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domingo, 15 de novembro de 2020

[EDUARDO BAPTISTA] Portugal sente, em especial, nos Açores os efeitos da tensão sino-americana

                      

Leia o artigo muito bem documentado do jornalista Eduardo Baptista, um luso-coreano a trabalhar no jornal de língua inglesa de Hong Kong «South China Morning Post». 

terça-feira, 18 de setembro de 2018

«ENTRE A CHINA E A COREIA» POR EDUARDO BAPTISTA



Este pergaminho de caligrafia chinesa foi oferecido à escola pelo presidente sul-coreano Park Chung-Hee em 1969, Lê-se: “Coreia e China, amigos íntimos”. (韩中亲善)  

Á volta da capital sul-coreana de Seul, a influência da China é visível. Nos distritos centrais da cidade, empresas de consultoria de educação exibem cartazes gigantes que oferecem cursos que “garantem” levar os clientes, de um nível básico de Mandarim, até ao grau mais elevado do exame de proficiência em língua chinesa (HSK 6), tudo no intervalo de 30 dias.
Em Myeong-dong, o centro da indústria cosmética de Seul, vendedores sul-coreanos podem ser vistos a falar um chinês quase perfeito, enquanto tentam vender máscaras e perfumes aos milhares de turistas chineses, grande parte dos quais viaja para Coreia do Sul somente para comprar produtos cosméticos de alta qualidade.

Mas noutras paragens menos turísticas, é a vez dos imigrantes chineses fazerem a sua presença sentida. Tomando o metro em direcção sudoeste, chega-se ao bairro de Daerim-dong, conhecido por ter a maior concentração de imigrantes chaosienzu (), a minoria étnica coreana da China.
As principais ruas de Daerim-dong estão repletas de restaurantes que servem gastronomia de todas as regiões da China.


No entanto, um reduto da cultura e língua chinesas em Seul tem estado enfraquecido nas últimas duas décadas. Situada no distrito de Sodaemun, no noroeste da cidade, a Escola Secundária Chinesa de Seul foi estabelecida como escola básica em 1948, por um grupo de imigrantes chineses envolvidos no comércio sino-coreano. Depois do começo da Guerra da Coreia, a 25 de Junho de 1950, a escola foi rapidamente transferida para a Câmara de Comércio Chinesa de Busan, no sul da Península coreana. Mais tarde naquele ano, quando as forças sul-coreanas e da ONU foram encurraladas em Busan pelo exército norte-coreano, apoiado pelos soviéticos, a escola teve que ceder seu espaço para os soldados, transferindo-se para uma morada muito mais humilde: algumas tendas numas colinas situadas nos subúrbios de Busan. Após o fim da guerra, em 1953, a escola voltou para Seul, acrescentou o ensino secundário e em 1956 recebeu reconhecimento oficial do governo sul-coreano.




A entrada da Escola Secundária Chinesa de Seoul. O poster rosa, no lado esquerdo, diz, em coreano, "Agora é a Era da China" numa tentativa de atrair mais alunos coreanos para o currículo chinês oferecido pela escola.




Dois leões de pedra, uma característica comum da arquitectura imperial chinesa, flanqueiam as escadas que vão até o prédio principal da escola




“Fiel, filial, trabalhador, parcimonioso”. Valores confucianos exibidos na entrada do edifício principal da escola




Avisos bilingues passam pelo painel de LED da escola, exibindo frequentemente ditados confucianos como o da direita, "o valor da vida depende do que se contribui e não do que se adquire"




Os “quatro laços sociais” do sistema de valores confucianos - propriedade, justiça, honestidade e senso de vergonha - pintados na parede




Os altos e baixos desta escola secundária têm sido ditados por mudanças históricas nas relações sino-coreanas. Como o actual director Yu Zhisheng explica, na época da sua fundação, a escola era propriedade da embaixada taiwanesa na Coreia do Sul, que a financiou na esperança de encorajar os alunos a mudarem-se para Taiwan depois de se formarem. A cidadania taiwanesa fazia parte do pacote oferecido aos jovens imigrantes, assim como uma bolsa para estudar numa universidade taiwanesa.



Alunos e professores lamentam a morte de Chiang Kai-Shek, 6 de abril de 1975

O apoio financeiro do governo taiwanês foi decisivo no crescimento da escola. No final dos anos setenta, quando Yu era estudante, a escola atingiu o seu auge, com 2800 estudantes.
No entanto, após décadas de industrialização, a motivação inicial de Taiwan para financiar a escola começou a diminuir, trazendo uma diminuição gradual do financiamento governamental até 1992. Nesse ano, a decisão da Coreia do Sul de transferir o reconhecimento diplomático de Taiwan para a República Popular da China finalizou o corte de apoio económico à escola. Isto levou ao aumento anual das propinas que, no início dos anos 2000, ultrapassava a média das escolas privadas em Seul, causando uma diminuição gradual no número de estudantes; a escola hoje tem pouco mais de 500 alunos, o número mais baixo da sua história.

A escola teve que encontrar soluções para não entrar na insolvência. Perguntei a Yu porque é que o campo de futebol não tem relva sintética como a maioria das escolas secundárias coreanas: olhando para o chão, responde que foi decidido pelo Conselho de Administração há alguns anos que um campo de areia, por ser mais “natural” do que um campo relva sintética, teria uma melhor influência nos alunos, explicação que me parece ser desculpa para medidas de austeridade.
De qualquer maneira, a necessidade da escola encontrar alunos cujos pais estivessem dispostos a pagar as propinas levou o antecessor de Yu, Sun Shiyi a decidir em 2008 (quando o prestígio global da língua chinesa estava em ascensão), abrir a escola aos sul-coreanos e outros estrangeiros, que agora compõem cerca de vinte por cento do corpo estudantil.
Ainda assim, os problemas financeiros persistem, o que levou as instalações da escola a ficarem significativamente atrás dos concorrentes na mesma faixa de preço, como as escolas internacionais de estilo britânico ou americano.





O campo de futebol da escola




Muitas instalações na escola têm necessidade de renovação

A situação vulnerável da escola tornou a postura de neutralidade entre o governo comunista da República Popular da China e o governo democrático de Taiwan ainda mais necessária para a sua sobrevivência.
Desde 1992, Yu afirma que a escola seguiu “valores pluralistas, centrados na filosofia confuciana": a maioria dos professores são, como Yu, da República Popular e ninguém tem reservas sobre o uso de materiais escolares de Taiwan.
Quando representantes do governo taiwanês vêm em visita, Yu  recebe-os alegremente; quando a embaixada da República Popular da China convida a escola a participar no concerto de Ano Novo, Yu aceita sem hesitação.
A bandeira de Taiwan é erguida nos aniversários de Sun-Yat Sen e Chiang Kai-Shek, ao lado das suas estátuas, à frente do prédio principal da escola, mas nenhuma bandeira é içada quando o hino taiwanês é cantado todas as  segundas-feiras de manhã, depois da embaixada da República Popular da China ter tido uma “conversa amigável” com Yu.



 

Estátuas de Sun Yat Sen (acima)
e de Chiang Kai Shek (abaixo)
na entrada principal da escola
O declínio da escola parece estranho, dado os fluxos maciços de migração da China continental para a Coreia do Sul desde 1992. O número de imigrantes chineses, da China Continental, na Coreia do Sul aumentou 22,5 vezes entre 1990 e 2011. A KOSIS, o serviço de Informação Estatística da Coreia, revelou, no censo populacional mais recente dos residentes estrangeiros da Coreia do Sul, que 76% dos 245.000 imigrantes residindo em Seul são chineses, dos quais 71.4% são coreanos étnicos, ou chaosienzu (), 23.7% doutras etnias do Continente e 4,9% provenientes de Taiwan.

No entanto, uma análise mais detalhada dos imigrantes chineses em Seoul revela porque é que Yu continua a sentir dificuldades em aumentar o número de alunos matriculados. A maioria dos chaosienzu de Seul é composta por homens e mulheres solteiros que vêm para a cidade aproveitar-se dos salários relativamente altos oferecidos, para melhorar os padrões de vida das suas família no regresso à China. Quanto aos trabalhadores étnicos coreanos que adquirem vistos de residência permanente - como os proprietários de restaurantes de Daerim-dong - enviar os seus filhos para a escola coreana é a escolha lógica. A maioria dos jovens chineses da República Popular que decide morar na Coreia do Sul, chega a este país para estudos universitários, não do ensino secundário.

Preparar os alunos para competir com jovens coreanos, no exame ultra-competitivo de entrada universitária, conhecido como sunneung ( ), tem sido o principal desafio da escola, na última década.
No ano passado, o "Diplomat" escreveu sobre o número crescente de estudantes chineses que escolhem frequentar as universidades sul-coreanas, apesar das dificuldades que enfrentam no estudo da língua coreana.
Para superar este problema, a escola criou um programa, dez anos atrás, destinado a preparar estudantes chineses para o sunneung e o coreano de nível universitário.
Tanto Sun quanto Yu encorajaram os seus estudantes a considerar a possibilidade de se matricularem em universidades taiwanesas, devido ao seu processo de selecção ser menos competitivo, mas os pais temem que isso prejudique suas chances de encontrar emprego quando voltarem para a Coreia do Sul.

"Os estudantes e os seus pais estão tão preocupados em que não fiquem para trás, em comparação com os alunos coreanos, que estão sempre a pedir-nos para cancelar actividades relacionadas com a cultura chinesa, para terem mais aulas de preparação para o sunneung", afirma Yu, que tem persistentemente recusado acabar com aulas de caligrafia chinesa bi-semanais, bem como a viagem anual de "procura das raízes" na província chinesa de Shandong. Para Yu, a educação não pode centrar-se nos exames, especialmente, numa escola como a sua, que foi criada para ajudar os imigrantes chineses na Coreia do Sul a não esquecerem a sua cultura.

Cerca de 95% dos imigrantes chineses na Coreia do Sul, que não são etnicamente coreanos (chaosienzu), são de Shandong, incluindo Yu.
Quando a Coreia do Sul e a China se enfrentaram em Setembro do ano passado, devido à instalação na Coreia do Sul dos «THAAD», plataformas de defesa anti-mísseis com um radar poderoso, que Pequim temia fosse usada por Washington para espionar o espaço aéreo chinês, Yu sentiu-se deprimido; não por causa do conflito em si, mas porque as restrições de viagem subsequentes entre os dois países levaram ao cancelamento da viagem a Shandong.

Apesar da pressão académica, Yu está determinado a permanecer fiel às origens chinesas da escola. Num corredor, estão alinhadas fotografias emolduradas dos lugares mais belos da China; a fiel adesão da escola ao calendário chinês ao longo dos anos está documentada no corredor oposto. Uma outra parede exibe cerca de cinquenta peças de arte pintadas por estudantes; poemas da Dinastia Tang, como o icónico “Pensando numa Noite Tranquila” (夜思) de Li Bai (701-762), escrita elegantemente em chinês clássico, com aguarelas ilustrando as cenas descritas por um dos poetas mais famosos da história chinesa.

Yu acredita que no futuro haverá cada vez mais estudantes coreanos que, querendo estudar nas universidades chinesas, irão reforçar o corpo estudantil da escola.

“Eu quero que esta escola continue fazendo o que seus fundadores queriam: ajudar os imigrantes chineses em Seul a se integrarem. Mas isso não significa sacrificar o chinês pelo coreano. ”

No caminho, ele leva-me até à estátua de Confúcio, erguida ao pé do campo de futebol arenoso.


Estátua de Confúcio ao lado do campo de futebol da escola

“Isto”, aponta ele para a estátua imponente, “é a razão pela qual a nossa escola tem um significado, para além de servir os imigrantes chineses: O confucionismo é a raiz cultural dos dois países. Se um estudante coreano estudar aqui, ele não irá apenas aprender o chinês. Também perceberá mais sobre o seu próprio país, de uma forma que poucos têm a oportunidade de perceber. ”

sábado, 15 de setembro de 2018

CRÓNICA DE PEQUIM: O IMITADOR VOCAL HAI YANG * - POR EDUARDO BAPTISTA


(*) traduzido do inglês : 
  
                     

                  


"Não importa o país para aonde eu vá, toda a gente aprecia a minha arte por uma simples razão: é um reflexo da natureza", observa o mestre de imitação Hai Yang, relinchando como um cavalo para ilustrar a universalidade de kouji, uma arte tradicional de imitação sonora.

O nativo de Henan, de 39 anos, teve um ano produtivo: em 2017, como membro da Sociedade Acrobática de Beijing, passou um mês nos Estados Unidos a atuar à frente de dezenas de milhares com o seu talento e sentido de humor. Após o seu regresso à China, Hai foi convidado a integrar a equipa de efeitos sonoros do “Wolf Warrior 2”, o filme chinês com o maior  sucesso de bilheteira de sempre. Para este filme de guerra, Hai Yang imitou explosões de mísseis, tanques barulhentos e outros sons muito para além do repertório tradicional desta arte antiga.

Aqui está uma amostra do repertório moderno de Hai:

                       

Os registos históricos mostram que kouji (口技), literalmente "acrobacia da boca", existe na China há mais de 2300 anos. Hai narra com entusiasmo a famosa história do primeiro-ministro do Estado de Qin, Mengchangjun, um estudante de Confúcio que viveu durante o Período dos Reinos Combatentes (475-221 AC).

Em 299 AC, Mengchangjun foi acusado de espiar no seu estado nativo de Qi e posto na prisão, juntamente como os seus servos. O ministro buscou a ajuda da concubina favorita do rei de Qin, Yan Fei, que, em troca, exigiu um casaco de pele de raposa branca que Mengchangjun já tinha oferecido ao rei. Preso num dilema, um servo jovem e leal, decidiu usar kouji. No meio da noite, depois de escapar da sua cela, chegou à porta dos aposentos do rei e começou a imitar o som de cães a latir, distraindo os guardas o tempo suficiente para que ele pudesse infiltrar-se no quarto do rei e roubar o casaco.
Mas, depois de fugirem das celas do palácio Qin, Mengchangjun e os seus servos deparam-se com um outro problema ao chegarem à fronteira Qin-Qi (na atual província de Shaanxi), bem guardada por uma base militar. Mas antes que as tropas do rei Qin alcançassem os fugitivos, o jovem servo de Mengchangjun imitou o cacarejar dum galo e todos os galos nos arredores seguiram. Os porteiros, não tendo nenhuma espécie de relógio, pensaram que a manhã estava quase a chegar, abriram o portão e deixaram Mengchangjun e os servos passar.

                       
  
Imitar a música deste tordo era uma das formas artísticas de representar beleza feminina na China antiga.

Durante a dinastia Song (960-1279), a arte de kouji recebeu patrocínio imperial. O chilrear dos pássaros era um som que os cortesãos gostavam particularmente (de acordo com Hai, o canto dos pássaros era uma das quatro metáforas naturais para a beleza feminina, junto com as flores, o salgueiro e a lua).
A capacidade dos artistas kouji de imitar este som deu-lhes um lugar permanente nas festas de banquetes do Estado. Composições feitas exclusivamente de sons de kouji, incluindo “O canto dos cem pássaros” (鸟鸣), eram especialmente populares devido à boa sorte simbolizada por 100 pássaros.

Hai afirma que kouji alcançou tal nível de mestria nessa dinastia que o canto de certos mestres de kouji superava o pássaro que eles estavam imitando.
Um tal indivíduo, Zhang Kun Shan (张坤 ) conseguia fazer com que um tordo morresse de exaustação ao tentar cantar mais alto do que Zhang Kun Shan, ganhando-lhe a alcunha de Hua Mei Zhang (画眉 ), huamei sendo o nome chinês para a espécie de tordo que Zhang Kun Shan conseguia imitar. O próprio Hai lembra-se alegremente de exibir as suas habilidades à frente de tordos em gaiolas, deixando-os num estado de frenesim, e o seu dono algo chateado.
 Todos os chineses com educação básica têm algum conhecimento da arte, graças ao ensaio "Kouji", que faz parte do currículo do segundo ciclo. O texto, escrito pelo erudito Lin Si Huan ( ), descreve vividamente uma atuação teatral de kouji: O público senta-se à frente de uma tela, atrás
da qual o artista de kouji conta uma história com efeitos sonoros - cachorros latindo, um bébé horando, louça caindo - usando apenas a boca,
um bloco de madeira e um leque. O público preenche as lacunas com a sua imaginação.

                    
                  
                     A ilustração de “kouji” mostra como os sons
                    produzidos pelo artista kouji conseguem criar
                        imagens vívidas nas mentes do público.

 Ao contrário dos seus antecessores imperiais, Hai não foi preparado desde uma tenra idade para se tornar um mestre de kouji. Quando ele ainda era
criança, sentiu-se atraído pela imitação vocal puramente por diversão; a sua primeira imitação foi de um galo na sua aldeia. Ele ri-se ao descrever
o seu passatempo de imitar sotaques, como o do amolador, enganando os vizinhos que saíam de casa segurando dezenas de facas só para descobrir
que não havia ninguém na rua. Na escola, ele sentava-se ao lado da janela, ouvindo os sons de fora e imitando-os, hábito ao qual os seus professores não achavam piada nenhuma, especialmente quando se tratava da sirene de uma ambulância.
 Foi o programa de televisão, «Luo Sang Estuda Arte» (洛桑 ), que plantou as sementes do sonho que Hai perseguiria nos próximos 20 anos
da sua vida. Apresentado pelo virtuoso mestre kouji Luo Sang (洛桑) e pelo comediante Yin Bolin (尹博林), o programa forneceu uma plataforma nacional à arte de kouji. Transmitido desde 1993 até ao final de 1995, quando Luo Sang morreu num acidente de automóvel aos 27 anos, o programa fez Hai Yang aperceber-se que era possível fazer carreira de imitar sons, por mais que os seus professores dissessem que seu talento era inútil e infantil.
 “Quando vi pela primeira vez Luo Sang a fazer a sua imitação de trompete e trombone, não achei que os seus sons eram difíceis de produzir, nem
achava que meu nível estava abaixo do dele”, lembra Hai, que tinha 14 anos naquela altura.
Acreditando que a morte de Luo Sang tinha criado uma vaga para a sua subida ao palco, Hai começou a estudar o reportório de Luo Sang, na
esperança de eventualmente viajar para o norte, para Pequim, aí encontrar o ex-parceiro de Luo Sang, Bolin, e começar um novo show juntos. Na era pré-internet, porém, era mais fácil falar de tais planos do que os executar.

Foi no exército que Hai esteve próximo de se transformar num artista kouji a tempo inteiro.  Ele candidatou-se para a trupe de artes da sua região, mas ficou surpreendido ao não ter sido escolhido na primeira ronda de entrevistas.




Determinado, dirigiu-se sozinho ao prédio onde as selecções estavam a decorrer. Pondo-se à frente da porta da sala, surpreendeu os líderes da trupe lá dentro ao “tocar” a famosa banda sonora do filme de guerra francês “Adieu l'ami” (1968). Ele foi convidado imediatamente a juntar-se à trupe, recebendo ordens para fazer as malas e tratar das despedidas. Mas pouco depois de chegar à sua nova divisão, um jipe chegou e trouxe-o de volta para a sua antiga divisão. Nesse momento ele soube o motivo de ter sido deixado fora da lista de candidatos: o seu sargento estava tentando
impedi-lo de deixar sua divisão. Hai, como subordinado, não teve escolha senão aceitar.
Quatro anos depois, outra tentativa foi frustrada pela mesma cadeia militar de comando, e o desiludido Hai acabou por tornar-se um trabalhador de colarinho branco em Pequim.

Anos mais tarde, Hai ouviu falar de um famoso mestre kouji que fazia parte da Sociedade Acrobática de Pequim, Niu Yuliang (牛玉亮). Através de uma combinação de favores e de sorte, Hai conseguiu acesso a um evento da Sociedade onde Niu estaria presente. Seis meses depois, ele tomou uma ausência injustificada do trabalho para poder assistir a um ensaio que contava com a presença do velho mestre, que já passava dos 70 anos. Hai Yang ofereceu-se para ajudar o mestre a caminhar e a descer e subir ao palco. Finalmente, aos 33 anos, Hai tornou-se aprendiz do velho mestre. Em 2014, Hai recebeu o título formal de "estudante" de Niu, entrando numa linhagem de artistas que perdura à mais que 2.000 anos.

Mais de 20 anos depois de ter visto pela primeira vez “Luo Sang Estuda Arte”, Hai começou a sua carreira como artista kouji.  O tour da Sociedade Acrobática pelos Estados Unidos levou kouji a lugares como o Kennedy Center, em Washington D.C., onde Hai, de 36 anos, foi um sucesso, atraindo fãs que o seguiam em todas as suas actuações na capital. Ele até recebeu elogios de Ivanka Trump, filha de Donald Trump, que nomeou a actuação de Hai como uma das suas favoritas da festa do Ano Novo Lunar organizada pela Embaixada chinesa em Washington. Enquanto trabalhava na pós-produção de “Wolf Warrior 2”, o desempenho de Hai recebeu orientação da maior especialista de efeitos sonoros da China, a amiga de Steven Spielberg, Wei Junhua.

                     
 Hai Yang (extrema direita), numa foto de grupo com Ivanka, a sua filha Arabella e outros dois artistas

Hai diz que tornar-se num mestre de kouji se baseia em 98% de esforço e 2% de sorte. Todos os dias Hai explora todos os movimentos possíveis da sua boca e garganta, todas as formas de inalação e exalação e todas as possíveis combinações de sons. O essencial é dominar todas as variações dum som: Hai demonstra as suas diferentes imitações de animais caninos, começando com o uivo dum lobo faminto, terminando com o ganir dum cachorrinho deprimido.

Audio - aqui:

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Hai está agora preparando-se para assumir as responsabilidades do seu mestre, que fará 80 anos no ano que vem. Isso envolve aprender certas composições clássicas, assim como encontrar novos sons que nunca tinham sido imitados antes, como o xun (), um antigo instrumento de sopro em forma de ovo, o bawu () instrumento tocado pelas minorias étnicas da província de Yunnan no sul da China e até mesmo o canto estridente da ópera pequinesa.

“A transmissão do kouji tem os seus limites, pois só pode ser transmitida oralmente”, observa Hai, resumindo o desenvolvimento da arte usando o ditado, 青黄不接 (“a safra antiga e a nova não se juntaram”). Hoje, há apenas um punhado de artistas kouji treinados na China e cultivar novos talentos não é fácil: ao contrário dos ginastas que atuam ao lado de Hai, os artistas kouji atingem o nível de artista muito mais tarde, e só alcançam o status de “mestres” após décadas de treino.

No entanto, Hai tem começado a treinar alguns alunos e a sua crença no valor intrínseco do kouji cresceu à medida que ele tem recebido mais acolhimento positivo de públicos estrangeiros.
  "Você não precisa falar uma palavra de chinês para desfrutar da minha arte,” diz Hai, imitando uma solene trombeta de um funeral militar.
“O Kouji não tem fronteiras, tudo o que desejo é continuar a mostrar esta arte ao mundo inteiro”, declara ele. Logo a seguir, exibe uma amostra da sua composição mais recente, terminando como a sirene de ambulância que o punha de castigo quando era criança.
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*Original em língua inglesa em: 

terça-feira, 11 de setembro de 2018

CRÓNICA DE PEQUIM - EDUCAÇÃO VOCACIONAL NA CHINA*... - POR EDUARDO BAPTISTA

                          




Educação vocacional na China: a peça-chave que falta

Na última década, a cobertura da  educação chinesa pela media concentrou-se quase exclusivamente no Gaokao, o exame de admissão para universidade na China. Sendo um dos dias mais importantes no calendário chinês, é natural e correto que tal fenómeno seja noticiado, ano após ano. Artigos escritos por correspondentes de grandes jornais ocidentais têm-se focado muito na pressão que tal sistema impõe à juventude chinesa. Contudo, é importante saber que há alternativas em discussão na China que, caso sejam desenvolvidas, poderão vir a tirar um grande fardo das costas de milhões de jovens chineses da classe baixa.

"Quando se trata das regras do Gaokao, o exame e as suas características, não estou minimamente interessado; são apenas o sintoma de um problema mais amplo, a falta de opções do ensino pós-secundário para os jovens chineses”, disse Wang Shu Guang (王曙光), professor de economia da Universidade de Pequim.

Wang tem estado na vanguarda de discussões académicas sobre o desenvolvimento económico da China rural. Oriundo de uma pequena aldeia em Shandong, uma província no nordeste da China, o Gaokao era a sua única saída. Tendo conseguido entrar na prestigiada Universidade de Pequim, a primeira pessoa na sua aldeia a realizar tal feito, Wang nunca mais sairia desta universidade, construindo uma carreira respeitável.

A sua história de sucesso alimenta a visão generalizada que a maioria do público chinês tem do Gaokao: como sendo a única oportunidade de um jovem chinês pobre "mudar o seu destino" (改变 他 的 命运)。

De acordo com Wang, no entanto, as premissas originais sobre as quais o Gaokao foi instituído já não se aplicam hoje em dia. Durante os anos 80 e o início dos anos 90, quando as taxas de entrada na universidade ainda estavam abaixo de um em cada dois candidatos, quando simplesmente entrar numa universidade era um feito incrível aos olhos de uma ampla gama de empregadores, qualquer jovem de estatuto social baixo podia olhar para o Gaokao com esperança, pois havia uma alta probabilidade de que o resultado desse ao jovem acesso a um lugar numa universidade nas grandes cidades, e por consequência, um emprego urbano com um salário muito mais alto do que o dos pais.

Hoje em dia, quando as taxas de ingresso na universidade excedem 80%, entrar na universidade não é garantia de que os estudantes de baixo estatuto social obtenham as habilitações ou o prestígio de que precisam para subir na escala social. De facto, os estudiosos observaram que tem havido uma tendência crescente de graduados universitários de segunda ou terceira linha, de famílias rurais, que não conseguem encontrar um emprego adequado, forçando-os a voltar para a casa dos pais.

Universidades de prestígio como a Universidade de Pequim, Tsinghua e meia dúzia doutras são as únicas excepções a essa tendência. A garantia de um emprego bem remunerado depois de se formar nessas universidades é suficientemente alta para que a baixa probabilidade de entrar valha a pena ser tentada. De facto, para os jovens chineses rurais com boas notas, essas chances só os tornam mais competitivos e ansiosos nos seus últimos dois anos do ensino secundário.

Shao Xin (劭 鑫), de 25 anos, estudante de Mestrado em Engenharia Elétrica na Universidade de Pequim, conhecida como “Beida”, é um caso exemplar. Oriundo duma aldeia rural de Shanxi, ele afirma que, mesmo enquanto criança, ele e muitos outros já estavam bem conscientes de que a mudança para as cidades era o único objectivo de cada um, sendo a escola o meio para esse fim.

Nos seus últimos anos do ensino secundário, especialmente no ano em que ele retomou o décimo segundo por não ter conseguido entrar na Beida nessa primeira vez, estava sob enorme pressão: do seu pai, um cultivador de batata-doce que não conseguiu terminar o ensino secundário, pressão também da sua escola, ansiosa por colher os benefícios de ter um aluno em Beida e, acima de tudo, da sua própria pessoa, exigente e com baixa auto-estima.

"Eu sempre soube que minha inteligência não era fora do normal, por isso dependia do meu esforço, ninguém conseguia acompanhar o meu ritmo nessa altura", disse Shao. No fim, Shao chegou à terra prometida e agora está a poucas semanas de começar seu novo trabalho, muitíssimo bem pago, na Huawei, a rival chinesa da Apple.

Apesar do apelo romântico de tais histórias, o fato é que casos como Shao Xin estão tornando-se cada vez mais raros. Até ao ano passado, quando o governo introduziu cotas de entrada, a proporção de estudantes em Beida e Tsinghua vindos de famílias rurais estava diminuindo anualmente, caindo para os 15% em 2016, uma estatística que muitos académicos viam como demonstrando a necessidade de reformar o Gaokao. A realidade é que, para a grande maioria dos jovens de zonas rurais, que nem são incrivelmente dotados, nem capazes de trabalhar tão arduamente quanto Shao, o Gaokao e a escola secundária, em geral, não são tão atraentes como dantes.

É precisamente por causa disto que estudiosos como Wang acreditam que mais atenção deve ser dada a outra instituição educacional: as escolas vocacionais.

"A China carece de trabalhadores com espírito de artesão" (gongjiang jingshen, 工匠 精神) precisamos de pessoas capazes de construir belas canalizações, alguém que possa coser roupas, abrir pequenas lojas, ter iniciativas empreendedoras. Este é o futuro dos chineses nas classes sociais médias e baixas, especialmente os agricultores”, argumentou Wang, mencionando o sistema educacional de elite da Alemanha como um modelo a ser seguido.

Muitos obstáculos sócio-culturais se perfilam no caminho para tal futuro. Ir para a universidade e receber uma educação académica traz prestígio social na China. O Centro Nacional de Educação e Economia publicou um relatório em 2013 em que observava que um dos maiores desafios enfrentados pelo sistema de ensino e aprendizagem vocacional da China era o baixo prestígio deste na mente do público.

"Olhar de cima para baixo o artesanato é uma consequência de preconceitos educacionais provenientes da China antiga. Naquela época, uma boa educação era ler obras de literatura, não se dava valor a habilidades mais práticas e manuais. Estes pensamentos fazem parte da filosofia confuciana chinesa que continua a impedir que os jovens chineses façam escolhas práticas no início das suas vidas ”, observou Wang.

O outro lado da moeda é a continuação da deificação de universidades de prestígio em Pequim e Xangai, tanto nos meios rurais como urbanos.

"A partir do momento em que o meu irmão mais novo e eu nascemos, o meu pai tornou os nomes Beida e Tsinghua sagrados em nossa casa", relembra Shao Xin.

"Foi-me inculcando, desde a mais tenra idade, que eu deveria procurar estudar numa universidade de primeira classe", disse Ge Xi Zheng (葛 煕 正), um jovem de 18 anos duma família urbana de classe média, que fez os exames do Gaokao este ano.

"Mesmo que eu não queira fazer isso no futuro, o facto de estar numa universidade de primeiro nível terá mais influência sobre mim do que estando numa faculdade vocacional. As pessoas comportam-se de maneira diferente, tanto na fala como no comportamento”, afirmou Ge.

No entanto, a qualidade geral do ensino nas universidades chinesas tem diminuído recentemente. Os cursos excessivamente teóricos e com pouca relação com o mercado de trabalho têm sido o principal motivo de preocupação. De acordo com Wang, mesmo os diplomas técnicos em universidades não fornecem as habilitações necessárias para desenvolver um “espírito artesanal”. Ele usou o exemplo da indústria, que teria sido promissora, dos artigos de laca na cidade de Yangzhou, no sul do país.

"Os artigos de laca sempre foram uma indústria dominada pelo Japão, mas há alguns anos o mercado chinês começou desenvolver-se em Yangzhou. A Universidade de Yangzhou ofereceu um curso popular centrado na construção de artigos de laca, mas não foi prático o suficiente. Os estudantes tornaram-se especialistas em fazer o design dos objectos em laca, mas não da sua construção. Cada vez que precisavam de algo feito, iam directamente à fábrica e pediam a um trabalhador para fazer a peça, mas como o número de trabalhadores com esse tipo de habilidade era muito pequeno, a oferta não acompanhou  a procura e o mercado murchou", observou Wang.

Ao mesmo tempo, os problemas do sistema de educação profissional da China não são segredo para o Ocidente. No referido relatório do NCEE, foi relatado que a maioria dos curricula das escolas profissionais da China era "ultrapassada e irrelevante para as necessidades da indústria".

Em Pequim, no entanto, um instituto vocacional tem vindo a ganhar o reconhecimento nacional há mais de uma década. As origens da Universidade Bailie (培黎 职业 学院), uma instituição privada, não são convencionais, segundo os padrões chineses. Fundada em 1983 por um dos mais famosos apoiantes estrangeiros da China comunista do século XX, o neozelandês Rewi Alley, o nome Bailie é em homenagem ao amigo de Alley, Joseph Bailie, que iniciou um movimento educacional na China nos anos 50 que enfatizava a integração da teoria à prática.

Elogiada pelos líderes políticos da China, o maior feito da Bailie ocorreu no ano passado, quando Xi Jinping escreveu uma carta formal à escola, dando-lhe os parabéns por ter criado trabalhadores altamente qualificados, algo que terá de ser recriado em muitos outros lugares do país, se Xi espera realizar a sua promessa de fazer com que a China chegue ao estatuto de país “moderno”, de acordo com os patamares do Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, antes de 2050.

"Nós ocupamos o meio termo entre as escolas vocacionais tradicionais que apenas ensinam aos seus alunos um determinado saber-fazer  e as universidades como Beida e Qinghua", disse o diretor de Peili, Wang Yu Lin (王 余 临).

"Houve um tempo em que tentámos lutar para alcançar a reputação académica daquelas duas escolas, mas depois percebemos que isso era impossível, o que nos obrigou a sermos mais pragmáticos em relação às competências dos nossos alunos. Afinal de contas, não há muitas vagas no funcionalismo público, temos que nos certificar de que nossos alunos seriam capazes de ter sucesso noutros cargos mais práticos”, continuou ele.

Assegurar que cada curso tem conexões próximas com a indústria relevante tem sido a principal prioridade da Peili, que manteve uma taxa de emprego pós-licenciatura acima 95% durante a última década. Mais importante ainda, é a qualidade do emprego obtida pelos estudantes de Peili, que começa aproximar-se da dos formandos de Beida e Tsinghua. Uma professora de ciências de computação, que quis permanecer anónima, observou orgulhosamente que tinha alunos que conseguiram - logo após a formatura - obter empregos em que ganhavam mensalmente 16.000 ou 19.000 RMB (outra designação do Yuan; Rem Min Bin = a moeda do povo).

"Se você olhar para Zuckenberg, ele deixou a sua universidade de prestígio para fazer algo mais prático e útil para a sociedade. Eu sinto que Peili me ajudou a amadurecer e tornar-me numa pessoa que poderá fazer empreendedorismo no futuro ”, disse Rong Tong Tongde (荣 童童), um estudante de 20 anos de ciências  da computação na Peili.

Os estudantes universitários como Rong beneficiam imenso por estarem situados em Pequim: eles vão regularmente a Beida e a Tsinghua para assistir a palestras. E numa cidade tão grande como Pequim, que possui quase três vezes a população de Portugal, as oportunidades de emprego são numerosas.  
No entanto, ainda não existe certeza de que mais escolas da qualidade de Peili possam vir a ser criadas, fora de Pequim e Xangai.

"Muitos agricultores gostariam que os seus filhos estudassem algo de útil, mas o problema é que não há escolas", disse Wang Shu Guang.

"Acho que o sucesso de Peili se deve à extrema necessidade de que o sistema de ensino profissional seja liberalizado, em todos os lugares", observou Wang Yulin. O director realçou que, se não fosse pelo legado histórico e pela localização de Peili, teria sido impossível de alcançar a taxa de emprego de 95%. 
Tanto Wang Shu Guang quanto Wang Yulin estão cépticos quanto à possibilidade do governo contribuir mais para o desenvolvimento das escolas vocacionais na China.

"O governo cria programas de 5 a 10 dias que fornecem treino básico em competências técnicas, como o uso de um computador, mas o custo destes é incomparável ao da construção de um instituto vocacional. Um instituto destes é mais barato que o duma universidade, mas os fundos fora de Beiing e de Xangai ainda são escassos para tais projectos", observou Wang.

"Além da mercantilização, os empresários chineses, como Jack Ma e outros que seguem seus passos, são as pessoas com quem devemos contar para financiar o desenvolvimento e a reforma das escolas vocacional na China", continuou Wang.

Embora a filantropia educacional de Jack Ma ainda não se tenha alargado ao sistema educacional vocacional, Wang está convencido de que se, a China quiser fazer uma transição de economia abaixo dos Estados Unidos, na escala global de valores, para uma sociedade de inovação altamente qualificada, terá de investir pesadamente no sector vocacional, seja de que maneira for.

"Recorde as minhas palavras: As escolas profissionais na China vão crescer exponencialmente no futuro", diz Wang.

Original em inglês: