Muitas pessoas aceitam a situação de massacres de populações indefesas em Gaza e noutras paragens, porque foram condicionadas durante muito tempo a verem certos povos como "inimigos". Porém, as pessoas de qualquer povo estão sobretudo preocupadas com os seus afazeres quotidianos e , salvo tenham sido também sujeitas a campanhas de ódio pelos seus governos, não nutrem antagonismo por outro povo. Na verdade, os inimigos são as elites governantes e as detentoras das maiores riquezas de qualquer país. São elas que instigam os sentimentos de ódio através da média que controlam.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

CANÇÃO DERRADEIRA (Obras de MANUEL BANET)

Um longo poema que escrevi, há mais de 25 anos, num retiro, frente ao mar.


CANÇÃO DERRADEIRA



I


Tensão geratriz de movimento, azul – sentir de oceano encrespado
Nota voraz em perseguição da dúvida, laço de espuma da memória,
Ocaso sem brilho de trompas ensanguentadas, esquecimento fortuito,
Tango de passo trocado
Fôlegos infindáveis de vendavais nocturnos; castiçais de alabastro lascado
Corrida desenfreada de espectros teimosamente presentes
Vaga sensação de vertigem no refluxo de um olhar
Nova descida ao silêncio do corpo
Gotejar de suor em taças de porcelana; figuração amarga
Do sem - sentido martelado na caixa craniana
Esbracejar do vento em troncos mortos, calcinados
Ecos de codornizes nos mecanismos desengonçados de robôs
Feitos palhaços. Multiplicidade de histórias em torno de uma sombra
Projectada.
Paciente coleccionar de secretos oráculos; distância feita de deriva
Em relação à quotidiana necessidade
Invencível arpão de um saber sub – liminar
Súbita vocalização de estrofes numa língua jamais ouvida
Continuidade da evidência nas asas de uma borboleta tardia
Necessária aplicação de máscaras sorridentes, delimitando vazios
De subterrâneos pestilentos
Vacuidade de cadeiras no teatro dos murmúrios; tratados de
Necromancia a boiar em lagos de chumbo
Ressurreição de colchas acetinadas sobre falésias desérticas
Rugir de vozes em grutas escavadas pelo oceano
Movimentos incertos nos tendões da claridade



II

Mais fácil seria sentir o Universo
Que um grão de areia de encontro à janela
Mas os vidros espessos da miopia
Embotaram a nossa capacidade de sentir
Porém, mil janelas tem o nosso ser
Quando a outros se associa

Diz-me tu, presa dos teus próprios afazeres
Não sentes no respirar que a vida principia?
Encontrar nos gestos simples prazer tamanho
Que mais não se deseje da vida
Eis um princípio que não desdenho
Para nele minh’ alma encontrar guarida


III

Eras tu que meu ser procurava
Eras tu, agora me dói a certeza
Tua frágil e tranquila nobreza
Tua ternura que tudo transmutava

Bem pode o presente se apagar
Pois se o destino nos afastou
Que me importa onde estou
Só a saudade me vem magoar

Se igual sentir também te obriga
A secretos suspiros -por vezes- guardar
Que eu sofra e assim prossiga

Mas se em ti nada se quedou
Da paixão que nos fez ambos vibrar
Venha a morte, a ela me dou




IV

Nos teus braços conheci a paixão
Um tormento violento e puro
O nosso amor alumiou o escuro
E na noite se fez imenso clarão

Não podes compreender estas palavras
Elas são grito de alma ferida
Que muito chora e não olvida
Os grilhões que no meu peito lavras

A causa deste cativeiro duro
É termos tomado como seguro
Um querer que não nos larga

Foram juras solenes, ilusão perdida
Que me deixou na despedida
Um sabor a doçura amarga



V

Vá-se lá confiar na ventura do amor
Para logo ruir tudo como castelo
N’areia erguido e vir o mar arrastá-lo
Porém, nos amantes grande é o destemor

Vá-se lá construir muralhas de carinho
E logo, sem apelo nem agravo
Se romper ao meio tão doce favo
Como vendaval em pano de linho

Estas certezas que na mente gravo
Se as espalho com a flor do pinho
Riem-se os amantes de mansinho

Ouvir tantas vezes dos outros tal desagravo
Não nos alumia em nada o caminho
Pois o amor dá mais tontura que o vinho




VI

Foi o mundo que apartou
Nossas vidas sem remédio
Não foi cansaço, nem tédio
Não foi o nosso amor que secou

Mas contra tal iniquidade
Bem podemos nós clamar
Mais terrível que o mar
É a fera necessidade

Sofremos desta sociedade
Estranhos rumos nos fazem tomar
Mas não podem nossa alma domar

Não me resigno por vaidade
Não me canso de te chamar
Só desejo de novo te amar




VII

Chora cigarra chora, não retenhas tua voz
Que o desgosto que não chora mais fere
Bem pudeste cantar no Verão; não espere
Ver-te calar o coração, o teu algoz

De todos o mais sentido é teu planger
Não temas os que riem da tua desdita
Não sabem a música que a lonjura dita
Só quem como tu sofreu pode saber

Chora cigarra chora, a canção bendita
Quem ignora teu pranto não acredita
Nas profundas razões do teu sofrer



VIII

Devagar me abraçaste
Teu corpo de encontro ao meu
Como quem dá tudo o que é seu
Minha para sempre te declaraste

Mas passou Primavera e Verão
Vieram os ventos de Outono
Varrendo os instantes de abandono
Puseram a descoberto a ilusão

Ébrio estava, mais pobre fiquei
Tudo cinzento e desolação
Foi quanto restou do que me dei

Tão depressa não perdoarei
Aos ventos loucos a destruição
Deste amor, em silêncio chorarei


IX



Cabelos tão negros, luzidios
Enquadrando um rosto trigueiro
Olhares secretos, fugidios
Fagulhas ateando braseiro

Andar de perfeita harmonia
Gestos não estudados e graciosos
Um falar suave, qual melodia
Secreta dos ventos caprichosos

A meu lado dia e noite estava
Dentro de mim morava esse amor;
Sua ausência, meu peito escava
Sua lembrança aviva mais a dor



X

Sonhei que a meu lado estavas
Num idílico bosque em que os animais
Vinham comer à nossa mão e os acariciavas
E lhes falavas de amor, e nunca era demais
Depois, carinhosamente te enlaçavas
A mim, recitando secretos rituais
E alegres jogos comigo inventavas
Renovando sempre os prazeres sensuais

Porém um dia trouxeste-me frutos tais
Como maçãs, mas não eram, suspeitavas
Que eles nos tornariam seres mortais
Mas a morte, o que era? Perguntavas...

Foi então que acordei nas trevas
Angustiado para te dizer que valia mais
Ficar no bosque do que – almas escravas –
Arrastarmos a certeza de nossos finais

E ao acordar quem é que julgais
Que à minha beira se encontrava?
Era um anjo: sonhamos viver neste cais
Depois, rompe-se a amarra que nos entrava
E vogamos no oceano
Da serenidade numa jornada
Que por ser infinita
Nos faz despertar imortais
Livres na contemplação
Do Universo, a distância é nada
Como nada serão
Nossos sofrimentos actuais.


XI

De tudo longe vou vivendo

Olhar vago, gestos ausentes

Só do passado me socorrendo

Para calar meus males presentes

Viesse nesta sombra raiar novo dia

Convidando-me a prazeres e sorrisos

Ainda assim saudoso me quedaria

Na penumbra de contornos indecisos

Pois se triste é a lembrança

De perfeita ventura perdida

Pior seria uma falsa esperança

De renascer para nova vida

E de julgar que na mudança

Se obtém a cura pretendida



XII

Eras tu que meu ser procurava

Eras tu, agora me dói a certeza

Que a lembrança mais escava

Neste peito destroçado pela tristeza

Que me importa agora a formosura

Se vivo apenas deste sofrimento

Sabendo que deste mal não tenho cura

Desta paixão não há esquecimento

Prefiro guardar memória do passado

Que abrasou nossos corpos e almas

Por muito que amor me tem magoado

E por este destino ter conhecido

Já não desejo mais do que as calmas

Eternas, ao pé de ti adormecido


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