinho
Ouvir tantas vezes dos outros tal desagravo
Não nos alumia em nada o caminho
Pois o amor dá mais tontura que o vinho
VI
Foi o mundo que apartou
Nossas vidas sem remédio
Não foi cansaço, nem tédio
Não foi o nosso amor que secou
Mas contra tal iniquidade
Bem podemos nós clamar
Mais terrível que o mar
É a fera necessidade
Sofremos desta sociedade
Estranhos rumos nos fazem tomar
Mas não podem nossa alma domar
Não me resigno por vaidade
Não me canso de te chamar
Só desejo de novo te amar
VII
Chora cigarra chora, não retenhas tua voz
Que o desgosto que não chora mais fere
Bem pudeste cantar no Verão; não espere
Ver-te calar o coração, o teu algoz
De todos o mais sentido é teu planger
Não temas os que riem da tua desdita
Não sabem a música que a lonjura dita
Só quem como tu sofreu pode saber
Chora cigarra chora, a canção bendita
Quem ignora teu pranto não acredita
Nas profundas razões do teu sofrer
VIII
Devagar me abraçaste
Teu corpo de encontro ao meu
Como quem dá tudo o que é seu
Minha para sempre te declaraste
Mas passou Primavera e Verão
Vieram os ventos de Outono
Varrendo os instantes de abandono
Puseram a descoberto a ilusão
Ébrio estava, mais pobre fiquei
Tudo cinzento e desolação
Foi quanto restou do que me dei
Tão depressa não perdoarei
Aos ventos loucos a destruição
Deste amor, em silêncio chorarei
IX
Cabelos tão negros, luzidios
Enquadrando um rosto trigueiro
Olhares secretos, fugidios
Fagulhas ateando braseiro
Andar de perfeita harmonia
Gestos não estudados e graciosos
Um falar suave, qual melodia
Secreta dos ventos caprichosos
A meu lado dia e noite estava
Dentro de mim morava esse amor;
Sua ausência, meu peito escava
Sua lembrança aviva mais a dor
X
Sonhei que a meu lado
estavas
Num idílico bosque em que os
animais
Vinham comer à nossa mão e
os acariciavas
E lhes falavas de amor, e
nunca era demais
Depois, carinhosamente te
enlaçavas
A mim, recitando secretos
rituais
E alegres jogos comigo
inventavas
Renovando sempre os prazeres
sensuais
Porém um dia trouxeste-me
frutos tais
Como maçãs, mas não eram,
suspeitavas
Que eles nos tornariam seres
mortais
Mas a morte, o que era?
Perguntavas...
Foi então que acordei nas
trevas
Angustiado para te dizer que
valia mais
Ficar no bosque do que –
almas escravas –
Arrastarmos a certeza de
nossos finais
E ao acordar quem é que
julgais
Que à minha beira se encontrava?
Era um anjo: sonhamos viver
neste cais
Depois, rompe-se a amarra
que nos entrava
E vogamos no oceano
Da serenidade numa jornada
Que por ser infinita
Nos faz despertar imortais
Livres na contemplação
Do Universo, a distância é
nada
Como nada serão
Nossos sofrimentos actuais.
XI
De tudo longe vou
vivendo
Olhar vago, gestos
ausentes
Só do passado me
socorrendo
Para calar meus males
presentes
Viesse nesta sombra
raiar novo dia
Convidando-me a
prazeres e sorrisos
Ainda assim saudoso
me quedaria
Na penumbra de
contornos indecisos
Pois se triste é a
lembrança
De perfeita ventura
perdida
Pior seria uma falsa
esperança
De renascer para nova
vida
E de julgar que na
mudança
Se obtém a cura
pretendida
XII
Eras tu que meu ser
procurava
Eras tu, agora me dói
a certeza
Que a lembrança mais
escava
Neste peito
destroçado pela tristeza
Que me importa agora
a formosura
Se vivo apenas deste
sofrimento
Sabendo que deste mal
não tenho cura
Desta paixão não há
esquecimento
Prefiro guardar
memória do passado
Que abrasou nossos
corpos e almas
Por muito que amor me
tem magoado
E por este destino
ter conhecido
Já não desejo mais do
que as calmas
Eternas, ao pé de ti
adormecido