terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

[NO PAÍS DOS SONHOS] ASA CHAN - MINKARA


Estava naquele aeroporto há tantas horas. Esperava já não sei que voo; apenas sabia que tinha de esperar por uma vaga, um lugar num voo ... para chegar ao meu destino.
Os zumbidos, ruídos metálicos e as vozes confundiam-se e formavam um fundo sonoro contínuo. De vez em quando, dormitava, mas depressa acordava. A espera era ritmada pelas vagas de gente que se aproximavam ou afastavam, no hall em me refugiara.
Ia-me entretendo com recordações recentes da minha estadia naquela terra, já distante, a que deixava para trás, ou daquela a que regressava.
Talvez tivesse sido ao terceiro dia, que o encontrei. Ele estava tão saturado como eu. Descobrimos que íamos para o mesmo sítio. Falámos de coisas triviais, prometemos nos encontrar mais tarde.
Mas a probabilidade real de nos encontrarmos depois, após a chegada à cidade-destino, era muito próxima de zero.

Dias depois, recebi a gravação acima, por via de redes sociais... só depois de muito pensar, cheguei à conclusão que tinha vindo dele; o tal colega de infortúnio no aeroporto em caos total.

Síntese e harmonização do nosso andar em círculo, em torno do Globo, tal como moscas zunindo até caírem exaustas? Ou profunda meditação que nos auxilia a abrir os chakras do corpo e alma? Ou ainda expressão do mundo de sonho, veiculado pelo músico xamã?

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

BACH AO PIANO

Houve, desde a segunda metade do século XX, um renovo de interesse pela música antiga, especialmente barroca, na perspectiva de uma maior fidelidade às sonoridades de origem, da restituição do ambiente sonoro da época, o que implica a interpretação apropriada, usando instrumentos antigos (ou cópias dos mesmos) e as técnicas adequadas para os tanger. 

Porém, a música de J. S. Bach, desde o século XIX nomeadamente, a partir de Mendelssohn, foi sendo «redescoberta» e reinterpretada por sucessivas gerações, usando a orquestra moderna e o piano, o que realmente coloca estas interpretações e reportório numa categoria à parte. 

Hoje, o ensino de instrumentos de tecla dá um enorme relevo às peças de Bach. De facto, o próprio deixou para a posteridade recolhas com intuitos claramente didáticos: os Livrinhos (Büchlein) para Ana Magdalena e Wilhelm Friedmann, os Orgelbüchlein (versões de corais para órgão solo, de variados estilos) e os Clavier Übung. Um dos volumes dos Clavier-übung inclui as partitas e o concerto italiano, aqui interpretado por Lang Lang:

                        

                              https://www.youtube.com/watch?time_continue=2&v=_pdcTqNn2qQ


Na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, a transcrição ou «redução» para piano solo de peças inicialmente compostas para orquestra ou para órgão, tornou-se muito comum. Helène Grimaud tem uma excelente interpretação da Chaconne (composta para órgão solo) em Ré menor, transcrita por Busoni

                                     
                                    https://www.youtube.com/watch?v=sw9DlMNnpPM

Os concertos para cravo e orquestra foram populares antes dos anos 1970, antes do renovo do interesse do grande público pela interpretação mais genuína da música antiga e em especial da música para cravo. Vários intérpretes dos anos 50 e 60 incluíam estas peças de Bach no seu reportório. Um deles foi Glenn Gould, cujas gravações de Bach são reeditadas e apreciadas muitos anos após sua morte precoce. 



A criação de um reportório para o piano usando música de Bach tornou-se de novo «moda», recentemente, graças a alguns grandes interpretes. A adaptação ou transcrição ao piano implica uma «reinvenção» ou «reinterpretação» de música que manifestamente não tinha sido pensada para este instrumento. Evgeny Kissin interpreta de forma bastante convincente a siciliana da sonata para flauta e cravo BWV 1031, transcrita para piano.

                                         

                             https://www.youtube.com/watch?time_continue=2&v=SGUd_kWdrkQ









domingo, 25 de fevereiro de 2018

VERÓNICA O. BAPTISTA, OBRAS* (VOL. 5)

(*colecção particular; aguarelas, tintas-da-china e guaches)


                            





                          

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

NEANDERTAIS E HUMANOS «MODERNOS» - CIÊNCIA E VULGARIZAÇÃO CIENTÍFICA

                 
                            Conchas perfuradas e restos de ocre em sítios arqueológicos datados
                             e identificados com os Neandertais 
                             http://advances.sciencemag.org/content/4/2/eaar5255
                             
A somar a muitas outras anteriores, chega-nos a notícia de que grutas em zonas do Sul de Espanha tinham pinturas rupestres (não figurativas) originárias de uma época em que a zona somente era povoada por neandertais, sendo certo que os «Homo sapiens modernos» ainda não tinham aí chegado. Estes saíram de África, segundo se estima actualmente, há menos de 60 mil anos, tendo permanecido vários milénios no Levante (onde é hoje Israel, Líbano...). 
Eles, os homens «modernos», antes de chegar à Península Ibérica, dispersaram-se por zonas do Centro e do Leste da Europa e por outro caminho - bordejando o Mediterrâneo - ocuparam territórios no Sul e Oeste europeu.


                                     
Sendo os humanos modernos uma espécie em competição directa pelos mesmos recursos que seus parentes, os Homo sapiens neanderthalensis, as zonas anteriormente povoadas  exclusivamente por neandertais foram sendo também aquelas onde os humanos «modernos» se vieram a estabelecer. 
A substituição não foi brusca, pelo contrário, foi muito longa. Houve - de certeza  - hibridação genética (todos os euroasiáticos possuem pedaços de ADN de origem neandertal, sabe-se isso desde os princípios deste milénio); houve também «hibridação cultural», desde há muito que se reconheceu que populações neandertais, supostamente mais «primitivas», teriam copiado muita tecnologia dos Homo sapiens «modernos», sendo muito incerto atribuir certos sítios arqueológicos a homens «modernos» ou aos neandertais, somente com base em artefactos obtidos nas escavações. 

Não há dúvida de que, no caso da humanidade ancestral, a dinâmica populacional é complexa e não se coaduna facilmente com o estereótipo de uma «progressão linear», de uma «evolução progressiva e ininterrupta» instilada pela media ignorante e apressada, ou pelos «manuais de História» adoptados no ensino, que retraçam os primórdios da Humanidade de modo muito esquemático, ao ponto de transmitir ou reforçar ideias-feitas (preconceitos) nos alunos. 
Por fim, temos uma comunidade científica que debate com calor os seus pontos de vista, nem sempre utilizando bons argumentos: Veja-se o caso da polémica (científica, antes de se tornar mediática) em torno do «menino de Lapedo» (descoberto e descrito por João Zilhão, 1998).

Para mim, é ocasião de me maravilhar, pelo facto de cientistas estarem muito preocupados em fazer encaixar a realidade das suas descobertas dentro dum quadro rígido conceptual, ou seja:
Existem conceitos de espécie diversos. 
Por exemplo, o conceito de espécie de Lineu, implícito na taxonomia de espécie bi-nominal (o nome específico do homem é Homo sapiens; o género ao qual pertence é apenas "Homo")... ainda está presente, cada vez que se dá um nome (segundo a nomenclatura taxonómica) a nova espécie...
Ou o conceito biológico de espécie, devido Ernst Mayr: segundo esta definição, são da mesma espécie os indivíduos que -no seu ambiente natural (não enjaulados, etc)- se cruzam e dão descendência fértil. Isto significa que os híbridos, resultantes do cruzamento das duas populações iniciais, podem cruzar-se entre si, sem perda de fecundidade e tendo descendência plenamente fértil.
No século XIX e princípio do séc. XX, com a popularização do Darwinismo e de teorias evolutivas associadas a uma antropologia «racial», punha-se a questão de saber se as diversas «raças» humanas  deveriam ser classificadas como seres da mesma espécie... Foi necessário muito sangue e sofrimento para que fossem varridos os preconceitos racistas que imbuíam os discursos de muitos cientistas (antropólogos, historiadores, biólogos, sociólogos... e claro, depois repercutidos pelos media, até ao «homem da rua»). 
Só se começou a questionar seriamente o conceito de «raça» aplicado ao humano na década de 1960, com LewontinStephen Jay Gould e outros. 
Segundo a biologia, uma nova raça (no sentido verdadeiro, sem aspas) é uma nova espécie que está em formação, que ainda não se separou completamente da espécie de origem. Há ainda interfecundidade com a espécie de onde provém,   mas esta já não é perfeita. Por exemplo, a taxa de fertilidade dos híbridos (a descendência de 1ª geração, resultante do cruzamento entre raças «puras») está diminuída. 
Uma população onde os indivíduos possuem um decréscimo significativo da fecundidade no estado natural, está - a prazo - condenada a desaparecer. 
Suponho que tal deve ter acontecido, ao longo de muitas centenas e mesmo milhares de anos, às populações dos neandertais que se intercruzaram com homens «modernos». 
Os híbridos teriam menor viabilidade do que qualquer uma das linhagens puras - neandertal e homem moderno. 
Tal é possível nas espécies em causa, porque os neandertais evoluíram durante muitos milhares de anos (mais de 100 mil?) de forma completamente separada dos restantes Homo, que permaneceram em África
Por outras palavras: após tanto tempo, o homem de Neanderthal, devido às adaptações ao clima muito frio e agreste do continente euro-asiático (equivalente aos climas do extremo norte da Europa ou da Sibéria, de hoje), era inevitável que seus genes tivessem diferenças significativas em relação aos homens «modernos», que permaneceram em África, do outro lado do Mediterrâneo: estes últimos só entraram na Europa há cerca de 60 mil anos... 
O encontro e cruzamento entre as várias sub-espécies (ou raças verdadeiras) que constituíam as várias populações do género Homo no continente euroasiático, com a espécie Homo sapiens «ancestral» vinda de África, acabou por esbater as marcadas diferenças físicas (morfológicas, bioquímicas, etc). 
A espécie humana actual é única e as chamadas «raças» não são verdadeiras raças*, pois a inter-fecundidade, entre os membros de diversas etnias ou populações e a fecundidade dos seus híbridos é plena: não existe qualquer tipo de barreira genética ao cruzamento. 
O preconceito é que torna tão complicado o assunto, pois as espécies humanas desaparecidas são vistas, subjectivamente, como «nossas» ancestrais. 
Se as víssemos apenas como um conjunto de espécies que evoluíram, espécies que são objecto de estudo em paleoantropologia, em biologia e em genética das populações... talvez houvesse menos carga emotiva no debate! 
- Mas nós, os humanos, somos assim... subjectivizamos tudo!  

...............
*ver também o meu livro de 2008, sobre o processo de humanação: 
https://app.luminpdf.com/viewer/cSg3omvykP9g3rj5u

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

AS TENDINHAS DE SEOUL -por EDUARDO BAPTISTA*


AS TENDINHAS DE SEOUL*


Na metrópole gigantesca de Seoul há mil e uma maneiras de passar o tempo. O conceito de “passatempo” é levado ao seu ponto extremo,  nesta sociedade.
A partir do momento em que o assalariado sul-coreano atinge uma posição sénior na sua empresa, as associações desportivas passam a desempenhar uma função vital na sua vida pessoal. À medida que os compromissos profissionais e sociais impostos pelo trabalho na corporação diminuem, o homem sul-coreano tem cada vez mais tempo livre, o que - num certo sentido - o incomoda.
A mega-urbe de Seoul, à primeira vista, parece esvaziada de espírito. Aqui, as duras realidades da concorrência no mercado provocam um atrofiar do espírito humano.
Mas aqui, como em qualquer cidade, o espírito refugia-se principalmente na memória viva de suas gentes.
Para realmente penetrar no interior de uma cultura, para se poder sentir suas inúmeras manifestações e compreender as suas nuances, é preciso ir para o lugar certo.
Em Portugal, talvez Belém seja um lugar onde se possa respirar algo da glória longínqua dos Descobrimentos ou - se calhar- antes numa taberna escondida do Bairro Alto, que ofereça fado vadio ao vivo, aquela música que escorre pela alma e aquece o corpo.
Mas em Seoul, uma das cidades mais modernizadas e ocidentalizadas do Oriente, tais lugares são difíceis de encontrar; não existe cidade velha aqui, nenhum bairro onde se possa apreender a Coreia antiga, quando não existiam Coreia do Sul e do Norte, apenas o reino de Joseon. Um museu aqui, um palácio acolá, demasiado dispersos para poder criar um certo equilíbrio estético, que Lisboa ainda consegue – a custo – preservar.

A cidade tem sido arrastada pela corrente da modernização acelerada, fenômeno que tem sido causa principal da separação gradual entre a atividade económica citadina e o seu passado, a sua história. A mélange entre prédios antigos e novos não existe: o que se vê, por todo o lado, são escavadoras.
A cidade está sempre a crescer, a evoluir, cada vez mais eficiente, proporcionando uma vida aparentemente mais confortável aos seus habitantes. Assusta ver a força das grandes cadeias, como a Starbucks, que parece ter conseguido espalhar, no mínimo, três lojas por cada grande rua do centro da cidade. Não existe uma “Alfama de Seoul,” nenhum lugar que nos aqueça a alma, nem um lugar onde ressoem os ecos de momentos históricos.

Ainda assim, encontrei algo semelhante nas tendinhas de Seoul. Conhecidas como pojangmacha – literalmente o “Carrinho de cavalo empacotado”– é difícil incluir tais tendas na categoria “restaurante”: os petiscos coreanos são aí vendidos, mas não há empregados de mesa. Estas tendas são famosas em todo o país, mas não há nenhum painel, nem qualquer tipo de publicidade em torno destas tendinhas. Erguidas ao fim da tarde, desmanteladas de madrugada, as pojangmacha são únicas, pois não têm presença física permanente.



Mas, esta e outras características, fazem com que sejam o lugar perfeito para ver e ouvir o povo; aqui, pode-se interagir de forma desinibida com os coreanos.
As tendas do lado direito da rua, especializam-se num só petisco ou numa pequena variedade deles, em geral comidos em pé. O ambiente descontraído permite observar e interagir com os fregueses à volta da tenda, ao ar livre.



Enquanto experimentava um chouriço glutinoso (conhecido como sundae) reparei que uma rapariga, talvez estudante universitária, estava a comer este mesmo prato, com uma mão, enquanto a outra folheava um livro de preparação para o exame «TOEFL»*(*Exame para obter um diploma/certificado de aptidão em língua Inglesa)

Se fixarmos este momento e o relacionarmos com as milhares de escolas privadas que ensinam o Inglês, espalhadas pela cidade, podemos compreender muito sobre a vida dos estudantes de Seoul: Quando chega a altura dos exames, a mente desta moça e muitos outros jovens, entra em «modo robótico». Para a maioria, o que desencadeia esta mudança de estado mental é o medo pânico de falhar e isso reflete-se nos seus métodos de estudo.
Voltemos para a jovem a comer o seu petisco: Por mais que se possa louvar a sua aplicação a estudar, duvido que ela jamais tenha conversado em inglês com um estrangeiro. TOEFL, TOEIC, ou qualquer outro exame, fariam sentido se destinados a certificar competências linguísticas. Porém, ignoram a locução, focando-se somente na memorização. É trágico ver que uma rapariga muito jovem se esgota decorando listas de palavras que eu - tendo estudado em Inglaterra- ou os meus colegas e amigos ingleses, nunca usaríamos na vida real. Esta rapariga é a primeira pessoa na Coreia que vejo a «marrar» enquanto come mas, infelizmente, não é a primeira que observo a usar um método de estudo ineficaz e cansativo.

Curiosamente, encontrei alguém com uma opinião interessante sobre este tema do stress educacional e sobre muitos outros, um pouco mais adiante, numa tenda vendendo umas panquecas recheadas de feijão doce.


“Os jovens coreanos são gananciosos demais,” diz An Nyeong Su, professor reformado de 65 anos.

“Há muitas pessoas que já me olharam de alto por eu fazer este trabalho. Outros, ficam completamente estupefactos e perguntam-me para que é que eu continuo a trabalhar, já que tenho um mestrado, sou da classe média e vivo sem problemas financeiros", continua An, enquanto espalha o creme de uma nova panqueca na chapa quente.
Em 2011, depois de ter passado 30 anos a ensinar língua coreana aos estrangeiros, o Senhor An decidiu que não iria passar o tempo da reforma a jogar golfe e a ver televisão, como a maioria. À procura de novas experiências, decidiu fazer algo que envolvesse trabalho manual, qualquer coisa que fosse o oposto da sua carreira como professor. Tendo ouvido que havia uma vaga na zona dos «pojangmacha» para quem quisesse aí abrir uma tenda, não hesitou em pagar a licença e começou imediatamente à procura dum petisco ao gosto coreano.
Sete anos depois, confirma-se que o Senhor An escolheu bem o seu petisco: jovens, idosos, ou turistas, todos se deixam tentar pelas suas panquecas. O Senhor An trata todos os clientes com muito respeito, o tom de voz é natural e o seu olhar calmo. Vê-se que ele gosta mesmo daquilo que faz.

“O que muita gente não sabe é que meu trabalho aqui é melhor do que numa empresa,” observa ele, sorrindo. “Quando preparo uma destas panquecas, não penso em mais nada, senão naquilo que estou a fazer,” continua.
Pergunto-lhe qual a sua opinião sobre o facto de muitos jovens coreanos acharem que seu país é um “inferno”, um país onde o stress educacional é tão grande e as oportunidades de emprego tão escassas, que é impossível ser-se feliz (dizem eles).
“Na minha opinião, o problema é que os nossos jovens são demasiado gananciosos. O problema é que eles só querem integrar as universidades e empresas de maior prestígio,” responde sem hesitação.
Perguntei-lhe então se alguma vez ele sentira dificuldades, ou algum tipo de stress, ao criar os seus filhos. “Não, nunca tive,” diz An. “Nunca entendi aqueles pais que falam sobre os filhos como se fossem um fardo. Sempre eduquei os meus de maneira suave, sem lhes impor nada.”
Não estava eu à espera de encontrar cidadãos de Seoul com esta mentalidade, de quem vive para apreciar a vida; não para «mostrar o seu valor» aos olhos dos outros.
Em Portugal, com o sol a brilhar, a praia mesmo ao lado e o som do mar a acompanhar, sentir-se contente com o que se tem, não é demasiado difícil.
O mesmo não se pode dizer em relação aos que vivem numa cidade com uma densidade populacional correspondente a três vezes a de Portugal, sob um céu cada vez mais afetado pela poluição e um mercado de emprego tão competitivo, que a Coreia do Sul tem estado no topo da tabela … de taxas de suicídio.
Mas ter encontrado uma pessoa como o Senhor An, capaz de se abstrair das pressões impostas pela sociedade onde vive foi, sem dúvida, reconfortante. Agradeci-lhe a entrevista e segui caminho, na esperança de encontrar mais indivíduos interessantes.













….
Agora, é altura de investigar as tendas do lado esquerdo da rua. Maiores que as do lado direito, estas são autênticas pojangmacha. Completamente cobertas, com um plástico transparente e amovível, que funciona como porta de entrada, estas tendinhas têm um charme rústico, sem pretensões.



Os mariscos e peixes estão expostos à frente do cliente, prova suficiente da qualidade da matéria-prima. 
Aqui não existem sofás, como no Starbucks; os clientes sentam-se em bancos de plástico, uma mão sobre a mesinha e a outra, segurando um copito de soju, a bebida alcoólica mais apreciada pelo povo.





Após ter realizado a primeira entrevista com a dona de uma destas tendas do lado esquerdo da rua, comecei a sentir-me muito mais à vontade, neste ambiente. Nos cinco dias que passei a frequentar as tendas do lado esquerdo, acabei por conviver com muitos sul-coreanos idosos e de meia-idade, uma experiência que seria difícil de conseguir noutro lado.
Há certos diálogos que valem a pena ser transcritos, pois ilustram certas particularidades deste povo.


O senhor da direita (na foto acima) é um romântico e nostálgico do passado, em que Seoul não era a metrópole modernizada de hoje. Ninguém questiona a modernização em si mesma, mas é interessante que estes habitantes sintam falta de uma certa imprevisibilidade: ela está ausente nos restaurantes de hoje. Ele procura nestas tendas o ambiente reinante na Seoul dos anos setenta e oitenta.

“Agora há muitos restaurantes que oferecem comida com a mesma qualidade, por um preço muito mais baixo que as pojangmacha, por isso é natural que elas estejam em perigo de extinção. Mas nós, sendo já velhos, não queremos saber do preço, continuamos a vir aqui por causa das memórias”, disse ele.

“Memórias belas?”, perguntei-lhe.

“Sim! Memórias de amor! As pojangmacha eram aquele lugar onde se faziam e desfaziam ligações amorosas. Ainda me lembro de um dia, em que passei horas numa destas tendas, à espera da rapariga de quem eu gostava, sem saber se ela me tinha pendurado ou não, pois nessa altura não existiam telemóveis,” respondeu com paixão, enquanto os amigos dele iam fazendo troça. Mas ele ignorava-os e continuou...
“Tudo amadurecia nas pojangmachas; o amor e a alma também.”



Kim Su-Ja, de 74 anos, é uma veterana desta área. Dona duma tenda há mais que 40 anos, suas memórias são, propriamente, o testemunho vivo da ascensão e declínio das pojangmacha.

“Só depois de Lee Myung-Bak ser presidente [em 2006] é que o meu negócio (e o dos outros, neste beco), começou a sofrer.”
“Como eram as coisas dantes?”
“Antes, só neste beco havia três discotecas. À frente da minha tenda, havia um palco onde meninas de mini-saia dançavam - todas malucas - até de madrugada; nessa altura é que havia negócio! Mas agora isto não está a dar.”

“Os Chineses são os melhores!
- Os Americanos...esses não os aturo, só vêm cá beber.
- Os Japoneses parecem ser um pouco avarentos: pagam tudo a meias e nunca pedem mais que 2 pratos, disso eu não gosto.
- Os chineses são o oposto, há sempre uma pessoa que paga a conta e essa pessoa pede sempre um pouco de tudo.
Nem quero falar dos Americanos, tanto me chatearam que já não os sirvo.”

“Em relação ao álcool, não há dona mais severa que eu. Não sirvo pessoas bêbadas, não vendo mais do que duas ou três garrafas de soju a qualquer cliente. Às onze e meia de noite fecho a tenda e vou para casa.”
“Pois, outros patrões de tendas nesta rua dizem-me que chegam a vender 10 garrafas a um grupo de clientes…”
“Eu não sou desse tipo, esses patrões não sabem o que estão a fazer.”


Choi Yong-Su, uma Senhora de 54 anos, é nova neste beco. Abriu a sua pojangmacha em 2014 e espera lucrar o mais possível, até completar 60 anos, altura em que planeia reformar-se e regressar à sua terra natal, em Gangwon-Do, uma província rural ao sul de Seoul. 
Dotada de um otimismo inabalável, a Senhora Choi tem muitos clientes fiéis, que a adoram pela sua empatia. Faladora e sorridente, estabelece laços de amizade com seus clientes. Isso é uma das razões pelas quais a Sra. Choi gosta do seu trabalho.

Sra Choi: «Já não me lembro do nome dela, mas uma vez uma rapariga japonesa deu-me uma gorjeta de 150,000 Won (120 euros). Ela estava deprimida porque o namorado coreano faltou a um encontro.
“- Ela falava um pouco de coreano. Perguntou-me: como é que as coreanas reagem quando um namorado age assim?
Eu respondi-lhe: Aqui não se perdoa, mandamos mensagem dizendo-lhe que ele nunca mais apareça à nossa frente e assim a relação acaba. Imediatamente, ela enviou uma mensagem deste tipo e começou a beber sozinha. Como tinha pena da pobre miúda, servia-a e ia dando-lhe palmadinhas nas costas. De repente, ela sacou de 100,000 Won da carteira e entregou-me esse dinheiro! Eu recusei, claro, mas ela disse que no Japão este tipo de gorjetas era normal.
Nessa altura, o namorado entrou na tenda e ela começou logo a fazer uma grande cena, dizendo-lhe que não queria mais nada com ele, etc.
Falei com ela para a acalmar, dizendo-lhe que o namorado cancelou o encontro porque estava ocupado com seu trabalho (o que era verdade), e não por já não gostar da rapariga. Num repente, ela aceitou o meu conselho, agarrou o braço do namorado e - antes de sair porta fora- virou-se para mim …  “Senhora Choi!”, gritou e atirou 50 000 Won para o ar. Não queria aceitar tanta gorjeta, contudo os dois disseram-me que eu merecia.»

Porém, ser dona de uma pojangmacha também tem as suas chatices. Muitos dos clientes sentem-se mais à vontade a embebedar-se no ambiente informal e rude dos pojangmacha em vez dos restaurantes convencionais, com teto e porta. Álcool em excesso, mais o stress dos problemas pessoais, fazem com que muitos clientes se portem de uma forma mal-educada, ou mesmo violenta, nestas tendas.

A cena abaixo, bastante cómica afinal, em que estive envolvido, tem a ver com bêbados.
Três homens bêbados arranjaram um pretexto para se meterem comigo, enquanto eu estava a entrevistar a Senhora Choi.
“Ó miúdo! Nós agora mesmo usámos palavrões, porque é que continuaste a filmar?” perguntou-me um dos senhores. A sua fala era arrastada, tinha bebido muito.
“Não, não senhor, não tem que se preocupar! Eu estava a filmar a senhora Choi, não a si ou os seus amigos,” respondi-lhe da maneira mais educada possível.
“Ok, Ok… mas isto não pode ir para os jornais, ouviste? Senão, hás de ter problemas comigo!” avisou-me, com um certo pânico na voz.
“Nada desse género, senhor, isto é só um projeto de escola, sou estudante universitário, não um jornalista verdadeiro.” disse-lhe eu, continuado a filmar sem eles se aperceberem.
“Mas sabes que...este tipo de coisa...pode-se considerar uma violação dos nossos direitos humanos,” disse ele com uma expressão séria. Ao ouvir uma tal acusação ridícula a senhora Choi interveio.
“Isso não faz sentido nenhum, senhor! Ele nunca vos filmou, é a mim que ele está a entrevistar e isto é somente para um projeto de escola.”
“Ai sim? És de que escola, então?” perguntou o outro homem, com uma voz irritante, que soava como a dum corvo.
“Sou da Universidade de Pequim,” respondi. Mas ele, pareceu não ter gostado da resposta.
“A Universidade de Pequim? Ai é? Então eu sou da Universidade cu-de-jesus!” disse ele num tom sarcástico, tentando por a ridículo o fato de eu ser de uma universidade prestigiada. Na Coreia do Sul, onde tantos jovens se esfolam para poder entrar em boas universidades, é natural que muita gente presuma que os estudantes têm uma certa arrogância por estarem em universidades de prestígio.
Os três homens acabaram por ficar amuados e foram-se embora. Nesse momento, a expressão preocupada da Senhora Choi desapareceu e começou a rir.

“Sabes, tantas vezes vejo este tipo de cliente: barulhentos, malcriados, agressivos. Eles normalmente vêm para aqui depois de jantar, já bêbados. O que me irrita mais, é que eles nem pedem pratos principais, só um ou dois petiscos, e durante a meia hora que estão aqui bebem, fumam, e causam problemas com os outros clientes!” disse ela.

Lee Gyong-Hi, de 57 anos, também tem muitas memórias e histórias de coisas que se passaram dentro da sua tenda, embora as que ela me contou fossem de carácter romântico e não cómico, como as histórias da senhora Choi.

“Gosto muito de estar aqui quando chove. Acho comovente o som das gotas a caírem sobre a minha tenda.” disse ela com uma voz suave. Na sua tenda não havia mais ninguém, estávamos sós, eu e a Sra. Lee, por isso a conversa fluía muito naturalmente.
“Então e quando neva?” perguntei-lhe.
“Quando neva ainda é melhor. Ver casais e amantes de mãos dadas, olhando para a neve, falando sobre a vida e outras coisas profundas, dá realmente grande prazer de se ver.”


A transformação de zonas inteiras de Seoul em urbanizações de grandes blocos procede a ritmo rápido. Assim, as áreas licenciadas para estas tendinhas também se vão expandindo. Pois as pojangmacha continuam a ter razão de existir e mesmo tornam-se cada vez mais importantes, para que a capital conserve alguma conexão com o seu passado. As pojangmacha são acarinhadas pelo povo de Seoul, especialmente os que assistiram à expansão das zonas com tendas, em paralelo com a modernização da cidade.



Como dizia um Senhor, enquanto me enchia o copo com soju, “não há nenhum lugar nesta cidade que tenha tanto «hinoera» como as pojangmacha.”
A palavra hinoera é a tradução coreana do conceito chinês, xǐ-nù-āi-lè. Refere-se às quatro emoções fundamentais: felicidade (huān), raiva (fèn), tristeza (bēi'āi) e alegria (kuài). As histórias contadas pelos donos de pojangmacha parecem confirmar tal afirmação. Muitos clientes, especialmente os da geração mais velha, não vêm cá só para se embriagar; eles vêm partilhar um passado comum, procurar conselho, ou discutir planos para o futuro, sabendo que os donos são bons ouvintes.

Uma refeição nas pojangmacha pode fazer o coração sentir-se mais leve e,ao mesmo tempo,o estômago cheio. É por isso que, debaixo da sombra crescente dos arranha-céus do bairro de Jongno3-ga, as tendas continuam a ser erguidas todos os fins de tarde.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

COMPLEXO DESENLACE DE UMA GUERRA DITA «CIVIL»

                                   
                                               - Mapa da situação no terreno na Síria

Após uma previsível derrota em toda a linha dos objectivos estratégicos da coligação heterogénea comandada pelos EUA, resta a esta potência e a Israel fazerem guerra suja (ainda mais suja) flagelando alvos russos, como se fossem «enganos», como se os bombardeamentos tivessem como alvo o «Estado Islâmico». A mesma «falta de pontaria» se nota, pelos americanos e israelitas, em relação às forças do Exército governamental sírio. 

Na frente norte, em Afrin, o exército turco invadiu um pedaço grande de território sírio, com o pretexto de combater os «terroristas»... mas estes são afinal as milícias curdas do YPG.

Felizmente, tanto do lado do YPG como do exército governamental sírio, houve bom senso suficiente para se entenderem de forma ao exército do governo de Damasco poder combater esta grosseira violação das fronteiras Sírias pelo seu vizinho do Norte. 
O governo turco está mais e mais apostado em fazer figura de grande potência regional. Os seus partidários já se atrevem a «considerar a hipótese» de invadir a Grécia. Sim, o partido de Erdogan exibe ambições megalomaníacas!   

Em suma, os EUA deixam o Levante em muito pior estado do que estava antes, mas isso serve os seus interesses:  manter - a todo custo - sua hegemonia mundial. 
Faz parte disso a política do caos e de constante provocação contra as potências rivais que são a Rússia e a China, que tem sido advogada pelos neocons quer durante administrações Democratas, quer Republicanas .