A IIIª Guerra Mundial tem sido, desde o início, guerra híbrida e assimétrica, com componentes económicas, de subversão, desestabilização e lavagens ao cérebro, além das operações propriamente militares. Este cenário era bem visível, desde a guerra na Síria para derrubar Assad, ou mesmo, antes disso.
A apresentar mensagens correspondentes à consulta crise ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta crise ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens

domingo, 3 de dezembro de 2023

SE ESTAMOS A VIVER NUMA ÉPOCA EXCECIONAL...

 Se estamos a viver numa época excecional, então devemos cuidadosamente rever todos os conceitos aos quais estávamos mais ligados. Devemos analisá-los criticamente, à luz das realidades emergentes e ver quais os que podem ser resgatados, quais devem ser reformulados e quais os que devem ser «deitados para o caixote de lixo».

Quando reflito sobre isto, a minha mente é imediatamente atraída pela palavra «contenção». Com efeito, as circunstâncias gerais, em cada sociedade e cada vida privada, tornaram-se de tal maneira voláteis, que nós devemos nos interrogar sobre a nossa «grelha de leitura» da realidade. 

Com efeito, os parâmetros que considerámos para avaliar a realidade  social, aqueles sobre os quais nos baseámos no passado, até mesmo no passado mais recente, ou se tornaram obviamente caducos, ou têm de ser reformulados, no todo ou em parte. 

As pessoas que não façam esse exercício, irão sofrer, nas condições de instabilidade e perturbação profunda que agora se estão a revelar. Elas irão  ser arrastadas/induzidas a tomar posições sobre as quais não tinham refletido previamente. 

Assim, em todos os aspetos da vida,  deve-se ser particularmente cuidadoso, não tomar os desejos pela realidade, não pronunciar juízos definitivos, sobre aquilo que parece ser, no momento. 

Dito isto, é verdade que as escolhas que fizermos poderão ser decisivas para nós, pessoalmente e socialmente. O que vi acontecer com muitos, é que tentam «encaixar» as inéditas situações, no molde envelhecido das suas ideologias. Seria este um caso para evocar a parábola bíblica do «vinho novo, em odres velhos».

As novas situações não têm «resposta» em escritos de filósofos, políticos ou economistas, que pensaram e escreveram em contextos totalmente diversos da atualidade. A única coisa de que podemos ter a certeza, é que não existem, em sociologia, economia, ou história, teorias preditivas verdadeiras, genuínas. As que são formuladas, correspondem apenas à visão do Mundo e ao desejo dos seus autores. Ora, esta visão do Mundo, mesmo que fosse muito adequada quando a escreveram, não poderia ter em conta toda a panóplia de descobertas e de ideias que se desenvolveram, entretanto. 

Num período de crise, como dizia corretamente Lenine, há semanas que são tão densas em acontecimentos, que parece que passaram anos. Esses acontecimentos são imprevisíveis no seu desenrolar. Mesmo que sejam previsíveis no seu desencadear. Por exemplo: uma guerra, pode ser previsível, ao se analisar as posições e movimentos das diversas potências. Mas, ninguém pode prever que uma tal guerra futura se desenrole desta ou daquela maneira. Que dure apenas uma semana, ou dez anos. Que dê a vitória inequívoca a um dos lados, ou que se arraste e esgote o lado mais forte. Que o lado mais forte inicialmente, mesmo que vença militarmente, acabe por experimentar o princípio da sua derrocada.

As situações de imprevisibilidade nos mercados são ainda mais patentes. Os que «pilotam» os bancos centrais, munidos de poderosos instrumentos para agir sobre mercados financeiros e a economia geral, não têm o poder que se lhes empresta. São o aprendiz do conto do «Aprendiz -feiticeiro». As economias vivem sujeitas ao caos completo, onde sábias e prudentes decisões são impossíveis de tomar. Os dirigentes efetuam meros «passes de mágica», de tal modo que o vulgo acredita que eles detêm enorme poder. 

A atitude mais inteligente - neste contexto- é de garantir aquilo que nós, pessoalmente, a nossa família, a nossa comunidade, possuímos enquanto meios de preservar a vida. Manter e aumentar a nossa capacidade de aguentar nos tempos mais difíceis das nossas vidas, deveria ser a preocupação primeira.  As «sereias» que apelam para investimentos sumptuários, especulativos, que causam um desequilíbrio, ou que diminuem os ganhos e as hipóteses de ganho, são de rejeitar. Por contraste, as iniciativas para preservação do adquirido e para o aumento da nossa autonomia (exemplos: produção própria de alimentos, geração de energia, etc.) tornam-se vitais, neste contexto. Também importa uma atitude mais racional com a saúde: a boa condição física é ainda mais importante, nas circunstâncias em que colapsam as estruturas e os meios de saúde.

A nossa energia deve estar centrada nos pontos acima, sendo também muito importante não olharmos de forma acrítica para as informações que nos chegam aos ouvidos ou aos olhos. Neste contexto, a informação da mídia é mais enviesada do que nas situações anteriores. Estamos perante ondas sucessivas de condicionamento de massas, primeiro com a histeria do «COVID», depois com a violação sistemática da nossa integridade, a imposição de «vacina», a perseguição da dissidência e a instalação duma censura férrea, além de uma vigilância total. Esta fase antecedeu e preparou as pessoas para aceitarem - perante as guerras da Ucrânia e de Gaza - no meio de campanhas de histeria sucessivas, a transformação do enquadramento legal.  A «legalidade democrática» foi varrida de uma penada, para se reprimir "legalmente"  dissidências e glorificar o bárbaro esmagamento de populações civis, incluindo a ressurreição do conceito, medievo e nazi, de  «culpa coletiva».

Com o medo instilado, pretende-se que as pessoas deixem de pensar, apenas reagindo, apenas seguindo os instintos de gregarismo e de xenofobia. Muitas, adotaram um comportamento de simulação, ou ocultaram a sua posição verdadeira, por medo de serem excluídas, de serem apontadas a dedo. 

O cenário está completamente montado e, aliás, a peça de teatro já começou a desenrolar-se diante dos nossos olhos. Mas, como não compreendemos o enredo desta peça, nem queremos fazer um esforço para o compreender, somos incapazes de protagonismo, de sermos proactivos. 

Se algo de verdadeiro existe nas palavras acima, creio que devemos refletir como agir para modificar este estado de coisas. Para agir maduramente, não devemos ocultar a realidade a nós próprios, nem cair na armadilha da propaganda, de uns ou de outros. Precisamos ser capazes de nos distanciar sem trair as nossas convicções. Não devemos tomar a nossa ilusão, o nosso desejo, pela realidade. Sobretudo, devemos guardar abertura a cada momento; não desenvolver sentimentos de ódio, em relação aos que estejam no polo diametralmente oposto. Sermos adultos, propriamente, quer dizer que somos capazes de analisar e não descartar outros pontos de vista, que nos pareçam - à primeira vista - errados, ou equivocados; por vezes, nós é que estávamos equivocados e os outros  tinham - afinal - razão. 

De nenhum modo, uma atitude sectária se justifica, neste contexto: A atitude inteligente é realizar alianças, o mais amplas possíveis, aos vários níveis. 



terça-feira, 28 de novembro de 2023

OS EUNUCOS UNIDOS DA EUROPA* por Laura Ruggeri

                         Imagem: Interior de Harém no Império Otomano


Uma “UE geopolítica” continua a ser pouco mais do que uma fantasia consoladora baseada no seu poder de atracção – a fila para entrar.



“Se um país olha para a Europa, então a Europa deveria abrir bem as suas portas. O alargamento sempre foi o instrumento geopolítico mais forte da União Europeia.»

Embora Metsola tenha simplesmente reformulado as declarações feitas pela chefe da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, e pelo presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, a sua escolha de palavras oferece uma excelente visão sobre os fundamentos ideológicos do expansionismo da UE.

Metsola funde a Europa e a União Europeia, mas isto não é simplesmente um lapso de língua, Bruxelas tem uma longa tradição de assumir que a UE é igual à Europa e que os países situados fora das suas fronteiras não são verdadeiramente europeus, caso contrário não estariam "procurando Europa'. Tornar-se europeu é tornar-se “civilizado”, uma vez que fora do “jardim da Europa” as pessoas vivem numa “selva”, pelo menos de acordo com o chefe dos negócios estrangeiros da UE, Josep Borrell. A UE, considerada a personificação de valores superiores, tem o dever moral de abrir as suas portas e admitir aqueles infelizes países que estão actualmente excluídos deste jardim de delícias e, ao fazê-lo, resgatá-los de algum perigo não especificado. Basicamente, uma variação do tema colonial do salvador branco. Depois Metsola apresenta o argumento decisivo em apoio ao alargamento: bem, claro, é uma ferramenta geopolítica para tornar a UE mais forte.

Se o alargamento tornaria o bloco mais forte, como afirmam os seus proponentes, ou, pelo contrário, aceleraria a sua implosão, tem dividido opiniões durante duas décadas. Metsola convenientemente esquece-se de mencionar que sem um acordo unânime as negociações de adesão não podem sequer ser iniciadas, mas é claro que os eurocratas não podem permitir que os factos atrapalhem uma boa narrativa.

As metáforas utilizadas por Metsola (a porta) e Borrell (jardim/selva) reforçam a dicotomia espacial dentro/fora que reflete culturalmente a oposição entre valores positivos e negativos, civilização e barbárie. Sem uma esfera externa “caótica”, real ou imaginária, a estrutura interna não pareceria ordenada, na verdade nem apareceria: figura e fundo fundiriam-se num continuum. Postular a existência de uma selva perigosa habitada por bárbaros é essencial para manter a ilusão de ordem e civilidade no seu interior. O problema é que a cada ronda de alargamento a entropia do sistema aumenta. A história tem mostrado que quando a expansão imperial é tentada sem as pré-condições necessárias – forças armadas suficientemente fortes e uma economia capaz de sustentá-la, uma liderança eficaz, uma ideologia que estimula o desejo de império e laços institucionais saudáveis ​​entre o centro e a periferia – o resultado é inevitavelmente exagero, fracasso e derrota. Mas não pergunte aos nossos eunucos sobre impérios, especialmente aquele sobrecarregado a que servem. Acreditam na sua própria propaganda e estão empenhados em “proteger, promover e projetar os valores europeus, defendendo a democracia e os direitos humanos no interesse do bem público comum. Promover a estabilidade e a prosperidade no mundo, protegendo uma ordem mundial baseada em regras, é uma condição prévia básica para a proteção dos valores da União.» Quando se trata de declarações da UE, a paródia é desnecessária, o original atinge o mesmo efeito cômico.

Se uma maior expansão é boa ou má para a UE tornou-se o equivalente moderno da velha discussão bizantina sobre o sexo dos anjos e, embora não tenha sido possível chegar a acordo, o processo ficou em grande parte paralisado após a adesão da maior vaga de novos membros em 2004 e Croácia em 2013. Então porque é que o país esteve no topo da agenda de tantos eurocratas nos últimos dois anos? Principalmente porque os apoiantes da expansão esperavam poder aproveitar a unidade que a UE reuniu face ao conflito na Ucrânia para impulsionar um projecto imperialista por procuração alimentado pelo pensamento mágico de Washington. A pedra angular deste projecto era a captura total da Ucrânia, cujo exército treinado pela NATO deveria ter desferido um golpe decisivo na Rússia. Como sabemos, as coisas não estão a correr exactamente como planeado e essa unidade de objectivos parece agora tão precária como o futuro da Ucrânia.

Durante anos foi prometido à Ucrânia o estatuto de candidato à UE e finalmente recebeu-o em troca de um sacrifício de sangue. Obviamente, não se qualifica para adesão, e não vale a pena morrer pela perspectiva de ficar sentado numa sala de espera lotada com outros candidatos num futuro próximo. Bruxelas tem primeiro de encontrar e depois apresentar uma cenoura mais atraente, numa altura em que as sondagens de opinião mostram que o apoio à Ucrânia está a diminuir.

Depois de defender a “ordem baseada em regras” dos EUA, a UE tem um saco cheio de notas promissórias, uma economia enfraquecida, e o jardim de delícias terrenas de Borrell assemelha-se cada vez mais ao painel escuro do famoso tríptico de Hieronymus Bosch.

Pode-se pensar que discutir o alargamento da UE enquanto o bloco enfrenta grandes crises que o testam até ao limite é o epítome da insanidade. Na verdade, alguns comentadores já traçaram paralelos entre a liderança da UE e Nero a mexer enquanto Roma ardia. Mas supostamente Nero fez outra coisa além de brincar, ele culpou os cristãos pelo incêndio. Oferecer um inimigo interno ou externo é uma tática experimentada e testada para esmagar a dissidência e consolidar o poder. E foi exactamente isso que a ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Annalena Baerbock, tentou numa recente conferência em Berlim dedicada ao alargamento da UE. Ela disse a 17 ministros dos Negócios Estrangeiros da UE e de países candidatos, incluindo o ucraniano Dmytro Kuleba, que a UE deve expandir-se para evitar tornar todos vulneráveis.

“A Moscovo de Putin continuará a tentar dividir de nós não só a Ucrânia, mas também a Moldávia, a Geórgia e os Balcãs Ocidentais. Se estes países puderem ser permanentemente desestabilizados pela Rússia, isso também nos tornará vulneráveis. Não podemos continuar a permitir zonas cinzentas na Europa”. O que aconteceu com as promessas de crescimento económico, investimentos e acesso a um mercado rico? Como todos parecem vazios em 2023, Baerbock invoca o bicho-papão. Acabou-se toda a pretensão de que a UE e a NATO prosseguem estratégias diferentes.

Com a porta da NATO fechada à Ucrânia e Washington a mudar o seu foco para o Médio Oriente e a Ásia-Pacífico, o fardo de apoiar a Ucrânia “para defender a Europa” foi despejado sobre a UE.

Se a pintura da Rússia como uma ameaça tem sido usada há muito tempo pelos EUA para manter viva a NATO, nos anos mais recentes tem sido explorada para unificar a política externa e de defesa dos Estados-membros da UE. Washington promoveu e facilitou uma consolidação vertical do poder na UE, a fim de externalizar para Bruxelas algumas das funções policiais e punitivas que permitem a sua acumulação global de capital e sustentam a sua hegemonia. De acordo com o seu cálculo, lidar com um vassalo colectivo, a UE, seria mais fácil do que gerir vários vassalos europeus em disputa e concorrentes. Esta estratégia reflecte a fraca compreensão que Washington tem da história e da complexidade da Europa e é por isso que é pouco provável que produza os resultados desejados, especialmente porque os interesses europeus foram sacrificados no altar dos americanos. Depois de desviar a riqueza dos países da UE e de restringir a sua margem de manobra, o bolo encolheu e é natural que a corrida para obter uma fatia se intensifique. Saquear e canibalizar os seus aliados não é exactamente uma jogada inteligente, cheira a desespero e é um sinal claro de que os EUA estão sobrecarregados financeira e militarmente.

O declínio económico e industrial nos países da UE parece agora incontrolável. Não poderia ser de outra forma quando você está preso em um relacionamento abusivo e explorador que lhe nega a liberdade de escolher seus amigos e parceiros de negócios. O centro de gravidade económico e geopolítico deslocou-se para Leste, a ordem mundial unipolar que emergiu na década de 1990 está a desfazer-se e uma nova ordem multipolar está a tomar forma diante dos nossos olhos. Em vez de seguir o caminho pragmático da integração eurasiática e de reforçar os laços económicos mutuamente benéficos com a China e a Rússia, a UE embarcou numa missão suicida para os seus curadores em Washington, na tentativa fracassada de enfraquecer a Rússia e conter a China.

Durante anos, a UE foi autorizada a beneficiar do esforço de globalização liderado pelos EUA; desenvolveu relações comerciais e cooperação multilateral com os países vizinhos e o resto do mundo. Os EUA, em vez de aceitarem a emergência de uma nova realidade multipolar, optaram por inverter a globalização e dividir o mundo em dois blocos, enquadrando criativamente a competição como um confronto ideológico entre democracia e autocracia. O proteccionismo comercial aumentou, os investimentos internacionais foram sujeitos a um escrutínio reforçado por razões de segurança nacional, as restrições ao fluxo de dados proliferaram, as sanções tornaram-se a norma.

Depois de terem sido condenados à irrelevância geopolítica, os países europeus são chamados a pagar a factura das ambições imperiais dos EUA e a fornecer assistência militar. Um relatório publicado pela empresa RAND em Novembro reconheceu que a estratégia e postura de defesa dos EUA tornaram-se insolventes e recomendou uma abordagem diferente:

“As tarefas que o governo dos EUA e os seus cidadãos esperam que as suas forças militares e outros elementos do poder nacional realizem a nível internacional excedem em muito os meios disponíveis para realizar essas tarefas.

Os Estados Unidos não podem e não devem, por si próprios, tentar desenvolver os conceitos operacionais, as posturas e as capacidades necessárias para concretizar esta nova abordagem para derrotar a agressão. O imperativo para a participação de aliados e parceiros é mais do que apenas gerar os recursos necessários para uma defesa combinada credível. Dado que a dissuasão envolve mais do que o poder militar bruto, a solidariedade entre as principais nações governadas democraticamente é necessária também nas dimensões diplomática e económica. E uma cooperação e interdependência mais estreitas na área da defesa terão efeitos benéficos noutras áreas, ajudando a facilitar uma acção coordenada para enfrentar desafios comuns.”

Para melhor ajudar a hegemonia moribunda, a UE está a ser instruída a alargar-se e a reformar-se. Na verdade, a reforma é considerada ainda mais urgente do que o alargamento porque os EUA temem que a capacidade da UE para levar a cabo a tarefa prescrita possa ser prejudicada por um punhado de países que exercem o seu poder de veto. No centro da conversa está a regra da unanimidade da UE, o que significa que todos os países devem chegar a acordo antes que o bloco possa tomar uma decisão sobre questões como a política externa, a assistência à Ucrânia ou as regras fiscais.

Não é por acaso que os argumentos mais ruidosos a favor da expansão da UE e do voto maioritário em vez da unanimidade estejam a ser ouvidos nos círculos atlantistas. Washington precisa de reforçar o controlo sobre as políticas externas e de segurança da Europa e é por isso que intensificou a pressão sobre a França e a Alemanha, bem como sobre outros Estados europeus que resistem à perspectiva de a Ucrânia, a Moldávia e os Estados dos Balcãs Ocidentais aderirem ao clube no futuro.

A captura da Europa

No tipo de UE com que Paris e Berlim sonharam há 30 anos, os países bálticos e da Europa de Leste forneceriam terras e mão-de-obra baratas, e novos mercados inexplorados para as suas empresas – o Lebensraum ideal para europeus ocidentais ambiciosos e empreendedores. Este cenário neocolonial seria auxiliado pelo imperialismo cultural e facilitado pela proximidade geográfica.

Mas na euforia pós-Guerra Fria, o conjunto franco-alemão não prestou atenção ao Convidado de Pedra: a expansão da NATO prosseguia a um ritmo muito mais rápido do que o alargamento da UE. Apesar da dissolução da União Soviética e do Pacto de Varsóvia, a OTAN não tinha sido dissolvida, pelo menos a sua missão de “manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães abaixo” tinha recebido um novo ímpeto depois da OTAN acolher estados cujos novos as elites políticas foram preparadas exatamente para essa missão.

Os americanos não só dariam as ordens mais alto do que antes, como também poderiam contar com mais aliados para fazer exactamente isso. À medida que novos Estados-Membros aderiram à UE, o seu sentimento anti-Rússia também começou a desempenhar um papel desproporcional na definição das relações da UE com a Rússia. Na verdade, a russofobia foi activamente cultivada nos estados pós-soviéticos para sustentar identidades nacionais frágeis e, em alguns casos, totalmente artificiais, e para dar legitimidade a novos governantes.

Para unir novos e antigos membros e atrair mais candidatos, a UE transformou os problemas políticos em problemas tecnocráticos, baseou-se em procedimentos legais e alocou ou retirou recursos financeiros para impor a sua “visão”, tornou-se um actor idealista e um “professor global”. dos princípios neoliberais, dos “valores” ocidentais e dos padrões da UE. Para esconder a sua natureza antidemocrática e legitimar um aparelho burocrático invasivo completamente desvinculado da sociedade em geral, a UE transformou-se numa gigantesca máquina de relações públicas que drenou recursos para projectar autoridade moral e manter as aparências.

Na falta de legitimidade democrática, a UE teve de investir recursos consideráveis ​​na criação de um simulacro de democracia. Na falta de um demos, teve que inventá-lo através de uma “missão civilizadora” que foi empreendida com zelo missionário. Para criar as novas “demos europeias”, as identidades nacionais, culturais e religiosas tiveram de ser primeiro diluídas (ou infladas artificialmente quando desempenhavam uma função anti-russa), um passo de cada vez, começando no jardim de infância, e depois substituídas por alguns consensuados ersatz, fornecidos por organizações como o WEF e Open Society Foundation - o caminho da engenharia social para a civilização!

Deve-se ter em mente que a UE não é um actor geopolítico independente, nem uma “potência geopolítica”, independentemente do que Borrell ou Von der Leyen proclamem. A UE foi criada para drenar o poder dos Estados-membros, corroer a sua soberania, para que nunca se tornem um desafio aos interesses e ao poder dos EUA. Como resultado, a UE não é maior do que a soma das suas partes, é o equivalente geopolítico de um buraco negro. A sua arquitectura institucional, uma intrincada rede de locais de discussão, é tão surpreendente e entorpecente que Henry Kissinger, quando era Secretário de Estado dos EUA, pronunciou a famosa frase: “Para quem devo ligar se quiser ligar para a Europa?”

Nem uma organização internacional nem um Estado-nação, a UE pode ser descrita como uma política supranacional artificial. Isto assume a forma de numerosas redes mutuamente penetrantes de interconexões sociais, económicas, políticas e ideológicas que incluem, em diferentes níveis e fases, mecanismos supranacionais, governos nacionais, administrações regionais, empresas multinacionais e grupos de interesse cujo alcance é internacional.

Por isso, quando falamos sobre a UE, devemos lembrar-nos de que esta é gerida como um clube privado para um grupo de empresas transatlânticas e elites financeiras. Os seus lobbies e grupos de reflexão controlam o conhecimento e a informação que moldam a opinião pública e sobre os quais as figuras de proa actuam – os líderes da UE são invariavelmente políticos falhados e mediocridades cujas carreiras políticas foram facilitadas pelos mesmos lobbies que os possuem e ditam a sua agenda.

À medida que estas elites transatlânticas se envolvem numa luta global para manter e aumentar o seu poder, apreender e controlar recursos, desde dados digitais até recursos naturais, formam cartéis quando os seus interesses coincidem, ou competem pela influência política quando os seus interesses divergem. As “guerras culturais” que tornaram o debate racional virtualmente impossível no Ocidente são muitas vezes alimentadas por estas elites, uma vez que dispõem dos meios para mobilizar recursos políticos – pessoas, votos e partidos – em torno de certas posições sobre questões culturais.

O processo de integração europeia é um projecto imperialista tanto no sentido da relação da UE com o resto da cadeia imperialista, mas também dentro da UE nas relações desiguais entre os diferentes países.

Os sinais de uma crise profunda de integração europeia multiplicaram-se, sendo o Brexit o exemplo mais óbvio, mas não o único. A crescente crise de legitimidade também é exemplificada na reacção dos eleitores nos países da UE. Contrariamente às acusações de “populismo” e “nacionalismo” dirigidas a qualquer pessoa que seja crítica da integração europeia, o que emerge é antes a ansiedade causada pelo sentimento de falta de controlo das pessoas sobre as suas próprias vidas, pela descrença relativamente ao quadro institucional e político antidemocrático da UE.

Dado que os padrões de vida continuam a cair e as promessas de prosperidade e bem-estar social no jardim europeu não são em grande parte cumpridas, a insatisfação e a dissidência estão a aumentar, e não apenas entre as pessoas comuns. Algumas elites nacionais também se tornaram mais inquietas porque são penalizadas pela hostilidade da UE contra a Rússia e, cada vez mais, contra a China. O potencial de crescimento económico da UE foi esgotado e a maioria dos membros do bloco sofre de deficiência orçamental crónica e de dívida estatal excessiva.

Mas uma vez que os EUA precisam de toda a ajuda para sustentar a sua hegemonia em rápido declínio, a UE redobrou o seu papel de aplicador das regras dos EUA, entrelaçando a NATO e a UE numa arquitectura de controlo e propaganda - a guerra híbrida foi desencadeada contra a população europeia sob o pretexto de a defender da desinformação russa. Num tal contexto, mais recursos estão a ser desviados para o orçamento da defesa e segurança e para representantes dos EUA, como a Ucrânia. Não importa como se interprete a questão, é óbvio que apenas um punhado de empresas bem relacionadas beneficia de um aumento nas despesas militares e em I&D dos Estados-membros.

A emergência da Covid-19 ofereceu aos EUA a oportunidade perfeita para verificar se todos os seus patos europeus estavam enfileirados. Pela primeira vez na sua história, a UE adoptou uma estratégia de aquisição conjunta de vacinas: a aquisição conjunta de vacinas não só testou a coesão, a coordenação, a capacidade de «agir rapidamente» e mobilizar recursos financeiros, mas também constituiu um precedente que mais tarde facilitou a aquisição conjunta de armas para a Ucrânia e a imposição de sanções à Rússia. A exclusão das vacinas russas e chinesas mostrou que se podia confiar na UE para obedecer às ordens, mesmo que estas entrassem em conflito com os seus interesses económicos – as vacinas mRNA dos EUA eram mais caras do que a alternativa e dependiam de uma tecnologia cuja segurança não tinha sido comprovada. Os meios de comunicação social e os debates políticos da UE utilizaram a linguagem da guerra, referindo-se a uma “guerra” contra a Covid-19, o vírus foi “combatido”, os médicos e paramédicos foram descritos como “soldados da linha da frente”.

Uma metáfora cognitiva da guerra ajudou a estruturar a percepção da realidade. O estado de exceção foi normalizado, levando à suspensão dos direitos constitucionais. A pandemia ofereceu o pretexto para levar a cabo a operação psicológica de maior alcance alguma vez tentada em tempos de paz: qualquer manifestação pública de dissidência ou incumprimento de regras absurdas foi duramente reprimida, os meios de comunicação social e as redes sociais foram transformadas em armas para fazer lavagem cerebral e censurar o público, a capacidade do novo exército de «verificadores de factos» da UE foi reforçada e o âmbito da vigilância digital foi alargado.

Os confinamentos levaram a enormes perdas económicas (e ganhos para um punhado de empresas tecnológicas e farmacêuticas, na sua maioria americanas), mas também a uma mudança de paradigma nas políticas fiscais, monetárias e de investimento da UE, nomeadamente através da adaptação dos auxílios estatais para permitir que os Estados-Membros apoiassem suas economias através de uma intervenção mais direta. Sinalizou uma ruptura com a política de austeridade adoptada após a crise financeira de 2008. À medida que os Estados se tornaram mais endividados, tiveram de ceder ainda mais soberania à UE: As estratégias e objectivos de desenvolvimento dos Estados-membros tiveram de se alinhar com as prioridades definidas pela UE e beneficiando principalmente os EUA. A armadilha da dívida foi apresentada como um plano de recuperação com nomes sonantes como Next Generation EU (NGEU) — 360 mil milhões de euros em empréstimos e 390 mil milhões de euros em subvenções.

Como se costuma dizer, nunca deixe uma crise ser desperdiçada. Uma emergência cria um sentido de urgência e a necessidade de agir rapidamente, o que reduz seriamente a capacidade de pensar cuidadosamente. Esta abordagem abriu caminho à aceitação de perdas ainda maiores mais tarde, quando a UE impôs sanções à Rússia, que se transformaram num bumerangue. Qualquer hesitação em desistir do gás russo foi prontamente anulada pelo seu “parceiro” americano, através da sabotagem dos gasodutos Nord Stream.

Os eurocratas que adoram ser amados, especialmente a manifestação de amor "paga para jogar", são agora mantidos sob rédeas mais curtas. Estima-se que existam cerca de 30.000 lobistas registados em Bruxelas e que espalham o amor há décadas. Mas, em tempos mais recentes, apenas os lobistas aprovados pelos EUA tiveram rédea solta. Parece que as detenções que se seguiram ao Qatargate foram um aviso aos eurocratas: aceitar subornos de certos actores estrangeiros como o Qatar, já não será tolerado. Os interesses transatlânticos devem estar sempre em primeiro lugar.

Alargamento da UE – cui prodest?

Embora a expansão tenha sido consagrada em documentos oficiais da UE como um imperativo geoestratégico, a UE enfrenta agora desafios muito maiores do que nos anos pós-Guerra Fria. No início dos anos 90, os líderes europeus discutiram se deveriam alargar a união, absorvendo os países do bloco oriental, ou aprofundar a sua integração. Tentaram ambas as coisas e o resultado é uma confusão insustentável de acordo com todos os indicadores socioeconómicos, mesmo antes de se ter em conta o custo alucinante do apoio à Ucrânia, a perda de recursos energéticos acessíveis da Rússia e as sanções bumerangue.

Os grupos de reflexão, os eurocratas e os meios de comunicação social intensificaram recentemente os seus esforços para transformar exemplos passados ​​de alargamento da UE como um sucesso e o alargamento futuro como uma oportunidade, mas fora das suas câmaras de eco, o cepticismo está a crescer e a fadiga do alargamento instalou-se.

Se o alargamento está a ser discutido, é porque falar é fácil. Pergunte à Macedónia do Norte, um país ao qual foi concedido o estatuto de candidato em 2005 e que ainda está na lista de espera. Os pedidos da Ucrânia e da Moldávia foram aceites às pressas em 2022 para lhes apresentar uma cenoura, sabendo perfeitamente que nenhum dos países cumpre os critérios para aderir à União. Além disso, ainda é melhor para a UE mantê-los sob controle, nunca selando o acordo. Nove países receberam formalmente a mesma promessa e não é possível acelerar a adesão da Ucrânia e da Moldávia, sem causar ressentimento.

Mas como Washington teme que os “países política e economicamente vulneráveis” percam a paciência com a UE e encontrem parceiros mais atraentes para apoiar o seu desenvolvimento, nomeadamente a China e a Rússia, a UE tem de continuar a fazer promessas e, o que é mais importante, financiar as elites políticas dos países vizinhospara reforçar o seu poder e a sua clientela. Os EUA também contam com a UE para financiar os esforços de guerra da Ucrânia e a reconstrução do que restará deste país falido quando o conflito militar terminar. Deixemos que os contribuintes europeus paguem a conta: o apoio da UE ao regime de Kiev atingiu agora 85 mil milhões de euros e Von der Leyen prometeu que mais virão. Um montante adicional de 50 mil milhões de euros para o “Mecanismo para a Ucrânia” foi proposto pela Comissão Europeia para os anos de 2024 a 2027. Em 2022, o Parlamento Europeu aprovou 150 milhões de euros para apoiar o governo fantoche da Moldávia.

Como a UE não pode expandir-se sem implodir, a França e a Alemanha convidaram 12 especialistas para formar um grupo de trabalho sobre as reformas institucionais da UE. Apresentaram um conjunto de propostas para uma construção a múltiplas velocidades que permitiria a alguns Estados-membros uma integração mais profunda em determinadas áreas e evitaria que outros os impedissem. O relatório propõe eliminar os requisitos de votação unânime, mesmo que a eliminação dos vetos implique a aceitação de diferentes níveis de compromisso. Prevê quatro níveis de adesão, estando os dois últimos fora da UE. Estes “círculos concêntricos” incluiriam um círculo interno cujos membros poderiam ter laços ainda mais estreitos do que aqueles que unem a UE existente; a própria UE; adesão associada (apenas mercado interno); e o nível mais flexível e menos exigente da nova Comunidade Política Europeia.

A principal “vantagem” para o Ocidente Coletivo é que todos os países desta “Europa” ficarão isolados da Rússia e da Bielorrússia, mas não está claro quais são as vantagens para os países da camada externa, uma vez que terão acesso limitado ou nenhum acesso ao Mercado Único, mas espera-se que abdiquem de parte da sua própria soberania nacional em favor de Bruxelas, perdendo autonomia e espaço de manobra num mundo multipolar.

Em Outubro passado, a Comunidade Política Europeia – um espaço de discussão que inclui líderes de países da UE, candidatos à UE, Suíça, Noruega, Reino Unido e até Arménia e Azerbaijão – reuniu-se em Granada para discutir um potencial alargamento do bloco. A reunião deveria reforçar a determinação, mas em vez disso aprofundou as reservas daqueles que nunca aceitaram a ideia de alargar a UE à custa dos actuais membros. Alguns membros já fizeram as contas e perceberam que, se o proposto alargamento da UE avançar, terão de pagar mais e receber menos do orçamento da UE: Os beneficiários líquidos tornar-se-ão contribuintes líquidos. Compreensivelmente, eles não estão muito entusiasmados com a perspectiva.

Embora o aumento da integração UE-NATO e a expansão para leste tenham criado novos lobbies poderosos e uma nova classe de eurocratas ultra-atlantistas, os estados membros da UE perderam qualquer aparência de autonomia estratégica e, portanto, qualquer oportunidade de proteger ou promover os seus interesses económicos e geopolíticos. Inicialmente, foi a classe trabalhadora dos países da Europa Meridional e Ocidental que suportou o peso da expansão da UE; depois, também a classe média começou a sentir o aperto. Actualmente, o PIB per capita da Itália caiu para o nível do Mississippi, o Estado mais pobre dos EUA; A da França é um pouco melhor, fica algures entre Idaho  e Arkansas, enquanto a Alemanha, o motor da economia europeia, se equipara ao de Oklahoma. Não é exatamente uma história de sucesso .

Embora os cépticos da UE se tenham tornado mais numerosos e expressivos nestes países, a sua influência política é limitada. Os seus adversários representam os interesses de uma nova elite política e económica que emergiu através da co-constituição material e simbólica do aparelho administrativo e burocrático da UE. Esta elite, através da repartição e desembolso de fundos, pode induzir o cumprimento ou recompensar a lealdade dos políticos. Ao controlar os cordões à bolsa, pode agir como rei em qualquer país da UE.

Escusado será dizer que esta elite partilha o habitus e a ideologia neoliberal das elites transnacionais mais à vontade em Londres e Nova Iorque, do que em Bruxelas. Seria ingénuo esperar que defendesse os interesses europeus. Na verdade, isso não acontece. Os países da zona euro, que há 15 anos tinham um PIB de pouco mais de treze biliões de euros, hoje aumentaram-no em dois miseráveis ​​biliões, enquanto os EUA quase duplicaram o seu PIB (de 13,8 para 26,9 biliões de euros), apesar da sua população ser menor. Segundo o Financial Times, em termos de dólares, a economia da União Europeia representa hoje 65% da economia dos Estados Unidos . Este valor é inferior aos 91% registados em 2013. O PIB per capita americano é mais do dobro do europeu e a disparidade continua a aumentar. Trabalho brilhante!

Se os líderes da UE são rotineiramente ignorados em favor dos líderes nacionais nas negociações internacionais, é porque a UE se enquadra na definição de tigre de papel. A unidade demonstrada face à guerra por procuração na Ucrânia não poderá ser sustentada por muito tempo e os seus principais arquitectos americanos e europeus deixarão de estar em funções dentro de um ano. A configuração política da Europa milita contra uma política externa e de defesa pró-activa. Assim, quando Borrell elogia a necessidade da Europa passar de um poder brando para um poder duro, ele convenientemente esquece que a UE não é um actor estatal. Tem alguns dos atributos de um Estado — personalidade jurídica, algumas competências exclusivas, um serviço diplomático e alguns países da UE têm uma moeda comum — mas, em última análise, é um híbrido e, como tal, não está equipado para jogar o “grande jogo”, como era designada no século XIX, a política de poder. E, francamente, não estará equipado para o fazer durante muitos anos. Uma “UE geopolítica” continua a ser pouco mais do que uma fantasia consoladora baseada no seu poder de atracção – a fila para entrar.

Laura Ruggeri, Nascida em Milão, mudou-se para Hong Kong em 1997. Antiga académica, nos últimos anos tem investigado revoluções coloridas e guerras híbridas.


sexta-feira, 17 de novembro de 2023

4 FRAGILIDADES DO IMPÉRIO [parte I]

O poderio imperial americano, que se afirmou a partir da implosão da URSS e do sistema socialista mundial, como poder unipolar dispensador de benesses aos seus aliados/vassalos e guerreando os que considera inimigos, reais ou potenciais, assentou sobre quatro pilares, que são:
1/ sistema monetário
2/ recursos energéticos
3/ poderio militar
4/ média corporativa ou de massas


----------------------------------

PARTE I.



SISTEMA MONETÁRIO

O sistema monetário internacional ainda está baseado no dólar enquanto moeda de reserva e enquanto divisa mais frequente nas transações internacionais (financeiras e comerciais).
Porém, com a ascensão dos BRICS, aumenta a capacidade deste grupo (em breve, com 11 membros) com seus aliados, de comerciar entre si e fazerem acordos de longo prazo (nomeadamente energéticos) usando suas respetivas moedas nacionais, não recorrendo ao dólar.
Afirmei, há algum tempo, que o fim do petrodólar assinalaria o fim do Império americano. Verifico que a minha previsão se está a cumprir.
Quando Nixon (em 15 de Agosto de 19171) decretou unilateralmente o fim da convertibilidade dos dólares em ouro, de facto, traiu o acordo de Bretton Woods. Neste, a conversão dólar/ouro era central. Como resultado dessa medida, a instabilidade apoderou-se dos mercados financeiros, arriscando a quebra do sistema capitalista mundial.
Em 1973, o Rei da Arábia Saudita e Henry Kissinger acordaram um pacto, segundo o qual todo o petróleo comprado a este país seria pago em dólares, exclusivamente. Em contrapartida, os EUA garantiam a segurança do Reino Saudita com fornecimento de armamento, espionagem-informações, diplomacia e intervenção direta, se necessário. Nessa altura, a Arábia Saudita era o principal produtor mundial de petróleo e a OPEP, o cartel petrolífero que os sauditas dominavam. Rapidamente todos os países exportadores de petróleo, grande parte, monarquias do Golfo Pérsico, alinharam-se com a Arábia Saudita, apenas aceitando dólares em pagamento do seu petróleo.
Como ficaram com um excedente enorme de petrodólares em resultado das exportações para todo o mundo, acumularam «Treasuries», ou seja, obrigações do Tesouro americano, financiando assim a dívida dos Estados Unidos. Todos os países que comprassem petróleo tinham de possuir dólares em reserva, ou comprá-los no mercado internacional de divisas.
A partir deste ponto, os EUA passaram a ter défices crónicos, quer no orçamento de Estado, quer nas transações internacionais. Os «défices gémeos», tiveram como consequência que o governo dos EUA podia, sem arriscar um colapso, atribuir somas colossais às despesas militares e às guerras em que estava envolvido, assim como aos programas sociais nos EUA, como meio de neutralizar a agitação social.
Qualquer outro país que levasse a cabo tal política económica e financeira, entraria depressa em insolvência, ou seja, na bancarrota. Mas, os EUA possuíam a moeda de reserva mundial e podiam imprimir todos os dólares que precisavam, sem qualquer correspondência em aumento de produtividade. Depois, esses dólares serviam para pagar as matérias-primas e os produtos industriais importados;  eram absorvidos no mercado mundial. Todos os países, amigos ou hostis, tinham que ter reservas em dólares e comerciar em dólares. De uma forma direta ou indireta, estavam a nutrir o sistema do petrodólar.
O declínio do valor do dólar não é muito visível, superficialmente. Isto, deve-se ao facto de que os mercados de divisas e financeiros preferem adquirir dólares, como «moeda-refúgio», quando o sistema está em crise. Assim, as outras divisas vão descer e os dólares vão subir, na corrida para adquirir dólares e ativos denominados em dólares.
Porém, nos últimos tempos, as quantidades de dólares produzidas têm excedido tudo o que anteriormente tinha sido feito. O resultado, é que a capacidade aquisitiva do dólar (e das outras divisas) diminui  aceleradamente. Isto traduz-se por níveis muito mais elevados de inflação, em relação aos cerca de 2% de inflação, nas duas primeiras décadas do século XXI.
A partir de 2020, houve uma aceleração do «quantitative easing», ou seja, da produção de dólares sem contrapartida na economia real. Por outro lado, intensificou-se a utilização de moedas nacionais em detrimento do dólar, sobretudo, nas trocas e nos acordos de longo prazo entre países dos BRICS.
Nos EUA, a inflação vai ser cada vez maior e isto vai afetar a economia. Está já a acontecer, apesar da FED ter revertido o programa de impressão monetária e faça «quantitative tightening», ou seja,  sobe as taxas de juros, o que aumenta o custo do crédito.
Como os EUA já não possuem produção industrial própria, que lhes permita satisfazer as necessidades internas e atingir o equilíbrio nas contas externas, o único instrumento de que a FED dispõe é irrisório e, mesmo, contraproducente: Aumentar ou reduzir o dinheiro em circulação não vai realmente aumentar ou reduzir o consumo e, muito menos, a produção interna de bens.
Os bens materiais - matérias primas, produtos industriais, alimentos - vão continuar a ser importados do resto do Mundo para os EUA, mas com preços mais elevados, agravando a inflação e arrastando a subida acentuada dos juros, como já se está verificando. As «elites», no Departamento do Tesouro ou na FED, que manipulam as taxas de juro, são incapazes de mudar esta realidade.



RECURSOS ENERGÉTICOS


Nas últimas duas décadas, os EUA começaram a produzir, em grande quantidade, petróleo e gás de xisto, através de fracking. Assim, o seu aprovisionamento em petróleo «convencional», sobretudo, o do Texas que estava já em declínio, foi complementado pelo aumento notável do petróleo produzido «de forma não-convencional». O nível de produção total de petróleo nos EUA acabou por ser semelhante, ou até um pouco maior, ao da Arábia Saudita. Mas isto tem custos muito pesados no ambiente e compromete o futuro. O tempo de vida produtiva dum furo, em zona de xisto, ronda os dois anos. Assim, têm de constantemente fazer novos furos, para manterem o nível de produção. Muitas áreas ficarão totalmente estéreis depois de esgotadas as reservas de petróleo e gás de xisto. A obtenção de petróleo a partir de areias betuminosas, em Alberta (Canadá) e o seu transporte por pipeline para os EUA, também não será solução duradoura e respeitadora do ambiente.
Quanto ao sector das energias renováveis, nota-se que existe muito atraso técnico nos EUA em relação a estas tecnologias. Talvez a única exceção seja a indústria dos automóveis movidos a eletricidade, «EV». Mesmo neste caso, parece que a China está a tomar a dianteira; há indicações disso, tais como as  fábricas e a importância dos investimentos da Tesla na China. Por outro lado, há marcas de automóveis «EV» chinesas nos mercados asiáticos, e que podem conquistar fatias de mercados da Europa e dos EUA.
A rede elétrica nos EUA está decadente e os investimentos em infraestruturas tardam. As empresas privadas de energia elétrica ficam á espera que o Estado ponha a rede em condições, para elas depois operarem com menos custos. Muitas vezes são noticiados «apagões» (falhas gerais de energia elétrica), em cidades e regiões dos EUA. São devidos ao estado vetusto dos sistemas transportadores de energia elétrica e à sobrecarga destes. Não vejo que haja vontade política para solucionar o problema. Nos EUA, há um défice enorme de intervenção estatal, para satisfazer as necessidades coletivas.
Uma fragilidade de que se fala muito pouco, é do enriquecimento de urânio para as centrais nucleares americanas; este enriquecimento faz-se ... na Rússia! Não se compreende como é que eles irão operar as suas centrais nucleares se a Rússia, em retorsão dos roubos (de ouro, de contas bancárias...) e sanções brutais a que tem sido sujeita, decidir parar o fornecimento do urânio enriquecido.
Um outro sintoma claro da fragilidade dos EUA no setor energético é o facto de quererem retomar o «business as usual» com a Venezuela de Maduro. Isto, depois de terem feito tudo para o derrubar. Apesar da elevada produção global e de serem exportadores, os EUA têm défice  de petróleos «pesados» (do tipo dos petróleos venezuelanos), enquanto têm excedentes de petróleos «leves», resultantes da exploração do xisto.
O aprovisionamento da frota dos EUA no Mediterrâneo em apoio a Israel, neste momento experimenta dificuldades logísticas, de que se fala pouco. Os porta-aviões e os vários navios da marinha de guerra têm de ser abastecidos em  combustível nos portos de Itália do mar Adriático, tendo de fazer um constante vai-e-vem entre as costas de Israel e as do Adriático.
Também o roubo do petróleo sírio desde há vários anos, é outro caso sintomático. Os americanos instalaram-se em território sírio, com o pretexto de apoiar guerrilhas curdas que eles enquadram, subsidiam e treinam. O roubo do petróleo sírio foi inicialmente beneficiar pessoalmente o filho de Erdogan, presidente da Turquia. Agora, fala-se menos disso, mas continua a ser contrabandeado e vendido a baixo preço. Além de ir para a guerrilha curda e para Al-Quaeda, o dinheiro obtido com esse contrabando serve para a manutenção de cerca de dois mil soldados americanos estacionados em bases ilegais, na Síria. Há vários antecedentes, em relação ao comportamento predatório do poder imperial dos EUA: Quando ataca uma nação e a ocupa, costuma pôr os recursos petrolíferos a render, para custear as operações de ocupação militar. Veja-se o caso do Iraque, assim como o da Líbia.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

PORTUGAL: O CASO DO LÍTIO

                             Foto:  Raça Bovina Barrosã


A crise política rebentou esta semana, com o pedido de demissão do primeiro-ministro António Costa ao Presidente da República. Para além de envolver suspeitas de corrupção do ex-ministro da energia Galamba, já indiciado como suspeito, envolve também colaboradores diretos de António Costa.  Sabe-se muito pouco da substância, mas sabe-se já que as questões sob inquérito judicial têm relação com licenciamentos de exploração do lítio em Portugal. O caso pode ser grave, em si mesmo e pelas consequências políticas que venha a ter. Não irei aprofundar o assunto nos seus aspetos político e institucional, neste artigo.

que é preocupante, a vários títulos, é que, em Portugal, estejam em risco - por causa da exploração do lítio - o património mundial e de reserva da biosfera e os parques naturais (como o da Serra da Estrela). São áreas de grande relevância para a salvaguarda dos ambientes naturais, ou pouco modificados pelos humanos. 

Isto significa também:

- correm risco várias zonas de proteção de espécies, tanto animais como vegetais, 

- depredação de paisagens protegidas

- destruição de economias sustentáveis, baseadas na agricultura e pecuária de elevada qualidade, 

- riscos reais para a saúde das populações, 

- destruição de comunidades rurais autossuficientes e com produções de qualidade reconhecida e certificada.

Este assunto não é novo, embora tenha passado quase despercebido da opinião pública, apesar dos alertas de organizações ambientais. Como exemplos, cito abaixo alertas da «Quercus»:

Claro, não se pode querer «o bolo inteiro e comê-lo, ao mesmo tempo». A posição da Quercus e doutras organizações ambientalistas é, no mínimo, paradoxal. Durante anos, têm sido favoráveis à conversão do parque automóvel em carros «EV».
Na verdade, a «solução» dos carros movidos a bateria de lítio é um caso típico de depredação ambiental, sob pretexto de «progresso», em termos do ambiente e de recursos «renováveis», conforme se pode ver, pelo seguinte:

Os automóveis movidos com bateria de lítio têm de ter as suas baterias periodicamente recarregadas. Ora, a eletricidade para as recarregar vem de centrais elétricas, alimentadas ...
- a energia nuclear, com os riscos inerentes de acidentes ou sabotagens de consequências dramáticas
- ou a combustíveis fósseis, em geral, carvão de fraca qualidade, emitindo fumos contaminantes, não apenas CO2, em quantidades avultadas.
- as centrais hidroelétricas ou outras, têm peso diminuto no fornecimento de energia elétrica, na maior parte dos países. A utilização de energia eólica e solar, até agora, tem servido como mero auxiliar no fornecimento de energia à rede, a qual continua a ser alimentada, sobretudo, por energia elétrica gerada a partir de combustível fóssil ou nuclear.

O processamento e reciclagem do lítio das baterias gastas, deveria ser incorporado nos custos. Os fabricantes de carros EV e baterias de lítio, deveriam encarregar-se dos processos de reciclagem. Mas, no mundo capitalista, as empresas automóveis e outras, veriam a rentabilidade deste negócio dos automóveis EV cair. Por outro lado, os decisores políticos querem mostrar que fazem algo pelo ambiente. Têm facilitado ao máximo a instalação de infraestruturas para carros EV com baterias de lítio, porque isso lhes rende votos (e talvez algo mais!): É o sagrado princípio da «privatização dos lucros e sociabilização dos prejuízos». Quem seja ecologista a sério (ou, simplesmente, tenha bom-senso) não pode tolerar que, dentro de algum tempo, o ambiente esteja contaminado com montões de baterias lítio usadas, abandonadas no meio da natureza!

A questão de fundo, prende-se com o modo de vida: Com a prioridade dada ao transporte individual sobre o transporte em comum. Relaciona-se diretamente com uma escolha política de fundo: Deixar ao abandono o interior, incluindo aglomerações que poderiam ser polos do desenvolvimento regional e local, porque é mais fácil dar «rédea larga» a empreendimentos de luxo, ou destinados às classes altas e médias, nas zonas costeiras de «grande turismo» e em zonas ditas de prestígio, em duas ou três grandes cidades do país.

A transformação numa sociedade menos agressiva para o ambiente e para os humanos tem de ser feita fora do paradigma do capitalismo, o qual é sempre depredador e onde sempre os interesses individuais (dos muito ricos e poderosos) prevalecem sobre os interesses e necessidades do maior número.

Além das considerações gerais acima, no nosso país, a ausência total de gestão planificada do espaço nacional e a ausência de visão a longo prazo, são as caraterísticas mais salientes da classe política e de grande parte dos tecnocratas. As orientações, vindas de Bruxelas ou doutros centros de poder, são traduzidas, cozinhadas e condimentadas ao gosto da burguesia parasitária, em que consiste a maior parte desta classe, em Portugal.
Ao contrário de certas épocas históricas passadas (ex.: meados do século XIX), não há hoje em Portugal uma verdadeira política de desenvolvimento industrial. O país tem sido orientado para o turismo, vocacionado para satisfazer - principalmente -  as classes médias e superiores europeias.

COREIA DO SUL: Do milagre económico ao pesadelo demográfico


 Este documentário da CGTN está muito bem feito; porém, não aborda as causas profundas desta situação dramática. A descida vertiginosa da taxa de natalidade tem de ser vista de modo realmente holístico. Ela não é a causa dos problemas: É o epifenómeno de algo muito mais profundo e complexo.
Vejamos, em particular, a questão do urbanismo: 
Na Coreia, em todo o lado, mesmo em pequenas-médias cidades, perfilam-se arranha-céus ou prédios muito altos com mais de vinte pisos, cada piso tendo um número elevado de apartamentos. O que foi visto nos anos 70 como um progresso, hoje é um grande problema urbano, é um modelo  caduco. 
Mas, como o preço dos terrenos urbanos é muito elevado, devido a especulação contínua, há constantes operações de destruição-construção. Os prédios com mais de vinte anos são abatidos e substituídos por prédios novos. Estes, provavelmente, têm maior capacidade para «enlatar» as pessoas. Os apartamentos novos, dimensionados para pessoas sós, devem estar agora em maioria. 
Toda esta construção frenética é muito cara e devoradora de energia, além de apenas perpetuar o isolamento das pessoas, impedindo ou dificultando a vivência em comunidade. 
Isto, numa sociedade que foi tradicionalmente coletivista. É uma operação ideológica, mascarar o coletivismo natural destas sociedades e atribuir-lhes a etiqueta de «confucionistas». Os valores que promovem o coletivo sobre o indivíduo tinham que ser abatidos e difamados. Só assim, o modelo liberal-capitalista conseguiu reinar de modo absoluto, nos anos do «milagre» sul-coreano. 
Agora, o urbanismo com possibilidade de futuro, é o de cidades mais pequenas, com diversidade de serviços e locais de cultura, de lazer, de desporto. Já não são rentáveis nem gerenciáveis, por razões energéticas, as cidades de arranha-céus. 
O preço da energia, seja qual for sua origem - «renovável», «combustíveis fósseis» ou «atómica» - vai crescer em percentagens de dois dígitos. 
Por outro lado, os «países do Sul» estão a reaver sua soberania. Têm subido os preços das suas exportações para patamares mais elevados,  não apenas os preços dos produtos energéticos, como das matérias-primas minerais e dos produtos agrícolas, que a Coreia tem de importar. 

Creio que o modelo de construção que existe em Seul, assim como noutras grandes cidades do Oriente, desde Dubai até Xangai, está condenado pela sua própria falta de viabilidade energética e, portanto, económica. 
Mas, nas grandes urbes da América e da Europa ocorre - essencialmente - o mesmo fenómeno: O centro das grandes cidades foi inicialmente habitado pelos privilegiados. Depois, foi transformado em centro de serviços, com escritórios e áreas de negócios (bancos, firmas de investimento, bolsas, sedes das grandes multinacionais...). 
Finalmente, com a crise - desde 2008, início  da crise terminal do capitalismo - observa-se a degradação acelerada dos centros das grandes cidades e a migração para uma periferia, cada vez mais distante, dos trabalhadores de serviços e  das «classes médias». 
O efeito é de desertificação, não apenas dos seus habitantes efetivos, como dos serviços do dia-a-dia. Hoje, as grandes cidades do mundo tornaram-se desertos humanos, no seu centro de negócios. Apenas existem nas horas laborais. Fora dessas horas, as suas avenidas desertas são locais pouco seguros.
     
Este modelo urbano teria de ser modificado em profundidade, para resolver as questões humanas e sociais, decorrentes da acumulação de disfunções da sociedade do consumo frenético, do reino da mercadoria acima do humano. 
O mesmo se passa em muitas outras sociedades, inclusive nas que não são classificadas como capitalistas típicas. A razão disto, tem a ver com uma certa imagem de progresso, que impregnou o imaginário dos povos nos últimos 80 anos. 
Este modelo começou a entrar em crise há, pelo menos, 40 anos.  Em vão, os governos e as classes dominantes têm tentado fazer reformas que sustentem a rentabilidade do capital. 
Eles não têm a noção de que o capitalismo entrou na idade senil e que já não é reformável. 

terça-feira, 7 de novembro de 2023

POR DETRÁS DA DEMISSÃO DO PRIMEIRO-MINISTRO ANTÓNIO COSTA

Nos meandros da política portuguesa anda muito pó varrido para debaixo do tapete. Os escândalos políticos são, quase todos, resultado de abuso de indivíduos colocados em altas posições do aparelho de Estado e que servem lóbis, em vez de servirem o interesse do País e do seu povo.

A crise politica que agora rebentou tem relação com a exploração do lítio em Portugal e com o «hidrogénio verde».

Não vou comentar o extenso artigo-inquérito (abaixo) sobre as terras de Barroso e a mineração de lítio, a cargo de uma empresa mineira britânica, senão para referir que - em geral -  os processos de licenciamento e os «estudos de impacto ambiental» em Portugal, são frequente ocasião de corrupção. Um indício disso, é que são, numa grande proporção no sentido desejado pelo governo e pelo grande capital. O caso do lítio, não apenas em Terras de Barroso, é exemplo triste desta realidade.

https://setentaequatro.pt/entrevista/francisco-venes-mina-de-litio-em-covas-do-barroso-vai-escancarar-portas-para-mineracao

Citação: «Este, em particular, também começou mal. Existe muita vontade do governo de que este projeto vá para a frente. Todo o processo demonstrou que o estudo deveria resultar num parecer positivo, independentemente do que qualquer avaliação dissesse. Há uns três anos, dizia que este processo acabaria com um "parecer favorável condicionado". É o que temos hoje. É uma decisão estritamente política.»


Abaixo, o artigo do Jornal Observador menciona o inquérito judicial que impende sobre dois colaboradores do primeiro-ministro, António Costa. As questões sob inquérito estariam  relacionadas com «lítio» e com «hidrogénio verde». Foi neste contexto, que António Costa foi chamado a fazer declarações na Procuradoria Geral da República (PGR). Foi este o motivo concreto, segundo a sua própria declaração, pelo qual apresentou o pedido de demissão ao Presidente da República (PR).

Porém, eu pessoalmente não posso acreditar que Costa não tenha tido conhecimento do facto de que seus dois colaboradores estavam sob inquérito da polícia judiciária. É estranho que António Costa não os tenha (pelo menos) suspendido, durante o decurso do inquérito policial. 

Costuma-se dizer que «a mulher de César, não só deve ser virtuosa, como deve parecê-lo». António Costa, ao não agir de forma legítima, para um primeiro-ministro, em defesa do cargo e do governo, face a dois colaboradores sobre os quais impende inquérito judicial mostra, no mínimo, despreocupação pela sua imagem e do governo de Portugal. 

Não se pode deixar de pensar que, se não os suspendeu, foi porque queria manter a coisa o mais discreta possível. Só que o processo exigiu que o primeiro-ministro viesse prestar declarações na Procuradoria Geral. Essa convocatória não era, ao contrário do que disse no comunicado lido em público após apresentar a demissão ao PR, nem uma «suspeição», nem um «atentado ao bom nome». Com efeito, ele não foi indiciado, não foi sequer submetido oficialmente a inquérito no processo. Como primeiro-ministro, ele tinha toda a obrigação de colaborar no inquérito da Polícia Judiciária aos seus colaboradores. 

Temo que a atitude dele seja um golpe publicitário, para dar a impressão de ser vítima de perseguição política. Na verdade, ele não tinha motivo plausível para pedir a demissão. 

Creio que a única postura lógica, para alguém que esteja perfeitamente inocente, e que -por isso- não teme, seria responder às questões colocadas na PGR. 

Ao pedir a demissão de forma extemporânea, reagindo de forma extremada àquilo que não é - em si mesmo - ofensivo, nem sequer suspeitoso, ele está a usar um truque político, no melhor dos casos; no pior, está a tentar ocultar - baralhando as pistas - sua efetiva conivência num esquema de corrupção grave. O futuro o dirá.