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quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

A PAZ DOS CEMITÉRIOS



                             

Tive uma estranha sensação, há alguns anos, quando visitei o cemitério da ONU, na Coreia do Sul, local onde estão depositadas as cinzas dos soldados que se bateram na guerra da Coreia sob a bandeira da ONU. É que, ao percorrer as alas de campas, estavam lá as bandeiras das nações que enviaram tropas do lado dos EUA/Coreia do Sul, mas não do lado oposto. 

Nem na morte, nem sob a bandeira da ONU (supostamente, organização unificadora de todos os países) havia um tratamento igual. Seriam estes mortos mais, ou exclusivos «merecedores» da nossa memória? Não seria isso perpetuar a guerra, mesmo pretendendo defender a paz? 

Afinal, qual o papel desta grande organização internacional? Será de palco para diálogos frutíferos entre regimes diferentes, em prol da paz... ou de conveniente capa, para «justificar» a actuação duma nação super-potência, que quer sujeitar todas as outras, mesmo as aliadas?

Igual também seria a minha tristeza, se tivesse ocasião de visitar o cemitério militar britânico, onde, como nos conta John Pilger, são homenageados militares e civis que perderam a vida em quadros de guerra até hoje, mesmo que em guerra não-declarada, mesmo nos atentados terroristas, em operações especiais, secretas e encobertas. 

Porém, onde estão homenageadas as que foram vítimas dos britânicos, incluído as numerosas vítimas civis da fria e impiedosa máquina de matar, mesmo quando accionada por outras mãos, que não britânicas, mas usando material feito e vendido pelo Reino Unido? Onde está o «humanismo», a nação «civilizada», que discrimina - mesmo na morte - contra os que caíram em luta, mas que estavam do lado «errado»? E os chamados «danos colaterais», as centenas de milhares de inocentes, civis de todas as idades, credos e condições, sacrificados aos deuses da guerra?

O Mahatma Gandhi respondeu o seguinte a um jornalista que lhe perguntou qual a sua avaliação da civilização ocidental: «Civilização ocidental? Uma excelente ideia! Oxalá que a venham a por em prática... ».... Esta réplica veio-me à memória, no momento presente.
Neste momento, a propaganda da media e dos mercadores de canhões, juntamente com a das marionetes que - de Washington a Berlim, passando pelo quartel-general da NATO em Bruxelas- querem convencer-nos da «necessidade» e «justeza» de guerra contra povos (como o russo ou o chinês, ou ainda o iraniano), cujos governos estão em situação defensiva, mas são pintados como grandes ameaças contra as nações ocidentais e seu modo de vida... 

E, não estou a falar de guerra futura, mas sim, presente: da guerra híbrida onde sanções, golpes orquestrados, actos de sabotagem, assassinatos, provocações e ataques de falsa-bandeira, fazem tantas ou mais vítimas (sobretudo, civis inocentes) do que uma guerra declarada, usando exércitos e toda a parafrenália militar. 

Tal como nos meses que antecederam as duas guerras mundiais, vão aumentando os orçamentos de «defesa», acumulando os instrumentos de morte, colocando estes próximo das fronteiras do «inimigo»; vão-se deixando caducar ou denunciam-se tratados cujo objectivo era diminuir a hipótese de confronto entre potências; intensificam-se bloqueios e sanções, totalmente ilegais face à legalidade internacional, que dizem respeitar. 
Sobretudo, vai-se intensificando a retórica belicista, com dois objectivos: 
1º O condicionamento massivo da opinião pública dos países do «eixo ocidental», para assim calar toda a dissidência, criminalizar todo o discurso de paz, de bom-senso ...
2º Obrigar os países que querem permanecer neutrais a escolher o campo «ocidental», sob ameaça de também eles serem sujeitos ao mesmo tratamento que os designados por «maus da fita»...

Não há solução para uma situação assim, enquanto as pessoas comuns não acordarem, enquanto não perceberem que terão de reagir de forma enérgica, pondo em cheque os planos mortíferos dos governos e das «alianças militares». 

Senão, estão destinadas a ser carne-para-canhão, porque a guerra é um óptimo meio, que têm os poderosos, para subjugar, tanto os povos «inimigos», como os nossos e de nossos aliados.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

«ENTRE A CHINA E A COREIA» POR EDUARDO BAPTISTA



Este pergaminho de caligrafia chinesa foi oferecido à escola pelo presidente sul-coreano Park Chung-Hee em 1969, Lê-se: “Coreia e China, amigos íntimos”. (韩中亲善)  

Á volta da capital sul-coreana de Seul, a influência da China é visível. Nos distritos centrais da cidade, empresas de consultoria de educação exibem cartazes gigantes que oferecem cursos que “garantem” levar os clientes, de um nível básico de Mandarim, até ao grau mais elevado do exame de proficiência em língua chinesa (HSK 6), tudo no intervalo de 30 dias.
Em Myeong-dong, o centro da indústria cosmética de Seul, vendedores sul-coreanos podem ser vistos a falar um chinês quase perfeito, enquanto tentam vender máscaras e perfumes aos milhares de turistas chineses, grande parte dos quais viaja para Coreia do Sul somente para comprar produtos cosméticos de alta qualidade.

Mas noutras paragens menos turísticas, é a vez dos imigrantes chineses fazerem a sua presença sentida. Tomando o metro em direcção sudoeste, chega-se ao bairro de Daerim-dong, conhecido por ter a maior concentração de imigrantes chaosienzu (), a minoria étnica coreana da China.
As principais ruas de Daerim-dong estão repletas de restaurantes que servem gastronomia de todas as regiões da China.


No entanto, um reduto da cultura e língua chinesas em Seul tem estado enfraquecido nas últimas duas décadas. Situada no distrito de Sodaemun, no noroeste da cidade, a Escola Secundária Chinesa de Seul foi estabelecida como escola básica em 1948, por um grupo de imigrantes chineses envolvidos no comércio sino-coreano. Depois do começo da Guerra da Coreia, a 25 de Junho de 1950, a escola foi rapidamente transferida para a Câmara de Comércio Chinesa de Busan, no sul da Península coreana. Mais tarde naquele ano, quando as forças sul-coreanas e da ONU foram encurraladas em Busan pelo exército norte-coreano, apoiado pelos soviéticos, a escola teve que ceder seu espaço para os soldados, transferindo-se para uma morada muito mais humilde: algumas tendas numas colinas situadas nos subúrbios de Busan. Após o fim da guerra, em 1953, a escola voltou para Seul, acrescentou o ensino secundário e em 1956 recebeu reconhecimento oficial do governo sul-coreano.




A entrada da Escola Secundária Chinesa de Seoul. O poster rosa, no lado esquerdo, diz, em coreano, "Agora é a Era da China" numa tentativa de atrair mais alunos coreanos para o currículo chinês oferecido pela escola.




Dois leões de pedra, uma característica comum da arquitectura imperial chinesa, flanqueiam as escadas que vão até o prédio principal da escola




“Fiel, filial, trabalhador, parcimonioso”. Valores confucianos exibidos na entrada do edifício principal da escola




Avisos bilingues passam pelo painel de LED da escola, exibindo frequentemente ditados confucianos como o da direita, "o valor da vida depende do que se contribui e não do que se adquire"




Os “quatro laços sociais” do sistema de valores confucianos - propriedade, justiça, honestidade e senso de vergonha - pintados na parede




Os altos e baixos desta escola secundária têm sido ditados por mudanças históricas nas relações sino-coreanas. Como o actual director Yu Zhisheng explica, na época da sua fundação, a escola era propriedade da embaixada taiwanesa na Coreia do Sul, que a financiou na esperança de encorajar os alunos a mudarem-se para Taiwan depois de se formarem. A cidadania taiwanesa fazia parte do pacote oferecido aos jovens imigrantes, assim como uma bolsa para estudar numa universidade taiwanesa.



Alunos e professores lamentam a morte de Chiang Kai-Shek, 6 de abril de 1975

O apoio financeiro do governo taiwanês foi decisivo no crescimento da escola. No final dos anos setenta, quando Yu era estudante, a escola atingiu o seu auge, com 2800 estudantes.
No entanto, após décadas de industrialização, a motivação inicial de Taiwan para financiar a escola começou a diminuir, trazendo uma diminuição gradual do financiamento governamental até 1992. Nesse ano, a decisão da Coreia do Sul de transferir o reconhecimento diplomático de Taiwan para a República Popular da China finalizou o corte de apoio económico à escola. Isto levou ao aumento anual das propinas que, no início dos anos 2000, ultrapassava a média das escolas privadas em Seul, causando uma diminuição gradual no número de estudantes; a escola hoje tem pouco mais de 500 alunos, o número mais baixo da sua história.

A escola teve que encontrar soluções para não entrar na insolvência. Perguntei a Yu porque é que o campo de futebol não tem relva sintética como a maioria das escolas secundárias coreanas: olhando para o chão, responde que foi decidido pelo Conselho de Administração há alguns anos que um campo de areia, por ser mais “natural” do que um campo relva sintética, teria uma melhor influência nos alunos, explicação que me parece ser desculpa para medidas de austeridade.
De qualquer maneira, a necessidade da escola encontrar alunos cujos pais estivessem dispostos a pagar as propinas levou o antecessor de Yu, Sun Shiyi a decidir em 2008 (quando o prestígio global da língua chinesa estava em ascensão), abrir a escola aos sul-coreanos e outros estrangeiros, que agora compõem cerca de vinte por cento do corpo estudantil.
Ainda assim, os problemas financeiros persistem, o que levou as instalações da escola a ficarem significativamente atrás dos concorrentes na mesma faixa de preço, como as escolas internacionais de estilo britânico ou americano.





O campo de futebol da escola




Muitas instalações na escola têm necessidade de renovação

A situação vulnerável da escola tornou a postura de neutralidade entre o governo comunista da República Popular da China e o governo democrático de Taiwan ainda mais necessária para a sua sobrevivência.
Desde 1992, Yu afirma que a escola seguiu “valores pluralistas, centrados na filosofia confuciana": a maioria dos professores são, como Yu, da República Popular e ninguém tem reservas sobre o uso de materiais escolares de Taiwan.
Quando representantes do governo taiwanês vêm em visita, Yu  recebe-os alegremente; quando a embaixada da República Popular da China convida a escola a participar no concerto de Ano Novo, Yu aceita sem hesitação.
A bandeira de Taiwan é erguida nos aniversários de Sun-Yat Sen e Chiang Kai-Shek, ao lado das suas estátuas, à frente do prédio principal da escola, mas nenhuma bandeira é içada quando o hino taiwanês é cantado todas as  segundas-feiras de manhã, depois da embaixada da República Popular da China ter tido uma “conversa amigável” com Yu.



 

Estátuas de Sun Yat Sen (acima)
e de Chiang Kai Shek (abaixo)
na entrada principal da escola
O declínio da escola parece estranho, dado os fluxos maciços de migração da China continental para a Coreia do Sul desde 1992. O número de imigrantes chineses, da China Continental, na Coreia do Sul aumentou 22,5 vezes entre 1990 e 2011. A KOSIS, o serviço de Informação Estatística da Coreia, revelou, no censo populacional mais recente dos residentes estrangeiros da Coreia do Sul, que 76% dos 245.000 imigrantes residindo em Seul são chineses, dos quais 71.4% são coreanos étnicos, ou chaosienzu (), 23.7% doutras etnias do Continente e 4,9% provenientes de Taiwan.

No entanto, uma análise mais detalhada dos imigrantes chineses em Seoul revela porque é que Yu continua a sentir dificuldades em aumentar o número de alunos matriculados. A maioria dos chaosienzu de Seul é composta por homens e mulheres solteiros que vêm para a cidade aproveitar-se dos salários relativamente altos oferecidos, para melhorar os padrões de vida das suas família no regresso à China. Quanto aos trabalhadores étnicos coreanos que adquirem vistos de residência permanente - como os proprietários de restaurantes de Daerim-dong - enviar os seus filhos para a escola coreana é a escolha lógica. A maioria dos jovens chineses da República Popular que decide morar na Coreia do Sul, chega a este país para estudos universitários, não do ensino secundário.

Preparar os alunos para competir com jovens coreanos, no exame ultra-competitivo de entrada universitária, conhecido como sunneung ( ), tem sido o principal desafio da escola, na última década.
No ano passado, o "Diplomat" escreveu sobre o número crescente de estudantes chineses que escolhem frequentar as universidades sul-coreanas, apesar das dificuldades que enfrentam no estudo da língua coreana.
Para superar este problema, a escola criou um programa, dez anos atrás, destinado a preparar estudantes chineses para o sunneung e o coreano de nível universitário.
Tanto Sun quanto Yu encorajaram os seus estudantes a considerar a possibilidade de se matricularem em universidades taiwanesas, devido ao seu processo de selecção ser menos competitivo, mas os pais temem que isso prejudique suas chances de encontrar emprego quando voltarem para a Coreia do Sul.

"Os estudantes e os seus pais estão tão preocupados em que não fiquem para trás, em comparação com os alunos coreanos, que estão sempre a pedir-nos para cancelar actividades relacionadas com a cultura chinesa, para terem mais aulas de preparação para o sunneung", afirma Yu, que tem persistentemente recusado acabar com aulas de caligrafia chinesa bi-semanais, bem como a viagem anual de "procura das raízes" na província chinesa de Shandong. Para Yu, a educação não pode centrar-se nos exames, especialmente, numa escola como a sua, que foi criada para ajudar os imigrantes chineses na Coreia do Sul a não esquecerem a sua cultura.

Cerca de 95% dos imigrantes chineses na Coreia do Sul, que não são etnicamente coreanos (chaosienzu), são de Shandong, incluindo Yu.
Quando a Coreia do Sul e a China se enfrentaram em Setembro do ano passado, devido à instalação na Coreia do Sul dos «THAAD», plataformas de defesa anti-mísseis com um radar poderoso, que Pequim temia fosse usada por Washington para espionar o espaço aéreo chinês, Yu sentiu-se deprimido; não por causa do conflito em si, mas porque as restrições de viagem subsequentes entre os dois países levaram ao cancelamento da viagem a Shandong.

Apesar da pressão académica, Yu está determinado a permanecer fiel às origens chinesas da escola. Num corredor, estão alinhadas fotografias emolduradas dos lugares mais belos da China; a fiel adesão da escola ao calendário chinês ao longo dos anos está documentada no corredor oposto. Uma outra parede exibe cerca de cinquenta peças de arte pintadas por estudantes; poemas da Dinastia Tang, como o icónico “Pensando numa Noite Tranquila” (夜思) de Li Bai (701-762), escrita elegantemente em chinês clássico, com aguarelas ilustrando as cenas descritas por um dos poetas mais famosos da história chinesa.

Yu acredita que no futuro haverá cada vez mais estudantes coreanos que, querendo estudar nas universidades chinesas, irão reforçar o corpo estudantil da escola.

“Eu quero que esta escola continue fazendo o que seus fundadores queriam: ajudar os imigrantes chineses em Seul a se integrarem. Mas isso não significa sacrificar o chinês pelo coreano. ”

No caminho, ele leva-me até à estátua de Confúcio, erguida ao pé do campo de futebol arenoso.


Estátua de Confúcio ao lado do campo de futebol da escola

“Isto”, aponta ele para a estátua imponente, “é a razão pela qual a nossa escola tem um significado, para além de servir os imigrantes chineses: O confucionismo é a raiz cultural dos dois países. Se um estudante coreano estudar aqui, ele não irá apenas aprender o chinês. Também perceberá mais sobre o seu próprio país, de uma forma que poucos têm a oportunidade de perceber. ”

domingo, 9 de setembro de 2018

CRÓNICA SINO-COREANA, PARTE IV: A POESIA DE YUN-DONG-JU por Eduardo Baptista*



Antes de ler a poesia do personagem principal desta semana, Yun Dong Ju (1917-1945), nunca me considerei um apreciador de poesia. Quando penso nos poucos encontros que tive com esta arte, vêm-me à memória os meus dias do secundário em Portugal.

Em Setembro de 2013, na aula de língua e literatura inglesa, fazia um calor insuportável que nos punha, miúdos de dezassete e dezoito anos, num estado incompatível com o estudo. Contudo, a nossa jovem professora, Miss Bird, não tolerava preguiça em qualquer circunstância. De olhos e nariz afiados, Molly Bird era uma londrina imbuída duma elegância e sofisticação cultural que forçavam o nosso respeito; o sotaque dela estava impregnado daquela melodia que todo o mundo associa com a classe alta inglesa, mas não era exagerado ao ponto de ser cómico. Talvez eu ainda esteja sob o feitiço dela, mas lembro-me de ter pensado que a voz dela era feita para falar de assuntos profundos, como a poesia.
Porém, nesse dia ela não teve que se esforçar muito para captar a nossa atenção. Toda a turma, incluindo os malandros que se sentavam lá atrás a ver as últimas notícias da bola no Record.pt, pôs-se a ler o poema que Miss Bird tinha colocado em cima da mesa de cada um. Era “O Caminho Que Não Foi Percorrido”, pelo americano Robert Frost, um poema que fala sobre as escolhas difíceis que cada um de nós tem que enfrentar durante a nossa vida. Já faz mais do que quatro anos desde a última vez que li um poema de Frost, mas há uma estrofe que - sabe-se lá porquê - nunca me saiu da cabeça:

E irei dizer isto suspirando                               I shall be telling this with a sign
Algures eras e eras depois                                Somewhere ages and ages hence:
Duas estradas divergiam no mato, e eu–   Two roads diverged in a wood, and I–
Tomei a menos percorrida                                I took the one less traveled by,
E isso fez toda a diferença.                               And that has made all the difference.

Avancemos rapidamente para Março de 2018. Estava falando numa vídeo chamada com a minha mãe, chateada comigo depois de ter visto um vídeo bastante medíocre, que eu tinha feito sobre os restaurantes-tenda de Seul. Pensava que ela estaria orgulhosa do seu filho, que depois de tantos anos sem estudar seriamente a língua coreana, conseguiu conduzir entrevistas em coreano e criar qualquer coisa que tinha a ver com a cultura coreana. Mas, caros amigos «tugas», não se pode esquecer que as mães coreanas são das mais objetivas e exigentes que há neste mundo.
“Mas que me importa que tenhas passado 25 dias a filmar esse vídeo, tudo o que eu vi foi tu a gaguejar como um palerma enquanto entrevistavas essas pessoas.”
“Vá lá, mãezinha, estava frio nesse dia, é por isso que eu estava a gaguejar, não sejas assim,” eu queixei-me.
“Podias ter tomado aulas de coreano, viajado pelo país, feito qualquer coisa de útil, meu filho! Como é possível que o teu coreano ainda não tenha melhorado depois de 40 dias em Seul, a sério que pensavas que fingindo ser jornalista irias resolver o problema?”
“Pelo menos aprendi como se bebe à coreana, não podes negar que isso é útil para a minha educação,” eu respondi, na esperança de que a minha mãe iria achar piada.”
“E que tal começares pelo básico? Abre o «chat» do Facebook, acabei de te enviar um poema escrito por um dos poetas coreanos mais famosos da era moderna, Yun Dong Ju. Gostava muito de ler os seus escritos quando era moça. Memoriza-o antes da próxima conversa e assim acreditarei que a borga em Seul tinha um objetivo educacional,” e assim se despediu a minha mãe.
Meu Deus! Já me tinha esquecido quão dura ela podia ser. Olhando para o link que ela me tinha enviado, temia enfrentar o que na altura pensava ser um escrito cheio de palavras coreanas complicadas e pomposas, que alguém com um nível de coreano medíocre como eu teria dificuldade em digerir. De qualquer modo, decidi pôr estas preocupações de lado e ver quem era este Yun Dong Ju.
O link levou-me para um blog apresentando o poema “Prólogo”, um dos poemas mais famosos de Yun, ensinado em todas as escolas coreanas do segundo ciclo. Lendo a primeira estrofe, fiquei surpreendido ao descobrir que a linguagem de Yun era simples, clara e imbuída de amor pela natureza, características que me atraíram na poesia de Frost há cinco anos atrás. Abaixo, está a minha tradução do poema.


Até o dia da minha morte, eu olho para o céu                  
Para não sentir nem uma gota de vergonha,                   
Mas no meio do vento onde as folhas tremem                  
Senti-me só.                                                                               
Tudo o que morre, tem que  ser amado                            
Com uma alma que canta como as estrelas                      
E o caminho que me foi dado                                                
Andarei.                                                                                     

Nesta noite de hoje, as estrelas desvanecem no vento.        

Tanto Yun como Frost falam sobre uma estrada que os leva para um certo destino, mas para onde exatamente? Para uma criatividade artística? Para a fama literária?
- Não me parece. Frost declama ‘com um suspiro’, enquanto reflecte o caminho que percorreu, Yun olha para a frente, contemplando o futuro que o aguarda como jovem coreano sem nação própria, com um desejo de lutar contra o imperialismo japonês, por mais poderoso que ele seja, por mais graves as consequências. Em ambos casos, os dois “caminhos” não parecem estar cheios de felicidade e prosperidade, muito pelo contrário.
Seguir o destino ou ir contra a corrente não é defendido como sendo objetivamente “bom” por qualquer um destes poemas; os dois autores aceitam estoicamente escolher a estrada menos percorrida, porque sentem uma compulsão irresistível de o fazer. Ainda me lembro de quando, há cinco anos atrás, li o último verso de “O Caminho que não foi percorrido” – «e isso fez toda a diferença» – e senti um surto repentino de bravura e esperança, daquela que é decorrente da compreensão esporádica de que a única coisa a fazer é, nas palavras de Friedrich Nietzsche, nos tornarmos no que somos.
Contudo, é preciso lembrar que tal escolha só poderá trazer-nos maior infelicidade do que a aceitação da conformidade. Nietzsche, depois de ter escrito durante tantos anos, que perseguir a felicidade era um comportamento de ovelhas, não do pastor que as comanda, enlouqueceu aos 44 anos, passando os últimos anos da sua vida num asilo.  Frost, apesar de ter estado rodeado de pastos idílicos e quintas durante grande parte da sua vida, sofreu períodos de grande depressão. Da mesma maneira, o desejo de Yun de deixar a sua terra naquele cantinho remoto do nordeste da China (conhecida agora como Yanbian) e de estudar nas cidades de Seul e Tóquio, mais tarde, trouxeram-no demasiado perto das autoridades japonesas, sempre vigilantes contra os movimentos de independência organizados pelos estudantes coreanos. Encarcerado aos 25 anos, falecido aos 27, deixou-nos menos de 50 poemas, escritos ao longo da sua curta vida.
A trajetória da vida de Yun também contém um outro elemento trágico, sensível para muitos coreanos.  Yun nasceu, formalmente, com nacionalidade japonesa, em vez de coreana. Nascido em 1917, sete anos depois da anexação da Coreia, Yun nunca viu uma Coreia independente, pois a sua morte - em Fevereiro de 1945 - antecedeu a capitulação do império japonês a 15 de Agosto, de 1945.
No entanto, este artigo debruça-se sobre o nascimento de Yun, ou dito melhor, a sua terra natal, a uns 50 km de Yanji. Quando Yun nasceu em 1917, a província autónoma de Yanbian não existia, porque os coreanos naquela altura não faziam parte de um Estado omnipresente no território inteiro da China. Em 1917, pode-se dizer que Yanbian estava cheia de coreanos, em vez de djosonjok, o nome coreano da etnia minoritária coreana na China.
Naquela altura, a península coreana ainda era vista pelos coreanos como um só país e os que tinham emigrado para o nordeste da China, quer fossem em busca de uma vida melhor ou para escapar à opressão japonesa, ainda se consideravam coreanos, tinham saudades da sua terra natal, acreditando que no futuro poderiam regressar. Isto foi o mundo em que Yun nasceu.
Como disse num artigo anterior, Yanbian - hoje em dia - é vista com bons olhos pelo governo chinês. Foi galardoada inúmeras vezes com o prémio “Prefeitura Exemplar do Ano” pelo Concelho de Estado Chinês, no pólo oposto da região autónoma de Xinjiang que recentemente tem sido vítima duma campanha do governo chinês contra o Islão e etnias minoritárias islâmicas, principalmente os Uigurs.
Mas quando Yun estava vivo, Yanbian não era mansa, pelo contrário, era o foco da resistência coreana contra o imperialismo japonês. Depois da anexação japonesa da Coreia em 1910, Yanbian tornou-se refúgio para os coreanos que recusaram colaborar ou aceitar os novos governantes japoneses– era perto da fronteira sino-coreana e havia uma comunidade coreana bem-estabelecida, pronta para acolher de braços abertos os heróis da pátria. Pode-se dizer que a Yanbian de Yun tornou-se numa segunda Coreia, depois da colonização desta pelos japoneses.

Dado que Yun fez parte deste período, podem imaginar a minha surpresa, ao chegar ao local de nascimento de Yun e ter visto as palavras “poeta chinês djosonjok patriótico”, inscritas em coreano e chinês na placa da entrada.



Como eu descobri depois, isto enfurece muitos turistas sul coreanos que têm visitado a casa de nascimento do poeta, desde a sua abertura em 2012, o que levou algumas organizações mediáticas sul coreanas a fazer reportagens sobre esta apropriação chinesa deste “herói do povo”

 Reportagem da organização mediática YTN sobre a representação errónea de Yun Dong Ju como sendo chinês

Antes de chegarmos à aldeia de Mingdong, parámos para almoçar na pequena cidade de Longjing. Depois de comer um delicioso guisado de cão, descobri que havia uma escola djosonjok nos arredores, alojando um museu dedicado ao poeta Yun, assim como estátuas e bustos.

«A escola djosonjok que brilha como as estrelas», uma referência a um dos símbolos que Yun mais frequentemente usava na sua poesia, escrita sobre uma placa ao pé da porta principal da escola.

Apesar do museu estar a meio duma renovação, tive a oportunidade de ver o busto de Yun.


… e este monumento gigante, um pedregulho cinzento, tendo nele gravado: “Yun Dong Ju, o poeta”, por cima de um cubo de mármore exibindo o poema “Prólogo”, por sua vez posto em cima dum cubóide negro tendo o mesmo poema gravado, mas em chinês.



Falando com o curador do museu, um djosonjok com baixo nível de mandarim (o dialeto do norte da China), ele apressou-se a definir Yun como chinês, antes de começar a queixar-se sobre um incidente quando alguns turistas sul coreanos entraram na escola, desfraldaram bandeiras sul-coreanas, e começaram a tirar fotografias com elas, nos monumentos dedicados a Yun. O curador chamou a polícia imediatamente, recordou ele, fazendo uma cara de desdém ao descrever o que ele achava ser arrogância sul-coreana, em ignorar a singularidade dos djosonjok
Nota-se que o orgulho dos djosonjok como sendo um grupo étnico coreano distinto dos sul-coreanos, leva-os a ignorar detalhes importantes históricos, como o facto de que Yun - sem dúvida - se considerava coreano, numa altura em que os imigrantes coreanos na China não tinham sido naturalizados. 
Os djosonjok, no presente, consideram-se como cidadãos chineses. Por isso, criar uma história que reforce esta identidade é o que importa. Achei particularmente interessante o facto de que este curador, apesar de falar coreano mil vezes melhor que chinês, exprimia uma retórica pró-China.

 Eduardo Baptista e o curador do museu Yun Dong-Ju da escola djosonjok de Longjing

De qualquer forma, a peregrinação de sul-coreanos para Yanji acabou bruscamente no verão de 2016. 
A decisão do governo sul-coreano de instalar o sistema de defesa antimísseis (conhecido como «THAAD») enfureceu o governo chinês, que viu tal decisão como sendo obra dos americanos, com intenção de usar o radar poderoso do THAAD para espiar o território chinês, que é vizinho da península coreana. Por esse motivo, o governo chinês impôs uma barragem de sanções económicas com severidade nunca antes vista. O turismo entre os dois países também fez parte destas sanções, que só em Outubro de 2017 foram levantadas.

Mas deixemos a política fora desta reportagem, e voltemos ao tema principal: a poesia.

Os caracteres representando «estrela, céu, e vento», cada um gravado numa coluna de granito.  
Olhando de perto a coluna da esquerda, encontrei o poema “Prólogo” gravado em coreano


No dia em que eu visitei a casa de nascimento de Yun, a entrada estava fechada. Só depois de algumas pesquisas no Baidu (a versão chinesa do Google) é que conseguimos encontrar o número de telemóvel do guarda deste lugar, o qual chegou passados 45 minutos, em cima de um trator, fumando um cigarro, enquanto olhava para mim como se eu fosse louco. Suponho que há muitos meses que ele não abria as portas desta casa a grupos de turistas sul coreanos e muito menos a um sul-coreano viajando sozinho.

Tinha as minhas dúvidas iniciais sobre esta visita. Contudo, após entrar no pátio desta casa-museu, fiquei encantado.


Em volta do pátio, encontravam-se todos os poemas de Yun Dong Ju, gravados em coreano, em rochas pousadas no chão, e em chinês nas torres de bronze. Saborear poesia duma maneira tão visual era uma novidade para mim, e entretive-me a pular de um poema para o outro. 
Em baixo, coloquei uma pequena selecção de poemas, traduzidos de coreano para português.


“Num dia assim”


Lá ao fundo, passando os pilares do portão da frente,
Num dia em que o Sol e o Céu dançavam,
Nesta aldeia coberta de ouro, sorriam as crianças.

Para crianças que passam o dia em aulas monótonas na escola,
E naquele tédio do fim do ano que se abate sempre,
Para que elas não percebam o significado do termo «contradição»,
As suas mentes têm de ser realmente muito puras.

Num dia assim
Sinto vontade de chamar
O irmão teimoso que perdi.



“Ameijoa – eu quero ouvir o som do mar”


Ao pé do mar, a nossa irmã colheu ameijoas,
Pontilhadas, pontilhadas conchas do mar.
Aqui, aqui é o país do Norte.
As ameijoas são prendas queridas,
As ameijoas são brinquedos.
Rebolando, brincando enquanto rebola,
A concha de ameijoa solitária
Tem saudades do seu parceiro perdido.
Pontilhada, pontilhada concha do mar,
Como eu, também tens saudades,
Do som da água,
Do som do mar.




“Prólogo”


Até o dia da minha morte, eu olho para o céu                  
Para não sentir nem uma gota de vergonha,                   
Mas no meio do vento onde as folhas tremem                  
Senti-me só.                                                                               
Tudo o que morre, tem que  ser amado                            
Com uma alma que canta como as estrelas                      
E o caminho que me foi dado                                                
Andarei.                                                                                     
Nesta noite de hoje, as estrelas desvanecem no vento.   
          

“Despedida”


A neve cai, um dia chuvoso chegou,
O céu cinzento tornou-se enevoado,
E, quando o enorme comboio a vapor chora
Fiu, Fiu! meu pequeno coração geme.
A despedida é demasiado apressada e triste
Dizemos às pessoas que amamos:
Apenas nos veremos no trabalho —
E antes dos apertos de mãos quentes e que sequem as lágrimas
O comboio vira a sua cauda em direção ao sopé.



“Na noite em que choveu”


Chuá-Chuá, Cracccc!
O som das ondas batendo nas janelas,
O sono, suavemente, dispersa os meus sonhos.

O sono é apenas como a agitação de um bando de baleias negras,
É incapaz de consolar.

O fogo revela os pijamas da Yeomi honesta,
Meia-noite,
Desejo.

Na terra de Longjing, é como se o rio Gang tivesse transbordado outra vez,
Faz-me sentir mais só que no Mar da Nostalgia.




Tal como o universo das tendinhas de Seul, a poesia de Yun Dong Ju é muito “humana”, pois cobre um vasto leque de emoções e temas, ao representar com precisão a mutabilidade emocional do homem e a natureza volúvel de sua mente. Ao contrário das tendinhas, em que os adultos coreanos deixam escapar sua fúria reprimida, a poesia de Yun carece precisamente desta característica, intrínseca à personalidade estereotipada do urbanizado típico coreano.
A razão pela qual os sul-coreanos veneram tanto Yun, é provavelmente devido ao poeta ser capaz de simplesmente observar o mundo, sem julgar ou mostrar-se preocupado com a sua posição em relação à sociedade. 
Num país onde o stress no trabalho abunda e onde conformar-se com as normas restritivas é obrigatório, a poesia de Yun fornece um pouco de paz de espírito, que nos ajuda a redescobrir a nossa capacidade de apreciar ou, pelo menos observar, o nosso estado emocional, em vez de agir cegamente de acordo com o que ele dita. Perante intenções tão puras, desprovidas de motivações ocultas, os sul-coreanos não podem deixar de se sentir comovidos por alguém que viu o mundo de maneira tão oposta ao que lhes tem sido inculcado desde a infância.
Depois de duas horas em que deixei a imaginação poética de Yun Dong Ju conduzir as minhas pernas, finalmente chamei, por telemóvel, o motorista que tinha saído da casa-museu, depois de lhe ter dito que 30 minutos não seria suficiente para eu me fartar deste santuário de poesia.
Ao sair, vi-o encostado ao capot do carro, fumando um cigarro. Sorriu-me, quando me aproximei dele.
-“Então, a visita está concluída, ou quê? Já estava a preparar-me para ficar cá até amanhã de manhã” gracejou.
Ri-me, dando-me conta que provavelmente ele pensava que eu era ché-ché.
- “Talvez me tenha sentido comovido, só um pouquinho, por este Yun…”
- “Sim, eu - por acaso - também me senti comovido,” disse ele.
Olhei-o surpreendido, o que - por sua vez - o surpreendeu.
-“Não é difícil gostar do que este tipo escreve. O charme dele é escrever de uma maneira tão simples que derrete o coração de todos. Os poetas chineses são fanfarrões, não percebo metade do que eles escrevem. Mas este gajo coreano, Yun qualquer coisa, é um homem do povo!”
Fiquei feliz por ele compartilhar alguns dos meus pensamentos. Conversámos durante mais de uma hora antes do porteiro finalmente vir trancar a entrada. Era quase o pôr-do-sol e decidimos apressar-nos de volta a Yanji.

 Estava contente com os meus cinco dias passados em Yanji, uma cidade bilingue e bicultural, onde vivem coreanos desiludidos com a China, as mais bonitas professoras de piano da Coreia do Norte e onde é homenageado o poeta coreano do século XX mais bem conhecido mundialmente. 
Teria sido bom passar mais tempo com djosonjok de diferentes percursos de vida, mas Pequim chamava-me. A minha única consolação foi que, no voo de regresso, a equipa de futebol de Yanbian também estava a bordo:
Até o avião aterrar no aeroporto de Pequim, tive o privilégio de ouvir e ver homens djosonjok matulões, gozando uns com os outros e também com o único jogador negro da equipa. 
No aeroporto, à chegada, dúzias de meninas djosonjok cercaram os jogadores enquanto eles caminhavam para levantar as malas, desencorajando-me de lhes pedir um autógrafo no meu exemplar da colectânea de poesia de Yun Dong Ju.

No meu dormitório, enviei fotografias da casa-museu de Yun à minha mãe.
Respondeu-me, pouco depois: “Muito bem.”
Sorri, ao experimentar o prazer infantil de receber a aprovação da minha mãe. 
Mas, afinal de contas, se há uma verdade contida na poesia de Yun, é que nós - adultos - conservamos mais pensamentos, sonhos e comportamentos de criança do que julgamos.

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