Na sequência da presença do
Cacique Ládio Veron e do Jantar Benefit/Debate realizados na Fábrica de
Alternativas vamos apresentar o filme "Martírio" sobre a luta dos
Indios Guarani Kaiowas pelo seu direito à vida, à sua cultura e às terras onde
sempre viveram e o massacre a que foram sujeitos.
Título: «Martírio» (Original)
Dirigido por: Vincent
Carelli
Brasil 2016 / 160 minutos
Documentário Nacional
Martírio” é um documentário imperdível. Imperdível porque é essencial para
compreender um dos mais longos e violentos conflitos de terra do Brasil: o
genocídio contra os Guarani-Kaiowá e Ñandeva no Mato Grosso do Sul.
Realizado pelo documentarista e antropólogo, Vincent Carelli (que também
dirigiu o excelente Corumbiara), o filme exibe cenas de quase 30 anos de
experiência do director com os povos indígenas do Mato Grosso do Sul.
Classificar a situação dessas populações indígenas como genocídio está longe de
ser um exagero. Afinal, como classificar uma situação na qual fazendeiros
organizam milícias armadas que invadem aldeias (tanto faz se é de noite ou
durante o dia) atirando a esmo contra crianças, idosos e mulheres? Ou ainda as
emboscadas de pistoleiros ou atropelamentos propositais contra lideranças
indígenas? E ainda os aviões dos fazendeiros que lançam veneno sobre as casas e
roçados das aldeias, acampamentos e retomadas; os estupros de mulheres e
crianças e uma das maiores taxas de suicídios do mundo. Suicídios que expressam
a calamidade vivida por esse povo. Sem sua terra original, sem poder plantar
seu roçado e manter seu modo de vida, tirar a própria vida tornou-se uma via de
fuga desesperada entre os Kaiowás.
Nos últimos 12 anos foram assassinados mais 400 Kaiowás e Ñandevas no Mato
Grosso do Sul, segundo dados do Conselho Missionário Indigenista (CIMI). É mais
de 30 assassinatos por ano, uma verdadeira Palestina dentro do Brasil. Mas quem
já foi numa aldeia e ouviu os relatos sobre as barbaridades cometidas pelos
fazendeiros e pistoleiros sabe que o número é bem maior. Há um número
incontável de desaparecidos, atropelados e gente morta por envenenamento que
não figuram nas estatísticas.
Quando se está na região meridional do Mato Grosso do Sul, porção do território
originário dos Kaiowás, é preciso ter cuidado com o que fala e com quem fala. O
racismo é brutal. Simpatizantes da causa indígena não são bem-vindos e podem sofrer
retaliações. Também é preciso tomar cuidado quando se percorre as estradas
cruzando imensas plantações de soja em direcção às aldeias e retomadas. Uma
emboscada pode lhe esperar logo ali à frente. Por isso, não é nada estranho
saber que o documentário não está em cartaz em nenhuma sala de cinema do Mato
Grosso do Sul.
Esse medo e tensão estão presentes em “Martírio” que, em suas três horas de
duração, resgata a longa marcha de resistência dos indígenas. Nos séculos XVI e
XVII foram vítimas das temíveis bandeiras paulistas. Depois, no final do século
XIX, suas terras foram tomadas e arrendadas aos grandes produtores de erva
mate. Nessa época, os Kaiowás se tornaram escravos nas grandes plantações,
atados pelo sistema de peonagem ou escravidão por dívida em lojas comerciais.
Na década de 1940 foram definitivamente expulsos de suas terras por meio de
projetos de colonização. Foram, assim, confinados como bichos em oito pequenas
reservas indígenas que juntas não somavam 1% de seu antigo território original.
Veio a “revolução verde” e o “moderno” agronegócio nos anos 1970 que varreu
quaisquer vestígios das imensas florestas que cobriam a região. Hoje, um mar de
soja e cana cobrem aquela terra vermelha. Enquanto isso, o antigo SPI (e depois
Funai), a partir de uma perspectiva eurocêntrica ainda incrustada na sociedade
brasileira, tentam aniquilar a população indígena e incorporá-los à suposta
“civilização”.
Entretanto, nas décadas de 1970 e 1980 veio a resposta indígena com as
retomadas dos seus antigos territórios. Foi nessa época que surge aos olhos do
mundo e do país a luta Kaiowá. Marçal de Souza Tupã-Y foi o seu porta-voz. Em
1980 discursou para o papa João Paulo II e três anos depois foi assassinado com
tiros na boca. Mas os indígenas não se calaram e as retomadas seguiram. Novas
lideranças e mártires surgiram como o cacique Marcos Veron, Genivaldo Vera,
Rolindo Vera, Nísio Gomes, Semião Fernandes Vilhalva e muitos outros que
poderiam encher essa página.
“O que tá pegando a gente é o capitalismo”, explica em guarani uma jovem
liderança indígena em uma das cenas de “Martírio”. A imagem foi captada numa
Aty Guasu (assembleia dos caciques Kaiowás e Ñandeva) em 1988 e demonstra a
total clareza dos indígenas sobre quem são seus inimigos e contra quem se deve lutar.
O documentário também mostra vários minutos dos discursos de políticos
ruralistas no Congresso Nacional. A bancada do agronegócio não se constrange em
destilar ódio, racismo e inventar absurdas mentiras sobre as populações
indígenas, classificados de vagabundos, inimigos do progresso e privilegiados
por viverem de… cestas básicas…
O filme também exibe os famosos leilões de bois realizados por fazendeiros para
arrecadar dinheiro e organizar milícias contra os indígenas. É preciso ter
estômago para ver essas cenas. Talvez seja por isso que o espectador tenha
vontade de pular de alegria quando o documentário exibe a cena em que centenas
de indígenas invadem o plenário da Câmara dos Deputados e literalmente botam os
parlamentares para correr. A cena é de abril de 2016 quando foi realizada uma
marcha nacional indígenas contra a PEC 215 que transfere a demarcação das
terras indígenas para o Congresso.
A covardia e a conivência dos governos petistas também são escancaradas. E não
é só porque Kátia Abreu (ministra da Agricultura do governo Dilma), ao lado de
Ronaldo Caiado, está presente no leilão da morte. Mas porque mostra um governo
de joelhos aos latifundiários quando a ex-ministra da Casa Civil de Dilma, a
senadora Gleisi Hoffmann (PT) promete, em audiência na Comissão de Agricultura
da Câmara, que as demarcações seriam suspensas. Uma cena repulsiva e
humilhante.
Em 2007, a Funai se comprometeu a identificar e demarcar 39 territórios
indígenas. Mas nessa mesma época o agronegócio dá um salto, financiado,
sobretudo, pelo dinheiro público. A emblemática declaração do então presidente
Lula chamando os usineiros de “heróis” foi uma expressão da aliança dos
governos do PT com o agronegócio. O resultado é que nenhum terra Kaiowá foi
regularizada em todo o período dos governos do PT. Certa vez, em conversa com
uma liderança Kaiowá, descobri que Lula sequer se prontificou em receber as
lideranças indígenas. “Lula nos traiu, nos trata como se a gente fosse bicho”,
disse a liderança. “Até o Fernando Henrique nos recebia”, confessou sem
disfarçar sua revolta.
“Escovar a história a contrapelo” é a instrução dada por Walter Benjamin em
suas famosas teses sobre História. O documentário de Vincent Carelli consegue
fazer isso com competência. Dá a voz àqueles que sempre tentaram calar na bala.
Traz à luz o drama dos invisíveis e vulneráveis que continuam a lutar pela sua
Tekoha – palavra guarani que significa lugar da vida. Um documento
imprescindível para entender o Brasil e para se indignar e lutar. Terra,
justiça e demarcação!
https://www.facebook.com/martiriofilme/