Houve, desde a segunda metade do século XX, um renovo de interesse pela música antiga, especialmente barroca, na perspectiva de uma maior fidelidade às sonoridades de origem, da restituição do ambiente sonoro da época, o que implica a interpretação apropriada, usando instrumentos antigos (ou cópias dos mesmos) e as técnicas adequadas para os tanger.
Porém, a música de J. S. Bach, desde o século XIX nomeadamente, a partir de Mendelssohn, foi sendo «redescoberta» e reinterpretada por sucessivas gerações, usando a orquestra moderna e o piano, o que realmente coloca estas interpretações e reportório numa categoria à parte.
Hoje, o ensino de instrumentos de tecla dá um enorme relevo às peças de Bach. De facto, o próprio deixou para a posteridade recolhas com intuitos claramente didáticos: os Livrinhos (Büchlein) para Ana Magdalena e Wilhelm Friedmann, os Orgelbüchlein (versões de corais para órgão solo, de variados estilos) e os Clavier Übung. Um dos volumes dos Clavier-übung inclui as partitas e o concerto italiano, aqui interpretado por Lang Lang:
Na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, a transcrição ou «redução» para piano solo de peças inicialmente compostas para orquestra ou para órgão, tornou-se muito comum. Helène Grimaud tem uma excelente interpretação da Chaconne (composta para órgão solo) em Ré menor, transcrita por Busoni.
Os concertos para cravo e orquestra foram populares antes dos anos 1970, antes do renovo do interesse do grande público pela interpretação mais genuína da música antiga e em especial da música para cravo. Vários intérpretes dos anos 50 e 60 incluíam estas peças de Bach no seu reportório. Um deles foi Glenn Gould, cujas gravações de Bach são reeditadas e apreciadas muitos anos após sua morte precoce.
A criação de um reportório para o piano usando música de Bach tornou-se de novo «moda», recentemente, graças a alguns grandes interpretes. A adaptação ou transcrição ao piano implica uma «reinvenção» ou «reinterpretação» de música que manifestamente não tinha sido pensada para este instrumento. Evgeny Kissin interpreta de forma bastante convincente a siciliana da sonata para flauta e cravo BWV 1031, transcrita para piano.
Eis um ponto muito importante, a razão pela qual eu não tenho a mínima consideração por certas pessoas, que se arvoram em defensoras de ideias... as quais, nalguns casos, até compartilho!
Seja-me permitido ilustrar o assunto dando o exemplo contrário:
Yuja Wang, o maestro e os músicos da orquestra que interpretaram magistralmente este concerto para piano de Mendelssohn e o próprio compositor... deram o corpinho ao manifesto:
Com efeito, como poderiam eles fazer de outro modo? Expõem-se à critica, aos aplausos ou pateada do público, estão vitalmente dependentes do que fazem e de como o fazem.
Não tenho nenhuma hesitação em dizer que os admiro e respeito muito acima de outros contemporâneos: políticos, opinadores, académicos, generais, «CEOs», etc. Mesmo os artistas com talento bem mais modesto que os exemplos aqui escolhidos são superiores, moralmente, aos que - desde um lugar seguro - comandam as tropas, no sentido próprio ou figurado.
É verdade que Verlaine foi buscar o título «Romances sans Paroles» a uma célebre recolha de peças de Mendelssohn para piano.
Porém, não me parece que haja muito mais do que uma importação de título, neste caso.
Pelo contrário, já a atmosfera das três peças de Gabriel Fauré, intituladas do mesmo modo e publicadas posteriormente à recolha de poemas de Paul Verlaine (recolha de poemas agrupados em três partes), se coaduna com a atmosfera de poesias de Verlaine, não apenas de «Romances Sans Paroles», como de outras recolhas.
O impressionismo musical foi buscar tanto ao impressionismo pictórico quanto aos poetas «parnassianos», do qual Verlaine foi o expoente.
A musicalidade dos versos de Verlaine inspirou muitos músicos a musicarem os mesmos.
Se a poesia é toda ela música, não existe, a meu ver, poeta mais musical, em língua francesa.
Romances sans paroles de G. Fauré
Green
Voici des fruits, des fleurs, des feuilles et des branches Et puis voici mon coeur qui ne bat que pour vous. Ne le déchirez pas avec vos deux mains blanches Et qu'à vos yeux si beaux l'humble présent soit doux.
J'arrive tout couvert encore de rosée Que le vent du matin vient glacer à mon front. Souffrez que ma fatigue à vos pieds reposée Rêve des chers instants qui la délasseront.
Sur votre jeune sein laissez rouler ma tête Toute sonore encore de vos derniers baisers ; Laissez-la s'apaiser de la bonne tempête, Et que je dorme un peu puisque vous reposez.
Soleils couchants
Une aube affaiblie Verse par les champs La mélancolie Des soleils couchants. La mélancolie Berce de doux chants Mon coeur qui s'oublie Aux soleils couchants. Et d'étranges rêves, Comme des soleils Couchants, sur les grèves, Fantômes vermeils, Défilent sans trêves, Défilent, pareils A de grands soleils Couchants sur les grèves.
Art poétique
De la musique avant toute chose, Et pour cela préfère l’Impair Plus vague et plus soluble dans l’air, Sans rien en lui qui pèse ou qui pose.
Il faut aussi que tu n’ailles point Choisir tes mots sans quelque méprise : Rien de plus cher que la chanson grise Ou l’Indécis au Précis se joint.
C’est de beaux yeux derrière des voiles, C’est le grand jour tremblant de midi ; C’est par un ciel d’automne attiédi, Le bleu fouillis des claires étoiles !
Car nous voulons la Nuance encor, Pas la couleur, rien que la Nuance ! Oh ! la nuance seule fiance Le rêve au rêve et la flûte au cor !
Fuis du plus loin la Pointe assassine, L’Esprit cruel et le Rire impur, Qui font pleurer les yeux de l’Azur, Et tout cet ail de basse cuisine !
Prend l’éloquence et tords-lui son cou ! Tu feras bien, en train d’énergie, De rendre un peu la Rime assagie. Si l’on y veille, elle ira jusqu’où ?
Ô qui dira les torts de la Rime ! Quel enfant sourd ou quel nègre fou Nous a forgé ce bijou d’un sou Qui sonne creux et faux sous la lime ?
De la musique encore et toujours ! Que ton vers soit la chose envolée Qu’on sent qui fuit d’une âme en allée Vers d’autres cieux à d’autres amours.
Que ton vers soit la bonne aventure Éparse au vent crispé du matin Qui va fleurant la menthe et le thym… Et tout le reste est littérature.