Chegámos ao cúmulo da contradição capitalista. A contradição não significa que ele esteja em vésperas de se desmoronar. Com efeito, não é um regime ou um edifício que se poderia simplesmente derrubar ou desmontar, mas antes um modo de produção, algo que penetra em todos os «poros» da sociedade.
Seria um trabalho gigantesco e completamente fora das minhas forças retraçar a história da humanidade desde os seus primórdios, até aos nossos dias. Outros o fizeram e seus grandes frescos tornaram-se obsoletos, em pouco tempo. Aliás, assiste-se hoje à constante renovação de conceitos e noções na História, em particular da História dos povos sem escrita mas, igualmente, em novas abordagens do passado mais recente.
Porém tento, através de um olhar de biólogo, esclarecer alguns aspetos da questão.
O fenómeno antropológico mais notório, na minha perspetiva, é a sobredimensão da intervenção humana nos ecossistemas.
Ela teve efeitos catastróficos já desde muito cedo, nos tempos do Neolítico, em que imensas florestas foram simplesmente queimadas para dar lugar a solos agrícolas. No entanto, a tendência depredadora acentuou-se nos últimos cem ou duzentos anos, por comparação com os dez ou doze mil anos desde o neolítico. Houve uma real transformação em todos os ecossistemas e no ecossistema planetário. O fenómeno atingiu um novo patamar, em que os mecanismos essenciais para a renovação dos equilíbrios naturais deixam de funcionar.
Por outras palavras, assiste-se a uma catástrofe de grandes dimensões e gravidade para a própria existência da humanidade enquanto tal, para a existência de civilização.
Mas, isso deixa indiferentes grandes e pequenos, poderosos e humildes, mesmo que - no fundo - o saibam.
Escudam-se numa atitude fatalista - «é assim, é verdade, mas nada de significativo podemos fazer para inverter a marcha» - ou numa denegação - «haverá sempre saída, uma transformação pela tecnologia, que resolverá esses problemas». Ambas as atitudes mentais fornecem o alibi para as pessoas continuarem a consumir e a sacrificar ao deus do dinheiro a melhor parte das suas vidas.
A existência de uma enorme força entrópica, destruidora, devido à atividade humana, tem sido expulsada para as margens do sistema. O sistema não nos parece entrópico, pois nele estamos banhados e visto que a entropia aumenta, não no nosso entorno imediato, mas nas suas margens. Por margens, aqui, entenda-se os ecossistemas naturais e o seu funcionamento, cada vez mais defeituoso, ao ponto de que certas partes experimentam degradações irreversíveis; extinção de espécies em escala semelhante à de outras grandes extinções geológicas, a contaminação dos oceanos e dos solos com todo o tipo de poluentes, pondo em risco a manutenção da própria vida em geral .
Mas também, o caos/entropia tem sido relegado para uma marginalização dos próprios humanos nas sociedades; a indiferença do chamado «Primeiro Mundo» à crescente pauperização nos «Terceiro e Quarto Mundos». Na própria periferia das sociedades ditas afluentes, reproduz-se esse fenómeno, um número crescente de pessoas que não têm o suficiente para sustentar uma vida digna, cujas vidas foram destroçadas pelo desemprego, a violência social e moral, com o seu cortejo de sequelas, o alcoolismo, as drogas, etc... Estas pessoas são simplesmente «ignoradas», enquanto as restantes continuam nas suas atividades, no seu quotidiano.
No próprio interior dos indivíduos, esconde-se o medo, o medo de ser excluído, de não corresponder ao padrão de exigência que se impõe a todos, através duma norma social não escrita.
Observa-se o crescimento das neuroses e psicoses, além de novas patologias sociais, com a criação e reforço de todo um conjunto de reflexos ou padrões comportamentais:
- A excessiva preocupação com a estética pessoal, a formatação mental completa por imersão em «lixo informativo», em videojogos que mergulham as pessoas em universos ficcionais, uso aditivo e compulsivo de telemóveis, etc. Estas novas patologias, somam-se às mais «tradicionais» frequentemente, num mesmo indivíduo.
Em tal sociedade, o «ecossistema interno» dos indivíduos, à imagem do ecossistema exterior em que estão inseridos, acaba por se tornar disfuncional, em todos os planos: na psique, nos afetos, na mente, na razão, no senso moral, na ética.
A mais vulgar reação, quando as pessoas se apercebem de que «qualquer coisa vai mal» é apelarem para um sistema de explicação mítica global, seja duma religião organizada no sentido tradicional, ou outro sistema de crenças sem explícita referência ao divino, como as ideologias. Assim, libertam-se de parte das suas angústias, mas à custa da perda da sua auto-determinação, da sua capacidade de examinar livre e maduramente as causas dos males que as afligem.
As pessoas, cujas vidas se tornaram horrivelmente solitárias e depressivas, vão procurar satisfação e proteção em grupos «tribais»: por exemplo, os grupos de adeptos dos clubes de futebol (as claques), onde partilham símbolos, mitos, cerimónias religiosas, comportamentos ritualizados, etc.
Mas também se pode verificar os mesmos reflexos noutras tribos urbanas, desde grupos de afinidade partilhando espaços e um modo de vida alternativo, até aos gangs de delinquentes, ou grupos paramilitares neonazis.
Mas também se pode verificar os mesmos reflexos noutras tribos urbanas, desde grupos de afinidade partilhando espaços e um modo de vida alternativo, até aos gangs de delinquentes, ou grupos paramilitares neonazis.
Todas estas pseudorespostas, são afinal tentativas não conscientes de superar simbolicamente o que há de disfuncional em suas vidas, no seu sentir e pensar.
Há uma evidência, que todos os poderes se esforçam por ocultar: São, justamente, as condições dessa violência disseminada por toda a sociedade, que permitem a continuidade e reforço da exploração.
Os fenómenos, individuais ou sociais, acima mencionados, são consequência dessa tal violência social surda, dessa exclusão de um estatuto de cidadania real e da dignidade humana na sua plenitude, em milhões de indivíduos.
O medo é o principal factor «organizador» desta sociedade.
As pessoas encontram-se - sem perceberem porquê, nem como - isoladas, sem vínculos, sem trabalho regular, sem reais hipóteses de melhorar.
A escola tem como função fazer com que a maioria se resigne a essa marginalização, tem como função criar o fracasso, o insucesso. A interiorização do fracasso é condição para a manutenção das desigualdades sociais, para a imposição da exploração.
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