sexta-feira, 23 de novembro de 2018

A DESPROPORÇÃO DA DÍVIDA GLOBAL E O SEU SIGNIFICADO

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   Transportando notas durante a hiperinflação, na República de Weimar (Alemanha 1923)

Ao longo de décadas os economistas do mundo inteiro foram «formados» (eu diria deformados ou endoutrinados) nas teorias keynesianas e neo-keynesianas. Segundo estas, a possibilidade de um governo, através do banco central, emitir moeda deveria estar totalmente desvinculada de um padrão-ouro, pois só assim poderia acudir, estimulando a economia, quando esta entrasse numa crise recessiva. A impressão monetária (a inflação) seria um estímulo para o consumo, para o investimento, havendo, no final uma reabsorção da dívida, em virtude da estimulação da actividade económica e consequente maior captação pelos impostos.
Esta tem sido, em resumo, a «doutrina» (eu diria antes a fé) dos keynesianos. Simplesmente, tal não passa de um voto piedoso, de uma ténue máscara, que tem permitido a maior transferência de riqueza dos pobres e remediados em direcção aos ricos, de que há memória. 
Com efeito, as pessoas foram estimuladas a endividar-se para lá de todas as possibilidades de sustentação, a nível de finanças pessoais e familiares. 
Pior ainda, os Estados fizeram o mesmo. Digo pior, porque uma pessoa ainda tem a capacidade de resistir à tentação do «crédito fácil» e de manter um orçamento pessoal equilibrado. Mas o cidadão comum não tem poder em relação ao Estado, o qual foi capturado pelas máfias dos partidos e dos grupos de interesses que gravitam em torno do poder, a começar pelos grandes empórios bancários e grandes empresas, que vão buscar ao Estado benesses principescas.   
O que acontece então é que a dívida pública cresce também inexoravelmente, o que implica um acréscimo de impostos para o futuro, para daqui a 20, 30 ou mais anos, para as futuras gerações ainda não nascidas, mas que estarão logo condenadas a pagar as larguezas dos que comandam os Estados no momento actual. 
Os políticos querem manter-se no poder, portanto tentam, a todo o custo, «mostrar obra», satisfazer o máximo de grupos de interesses, que têm os políticos na mão: as campanhas eleitorais são financiadas essencialmente por eles. 

Quase ninguém sabe qual o aumento anual global da dívida(*): 8 triliões de dólares
Um número astronómico. 
Torna-se difícil a qualquer um compreender o significado disso. Para comparação, atente-se no valor em dólares do ouro e da prata extraídos durante o ano de 2018 ao nível mundial: 151 biliões de dólares. Se meus cálculos estão correctos, este último valor não chega a ser 1,9% do aumento anual da dívida.
Não há dúvida de que a dívida irá rebentar, de uma forma ou de outra. Mas os políticos não querem ficar desmascarados. As consequências disso seriam revoltas populares e não seriam, para eles, propriamente agradáveis! 
Portanto, o mais provável é que seja provocada a inflação. Ela irá cilindrar as poupanças, as pensões e os salários, mas as dívidas serão beneficiadas, pois aquilo que é devido nominalmente, já não tem senão uma fracção do valor inicial. 
É muito difícil fazer com que a inflação se mantenha dentro de valores «razoáveis», muito depressa a dinâmica de desconfiança na moeda atinge um grau tal, que se assiste à subida até à hiperinflação. Nesta etapa, o valor da moeda está completamente destruído.
 É a este perigo a que as «elites» políticas e financeiras do mundo estão sujeitando a humanidade. Eles serão tentados a desencadear a guerra para encobrir o seu monstruoso roubo das massas trabalhadoras dos seus respectivos países. Já têm feito preparativos, usando vários cenários, como sabemos: Síria, Ucrânia, Mar do Sul da China...e outros.

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(*) https://www.zerohedge.com/news/2018-11-22/global-debt-increase-2018-vs-gold-investment-must-see-charts
Citação do artigo:
[...] Thus, the total value of all gold and silver mined in 2018 is a measly $151 billion compared to the increase in global debt 1H 2018 of $8 trillion.  What most investors fail to realize is that the massive $247 trillion of debt is propping up the assets in the market.  So, when the debt implodes, so will the assets.  On the other hand, gold and silver will still hold their value and likely increase significantly during the next market crash.[...]

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O MOVIMENTO DOS COLETES AMARELOS EM FRANÇA



Tenho estado a acompanhar as diversas peripécias deste movimento, que se auto-organizou e levou a cabo uma série de bloqueios desde sábado passado (dia 17) e que irá continuar num novo momento alto no próximo sábado 24.
O que reclama este movimento? Ele está a exigir maior justiça fiscal visto que os franceses das classes laboriosas, sofrem um punção fiscal excessiva. A faísca que fez desencadear o movimento foi a criação da taxa carbono, que irá penalizar os que se deslocam em carros movidos a diesel. Mas na realidade, este movimento exprime o desespero da classe média, que não vê qualquer melhoramento substancial do seu dia-a-dia e compreende que o governo de Macron, com lindas palavras e algumas medidas insignificantes, quer reforçar a exploração das classes laboriosas, sobretudo através de taxas, que se tornam mais facilmente dissimuláveis no meio dos aumentos causados pela inflação.

Note-se o impacto que esta contestação está a ter durante toda a semana, em França, e o pouco que é noticiado e comentado nos media portugueses. 
Uma onda deste género, aqui, era bem possível, pois as tácticas dos governos da UE são realmente semelhantes, taxas e mais taxas sobre o gasóleo, sobre a electricidade, a água, os produtos alimentares, etc. 
Estas taxas têm uma incidência muito maior proporcionalmente nos agregados familiares modestos. Uma taxa sobre o gasóleo é igual para ricos e pobres, mas como para os pobres o gasóleo é  uma percentagem importante do total dos seus gastos, ela é fundamentalmente injusta. 

PIERRE HANTAI - ENTREVISTA E CONCERTO EM LISBOA




Ver aqui o programa do recital de P. Hantai, no dia 24 de Novembro, na Fundação Gulbenkian, Lisboa: 

https://gulbenkian.pt/musica/evento/pierre-hantai/

Peças de Antonio de Cabezón; Pedro de Araújo; Juan Bautista Cabanilles; Carlos Seixas; Domenico Scarlatti 

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

NÓS, OS PEQUENOS DEUSES (Nº4)

[ver artigos anteriores nº1, nº2, nº3]

Embora eu use, por vezes, um vocabulário comum em autores marxistas, não o sou, pois não considero existir uma direccionalidade, um sentido da História. Para a minha forma de pensar, bem mais úteis do que as categorias teóricas marxistas, são a teoria do caos, a termodinâmica dos sistemas abertos e a antropologia, aplicadas nas análises das sociedades contemporâneas.

Com efeito, não existe imutabilidade do humano. Não existe uma «natureza humana» imutável. Por mais que se diga, a natureza do Homem de Cro-Magnon, embora totalmente «moderno» na sua anatomia, não é a mesma que o homem dos períodos históricos. Atrevo-me mesmo a dizer que o homem de depois da revolução informática não é exatamente o mesmo que o homem das épocas anteriores.

No entanto, existem constantes antropológicas, existem aspetos psíquicos que se traduzem em comportamentos visíveis (ou retraçáveis pelos arqueólogos) cujo fundamento profundo tem a ver com nossa pertença ao grupo dos primatas antropoides. 

O estudo das espécies símias é de grande valor para compreensão da espécie humana. Com efeito, observamos nestes animais comportamentos originados por forças internas cuja manifestação nos humanos é semelhante, apenas com uma sofisticação maior. Nomeadamente, os seus comportamentos em sociedade, revelam o seu parentesco com a nossa espécie. Aqui, não se trata de projeção antropomórfica, de interpretação subjetiva que os cientistas façam de comportamentos não-humanos.

O entorno material e social, do animal e do homem, são decisivos na construção do sentido de todos os seus gestos, de todas as reações e comportamentos. Assim, o organismo, como totalidade, vai ter uma resposta, dentro do contexto em que está imerso. Esta resposta, que define o comportamento social, tem um valor de sobrevivência. Ao contrário de que alguns possam pensar, a importância em termos de sobrevivência do comportamento, acentua-se com a artificialidade do meio, do entorno imediato do indivíduo.

Ao criar «cultura», uma redoma artificial que o separa dos perigos e carências, que são o desafio quotidiano do animal selvagem, o homem cria também um ambiente completamente novo, ao qual terá que se adaptar. A seleção social torna-se muito exatamente o substituto da seleção natural: Na seleção natural, as forças às quais o ser vivo se confronta, são primariamente originadas «externamente», pela natureza físico-química e pelos outros seres vivos. Na seleção social, o entorno é moldado por uma teia de relações sociais, tão densa e sofisticada, quanto a complexidade dessa mesma sociedade.

Nesta perspetiva, o meio em que evoluiu o ser humano condiciona-o de uma maneira indelével. A ficção de se transportar imaginariamente para os nossos dias, um bebé de há cinquenta ou cem mil anos atrás e de imaginar que, integrado numa família, na sociedade contemporânea, ele evoluiria e se tornaria indistinguível de outras crianças da sua idade, é justamente …. uma ficção.

Conhecem-se vários casos de pessoas provenientes de culturas de caçadores-recolectores forçadamente, transportadas para a «civilização» (fenómeno que ocorreu muitas vezes na expansão dos europeus no século XVI e seguintes). Eles foram exibidos como se fossem uma espécie diferente, como animais de zoo. As pessoas contemporâneas ficam chocadas com a crueldade dos «civilizados» no século XIX, que assim trataram homens e mulheres, caçadores-recolectores, os Bosquímanes da África austral, aborígenes australianos, etc…
Porém, a um nível mais profundo, devemos ter a noção de que, embora se trate da mesma espécie humana, esta tem uma grande adaptabilidade coletiva a um certo viver, a um certo entorno natural e social.
Os índios do Amazonas, que nunca estiveram em contacto com «civilizados», ou outros grupos de caçadores-recolectores, têm maior capacidade de se auto- sustentar, de sobreviver e de prosperar, em contextos onde um grupo «civilizado», atirado de paraquedas, ficaria dizimado e extinto pela fome, pelas doenças, pelos ataques de animais selvagens…
Para qualquer espécie, a capacidade de adaptação tem limites, pois qualquer espécie foi «ensinada» pela evolução a interpretar o ambiente (os sinais vindos do exterior) de determinada maneira, a dar determinadas respostas perante certos desafios, etc. Portanto, a capacidade do ser humano evoluir num ambiente cada vez mais artificial e sofisticado, também foi sujeita a seleção ao longo de muitos séculos. Os humanos com maior flexibilidade e adaptabilidade ao meio social complexo, foram os mais bem-sucedidos ao longo de milhares de gerações e isso condicionou a história da humanidade, desde os seus alvores.
O que se tem tendência a esquecer é que, numa evolução adaptativa, enquanto certos traços se reforçam, outros se atenuam ao ponto de desaparecer. Como espécie essencialmente social, não interessa tanto analisar as performances individuais dos humanos, mas sim os seus desempenhos em contexto social, de grupo, em comunidade. O ser humano contemporâneo, mergulhado na sociedade que lhe é própria, pode ser muito eficaz, brilhante mesmo, desenvolvendo os seus talentos e relacionando-se com sucesso, ao nível social. Mas, o mesmo é completamente incompetente – como uma criança – se for mergulhado, repentinamente e sem preparação prévia, noutra sociedade, por exemplo, num meio rural, já para não falar da sociedade de caçadores-recolectores.
A minha hipótese é de que se deve aplicar a teoria da evolução e seus conceitos associados, à análise das sociedades contemporâneas. Não o faço no sentido reducionista e simplificador, como o fizeram várias ideologias que se serviram do darwinismo, aliás deformando completamente o pensamento original de Darwin. Coloco, porém, a hipótese complementar de que a evolução cultural se tenha tornado o motor principal da evolução da espécie humana, embora não anulando, nem atenuando, a evolução biofísica, bioquímica, anatómica, fisiológica… mas, sendo os componentes culturais que agora determinam todos os restantes, incluindo os «orgânicos».
Por exemplo, a seleção natural será inflexível em relação a organismos portadores de mutações debilitantes. Muitos não chegarão à idade adulta, praticamente nenhum se reproduzirá… assim, não haverá propagação de genes defeituosos nessas populações.
O contrário passa-se nas populações de hoje: o aumento da incidência de doenças genéticas, como a hemofilia, o diabetes, etc., etc., é perfeitamente detetável. Se, por um lado, podemos considerar que é um bem haver maneira de se tratar e manter em vida pessoas com doenças que – na ausência de medicina sofisticada – estariam condenadas a morrer cedo, por outro, devemos interrogar-nos como fazer em termos coletivos. 
Constata-se que, hoje em dia, é aceite nas sociedades mais afluentes, um eugenismo e não apenas no sentido de eliminar traços genéticos claramente negativos, debilitantes, mas também no sentido de obter uma descendência que corresponda a uma imagem idealizada, projetada pelos pais. Este eugenismo pode facilmente evoluir para as formas mais abjetas de comportamentos racistas e de exclusão dos «fracos», «inadaptados», etc. Tal deriva não está dependente, nem das técnicas de manipulação da vida, nem de legislações restritivas, relativas a como usar (ou não) essas mesmas técnicas. Sabemos que, no regime nazi, as condições técnicas de manipulação dos humanos eram muito menores que hoje e, no entanto, foram aplicados, de modo generalizado, os princípios racistas de seleção na espécie humana. 
O principal obstáculo será sempre de ordem moral, de consciência dos humanos: Por outras palavras, de auto- limitação na aplicação de um saber técnico, cujo resultado possa originar piores problemas, do que aqueles que pretenda remediar.

Contrariamente ao período de há cerca de 75 mil anos atrás, em que houve quase extinção da espécie humana, num período de arrefecimento e de escassez de alimentos, como resultado da explosão de um super- vulcão, a ameaça de extinção agora é devida à multiplicação desordenada dos humanos e simultânea escassez de recursos alimentares, causada por uma atitude depredatória em relação aos solos, aos oceanos, aos ecossistemas, que são a sustentação da vida de todas as espécies e da vida humana, em particular, neste planeta.
Um tal processo pode arrastar-se durante milénios, eventualmente, mas a questão fundamental e à qual ninguém consegue cabalmente responder, é a seguinte: Qual o nível mínimo de biodiversidade, que permita o restauro completo dos ecossistemas naturais, após degradação dos mesmos?
- Sabemos que a floresta tropical-equatorial não se consegue auto- regenerar facilmente, quando é muito explorada, quando vastas áreas são desflorestadas para obter madeiras, ou outras matérias-primas. Até mesmo, quando se deixam «ilhas de floresta não depredada», um repovoamento por espécies autóctones não ocorre. A razão disto, tem a ver com mudanças irreversíveis no solo e nos micro- climas, afetando as condições de germinação de plantas nativas e devido também à competição com espécies «oportunistas», que aproveitam as condições criadas pelo desbaste, para se multiplicarem rapidamente e dominarem.
Como cada espécie que se extingue, é uma experiência da evolução biológica que fica irreversivelmente cortada, não poderá haver uma depredação em larga escala, como há agora, sem consequências no longo prazo. 
O empobrecimento dos ecossistemas pode estar na origem de muitas situações, que já trazem consequências graves, atualmente. O sistema é de tal maneira complexo, que não conseguimos equacionar essa complexidade. Efeitos que parecem, à primeira vista, pontuais podem trazer consequências numa escala muito alargada. O clima e os ciclos climáticos podem ser afetados. 
Outras consequências com efeitos catastróficos podem observar-se: o alastramento de doenças epidémicas a novas zonas, onde antes só havia uma presença esporádica.
O que é crítico - no longo prazo - será a reversão para um estado que permita a sustentação do ecossistema planetário, onde o consumo de recursos seja contrabalançado por sua renovação ou reciclagem. 
 Antes da espécie humana se tornar um fator de grande peso no funcionamento dos ecossistemas, estes tinham a capacidade própria de se regenerarem, de reequilibrarem as populações das diversas espécies. Havia momentos com perdas súbitas, por exemplo, por ação de um tufão ou duma erupção vulcânica, mas essas perdas eram rapidamente compensadas. 
A depredação causada pelos humanos é - pelo contrário – de efeitos muito mais duradoiros, em geral.


Não devemos contar com uma consciência planetária global e generalizada, da parte dos humanos, mesmo das elites. Tal não se verificou no passado. Duvido que se venha a manifestar no futuro.
Os cenários futuros possíveis são muitos mas, afinal, resumem-se a dois: 

-A extinção da espécie humana, devido às depredações constantes do ambiente,

-Ou a sobrevivência da nossa espécie, após uma fase de transição, havendo salvaguarda dos equilíbrios ecológicos globais e possibilitando a regeneração de zonas anteriormente depauperadas pela sobre-exploração.

APRESENTAÇÃO DOS CADERNOS SELVAGENS DE DEZEMBRO

No Sábado, 24 de Novembro, a partir das 18H30, na Fábrica de Alternativas (*), será feita a apresentação pública da edição de Dezembro dos Cadernos Selvagens

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Os Cadernos Selvagens é uma publicação da Fábrica de Alternativas com textos de análise, de crítica, reportagens, entrevistas, reflexões e poemas, escritos pelos nossos associados. Os temas são variados e sempre interessantes. 

Às 20 horas teremos, como sempre, um jantar vegetariano seguido de convívio. 
Reservas para o jantar para o email: 

Contamos contigo, contamos com todos

(*) ASSOCIAÇÃO FÁBRICA DE ALTERNATIVAS

      Morada: Rua Margarida Palla 19A – Algés

      Email: fabrica.de.alternativas@gmail.com

terça-feira, 20 de novembro de 2018

NÓS, OS PEQUENOS DEUSES (nº3)

[continuação dos artigos nº1nº2, neste blogue] 

A construção de um consenso é fundamental para fazer funcionar a sociedade capitalista; esta possui muitas articulações da economia com o Estado. 
Seria por demais ingénuo supor que existe o Estado, por um lado, com um certo número de funções eletivas e onde as vontades dos cidadãos - supostamente - se traduzem numa determinada política e, por outro, empresas, o mundo da economia, onde empresários e gestores decidem e os empregados executam. 

Na realidade, a imagem, que as pessoas têm da organização política e económica do país e do mundo, é distorcida. Mas, isso é intencional, é resultante da ocultação e deformação constantes. 
É esta ausência de lucidez da generalidade dos cidadãos, justamente, que cria um consenso mínimo e possibilita esta governação (pseudo) democrática. 
A razão desta estratégia é muito fácil de compreender: As classes dominantes, em todo o mundo, sabem que é mais fácil manter uma fachada de democracia, do que exercer sua ditadura sem máscara. 
Porém, fruto das condições da crise que se generaliza, a narrativa do poder está constantemente a entrar em contradição com a sua prática. Tal constitui sinal claro de que o Estado de «democracia liberal» tem os seus dias contados.

A emergência recente de tendências ditas «populistas», sobretudo na Europa, parece-me um último recurso para reconstruir o tal consenso, fundamental para a conservação do Estado e do sistema capitalista. 
As pessoas estão numa situação de ignorância na prática, sobre os mecanismos da política. Embora seja vista como algo de exterior, apercebem-se dos efeitos graves que ela exerce sobre suas vidas. 
Então, imaginam que haverá alguém que os compreende, que será seu porta-voz e que não estará corrompido: uma parte da população adere, entusiasta, a tais movimentos e personagens, mais do que às ideologias ou programas políticos, na esperança ingénua de que sejam pessoas íntegras, incorruptíveis. Os partidos e líderes populistas ascenderão então ao poder.

Mas, chegará um dia em que estas forças populistas, confrontadas com o exercício do poder, terão de atender às pressões do grande capital e  do «Estado profundo» (corpos não eleitos: funcionários, polícias, militares, tribunais), com capacidade de bloqueio, quando não mesmo, de derrube do governo. 
Sujeitos a esta chantagem, os políticos populistas terão de reagir, de uma ou doutra maneira. Mas, em geral, não adotarão medidas extremas para reprimir violentamente a oposição no interior da máquina estatal. 
Vão preferir compor com elas; isso significa que certas medidas prometidas não serão tomadas, que haverá uma redefinição discreta de objetivos, tentando salvar a face com explicações sobre a conjuntura económica, etc.
Dececionados com o desempenho daqueles que ingenuamente tomaram como seus salvadores, as pessoas não equacionarão o facto de que a crise é sistémica e global, pelo que não haverá um qualquer retorno à «democracia pura» e ao «capitalismo puro» que, aliás, nunca existiram. 

Com o agravamento da crise económica, com o desespero da classe média pauperizada e a rutura completa do contrato social, que permitia manter os economicamente mais fragilizados fora das situações extremas de pobreza, criam-se condições para uma mudança radical. 
Porém, esta mudança pode bem ser em direção a um totalitarismo. Poderá ser um totalitarismo, com características próprias, mas igual - na essência - aos outros totalitarismos, historicamente conhecidos. 

Não apenas é realista este cenário, como está a acontecer diante dos nossos olhos: Basta ver a deriva autoritária de vários regimes, ditos de democracia liberal. Ocorre, não em países periféricos, mas em praticamente todo o chamado «Ocidente» (América do Norte, Europa, Japão, Austrália...). 
Somos testemunhos, em muitos países, de um deslizar para um «fascismo cinzento», ou seja, um autoritarismo sem clara e definida viragem do discurso ideológico, guardando aparências de governo e instituições formais, mas onde o verdadeiro poder está nas mãos da oligarquia que controla tudo: meios de produção,  média subserviente, aparelho de Estado, partidos políticos.

Penso que muitas pessoas estão completamente desprevenidas e, portanto, incapazes de se defenderem.  Para isso contribui a viragem das forças de esquerda, parlamentares ou não-parlamentares, para posições reformistas e de cogestão do capitalismo e do Estado. Nesta deriva, desde os anos oitenta do século passado, elas evoluíram de reivindicações de classe e de lutas com o objetivo explícito da mudança em direção ao socialismo, para reivindicações hedonistas, identitárias e que não colocam sequer a hipótese de mudança geral da sociedade, seja ela pacífica ou não.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

NÓS, OS PEQUENOS DEUSES (Nº2)

No primeiro texto, a minha crítica centrava-se mais numa perspectiva antropológica e ecológica, da insustentabilidade do ecossistema global na idade do antropoceno. 
Hoje, porém, irei centrar mais a minha crítica na lógica própria do modo de produção capitalista. 
Ao fazer esta análise crítica, desejo pôr em evidência que a própria lógica do capitalismo é condutora, inevitavelmente, à anulação de suas condições de funcionamento. 
Com efeito, a lógica do capitalismo é a da acumulação: acumulação de capital, sob suas diversas formas, para ele se reproduzir, originando mais capital. 
É um sistema que precisa de consumir cada vez mais e que não pode prescindir de maximizar o lucro, a cada etapa e por cada ator do processo. 
É esta a lógica intrínseca: os atores que não saibam ou possam assumir esta mesma lógica, acabam - mais cedo ou mais tarde - por ser varridos do jogo, por outros com mais agressividade, mais tenacidade, maior apetência para o lucro, etc.  

A lógica do capital penetrou todos os «poros» da sociedade, não havendo realmente nenhuma classe, nenhum grande sector da sociedade, que esteja disposta a coletivamente reivindicar outra forma de organizar a produção, o consumo e a própria a vida. 
Os trabalhadores reivindicam mais salário ou melhores condições de trabalho, não a abolição da sociedade baseada no trabalho, enquanto forma de exploração.

As disfunções que se observam têm muitas causas próximas, mas existe uma causa fundamental, a meu ver: a ideia generalizada de que a posse, a propriedade, a riqueza material, consiste na forma de se obter felicidade e segurança. 
Isto significa que as pessoas sentem justificação para fazer tudo com vista a obter essa tal riqueza material. 
Além disso, não limitam nunca a sua acumulação de riqueza, tal como o próprio sistema capitalista, que moldou suas mentalidades: «quanto mais, melhor; dinheiro, nunca é demais»... 
A valorização da acumulação é muito típica do capitalismo em todas as suas etapas, não apenas da presente. Sem essa procura constante de acumulação de riqueza e de poder, não haveria impulso inicial para construção das empresas pelos empresários, nem para uma total identificação à lógica da empresa, dos seus quadros médios e superiores. 

O espírito acumulador estende-se a todos os atores, desde os trabalhadores realizando as tarefas mais humildes, até ao topo da hierarquia social e empresarial. Para a generalidade das pessoas, não possuir emprego, ou outro meio de gerar dinheiro, de modo a que possam participar na sociedade de consumo, constitui a maior ameaça, o maior medo. 

Como vimos no artigo anterior, a questão principal que se coloca, é em relação à sustentabilidade ecológica de um tal sistema. Para o «bom» funcionamento do capitalismo é preciso sempre um «crescimento económico», seja lá como for. 
No século XIX, durante a primeira fase da revolução industrial, havia muitos recursos inexplorados, tanto energéticos como outras matérias primas, muitas delas vindas das colónias, possuídas por potências europeias. 
Além disso, não havia escassez de mão-de-obra disponível para ser explorada.
Aquando da segunda etapa, do «Fordismo» e do «Toyotismo», era essencial que os operários tivessem uma participação efetiva no consumo dos produtos da sociedade industrial, pelo que tiveram acesso a confortos e bens materiais, anteriormente reservados apenas aos extratos mais ricos (automóveis, eletrodomésticos, etc).
O capitalismo, presentemente, na sua fase de financeirização extrema (predomínio absoluto dos bancos sobre os outros ramos da atividade económica, subordinação do capitalismo industrial ao capitalismo financeiro), com a diminuição ou a impossibilidade de geração de valor,  recorre a todas as artimanhas para empurrar as pessoas a consumir a crédito, muito para além das suas verdadeiras possibilidades, até à insolvência. 
O mesmo se passa com os Estados, com as finanças públicas, empurradas para uma dívida cada vez maior. 
Mas esta dívida é, no fundo, um imposto diferido, um imposto que será cobrado sobre a sociedade em geral, de uma ou outra forma, no futuro. Este esquema perpetua-se porque os políticos querem manter-se no poder e as pessoas não questionam esse poder, se tiverem mais (ou a ilusão de mais) no imediato.
Portanto, as condições de funcionamento «normal» de uma sociedade e economia capitalistas são insustentáveis em si mesmas, visto que não existem recursos infinitos, nem apetência ou capacidade infinita de os consumir. As contradições vão-se agudizando, em relação à sustentabilidade ecológica, mas também entre classes sociais: Observa-se, nestes últimos 20 anos, a acumulação cada vez maior de riqueza nas mãos duma pequena oligarquia, perante um número cada vez maior de destituídos, de marginalizados do processo de consumo.
A mudança torna-se inevitável; mas tanto pode ser para melhor, como para pior. Não existe determinismo na evolução das sociedades.