Por Nicolas J S Davies
O mundo enfrenta muitas
crises sobrepostas: crises políticas regionais do Caxemira à Venezuela; guerras
brutais que assolam o Afeganistão, a Síria, o Iémene e a Somália; e os perigos
existenciais das armas nucleares, das alterações climáticas e da extinção das
espécies em massa.
Mas por baixo da superfície
de todas essas crises, as sociedades humanas sofrem dum conflito subjacente e não
resolvido sobre quem ou o quê governa o mundo e quem é que deve tomar as
decisões críticas sobre como abordar estes problemas – ou até, se eles serão de
todo abordáveis. A crise subjacente de legitimidade e de autoridade, que torna
tantos dos nossos problemas quase de resolução impossível, é o conflito entre o
imperialismo dos EUA e a legalidade.
Imperialismo, significa que
um governo dominante exerce soberania sobre outros países e povos do mundo,
tomando as decisões críticas sobre como devem ser governados e em que tipo de
sistema económico estes deverão viver.
Por outro lado, o nosso
sistema em vigor, de legalidade internacional, baseado na Carta da
ONU e noutros tratados internacionais, reconhece as nações como
independentes e soberanas, com direito fundamental a governarem-se a si
próprias e a negociarem livremente acordos sobre suas relações políticas e
económicas, umas com as outras. Segundo a lei internacional, os tratados
multilaterais que tenham sido assinados e ratificados por larga maioria de
nações, tornam-se parte estrutural da lei internacional, sendo vinculativa para
todos os países, do mais pequeno ao mais poderoso.
Num artigo recente, “The
Hidden Structure of U.S. Empire,” [A Estrutura Oculta do Império dos
EUA], explorei algumas das maneiras pelas quais os EUA exercem o seu poder
imperial sobre outras nações nominalmente soberanas, independentes, assim como
sobre seus cidadãos. Citei um estudo
etnográfico de Darryl Li sobre suspeitos de exercerem terrorismo na
Bósnia às ordens dos EUA, que revelava um sistema em várias camadas de
soberania, em que as pessoas pelo mundo fora, não apenas são sujeitas à
soberania dos seus países, mas também a uma tentacular soberania
extraterritorial do império dos EUA.
Descrevi como Julian
Assange, encerrado na embaixada do Equador em Londres e a executiva da Huawei,
Meng Wanzhou, detida enquanto mudava de avião no aeroporto de Vancouver, são
vítimas da mesma soberania extraterritorial dos EUA, e tal como
as centenas de «suspeitos de terrorismo» que as forças dos EUA raptaram e que
foram levadas para prisões como de Guantanamo Bay e outras, para uma detenção
indefinida e extralegal.
Embora o trabalho de Darryl
Li seja de grande valor, ao revelar as camadas de soberania realmente
existentes, através das quais os EUA exercem o seu poder imperial, o
imperialismo é muito mais do que um exercício de captura e detenção de pessoas
noutros países. Muitas das crises internacionais actuais são resultantes desse
mesmo sistema de soberania extraterritorial, tentacular, do império dos EUA.
Todas as actuais crises
servem para demonstrar como é que os EUA exercem o seu poder imperial, como é
que isto entra em conflito e sabota a estrutura da lei internacional,
penosamente desenvolvida para a resolução das questões internacionais no mundo
moderno, e como esta crise de legitimidade subjacente nos impede de resolver os
nossos problemas mais graves neste século XXI, portanto, ficando todos nós
em risco.
As Guerras Imperiais dos EUA
Desencadeiam Violência no Longo Prazo e Caos
A Carta da ONU foi redigida
no fim da IIª Guerra Mundial para prevenir a repetição da sangria em massa e do
caos das duas Guerras Mundiais. O arquitecto da Carta da
ONU, o presidente dos EUA Franklin Roosevelt, já tinha morrido, mas os
horrores da guerra global estavam suficientemente frescos nas mentes dos
líderes, para garantir que aceitavam que a paz era a condição essencial nos
assuntos internacionais e o princípio fundador das Nações Unidas.
O desenvolvimento das armas
nucleares mostrou a possibilidade duma guerra mundial futura destruir
completamente a civilização humana e que portanto, nunca deveria ter lugar.
Como disse Albert Einstein numa famosa entrevista, «Não sei como é que a
Terceira Guerra Mundial será combatida, mas posso dizer-lhe o que vão usar na
Quarta: pedras!»
Os líderes mundiais puseram
então as suas assinaturas na Carta das
Nações Unidas, um tratado vinculativo, proibindo a ameaça ou o uso da
força de um qualquer país contra outro qualquer. O Senado dos EUA tinha
aprendido a lição amarga de recusar assinar o tratado da Liga das Nações, após
a Primeira Guerra Mundial, votou pela ratificação da Carta da ONU sem reservas,
por 98 votos contra 2.
Os horrores das guerras da
Coreia e do Vietname foram ocasião de distorção da proibição do uso da força na Carta da
ONU com forças da ONU ou dos EUA, lutando a «defender» novos Estados
neo-coloniais, talhados a partir das ruínas do colonialismo japonês ou francês.
Mas após o fim da Guerra
Fria, os líderes dos EUA e os seus conselheiros sucumbiram àquilo que o
ex-presidente soviético Mikhail Gorbachev refere agora como o “triunfalismo
do Ocidente,” a visão imperial dum mundo «unipolar» dominado, de
facto, pelo único «super poder», os Estados Unidos. O império dos EUA
expandiu-se economicamente, politicamente e militarmente, em direcção à Europa
de Leste e os membros do governo dos EUA acreditavam que podiam finalmente
«conduzir operações militares no Médio Oriente, sem terem de se preocupar com
um desencadear da Terceira Guerra Mundial», como Michael Mandelbaum do Conselho
para as Relações Exteriores declarava
em 1990.
Após uma geração, os povos
do Médio Oriente podiam ser perdoados por pensarem que estão de facto a sofrer
a experiência da Terceira Guerra Mundial, visto que invasões sem fim, campanhas
de bombardeamentos e guerras
por procuração têm reduzido cidades inteiras, vilas e aldeias a ruínas
e matado
milhões de pessoas no Iraque, Afeganistão, Paquistão, Somália,
Líbano, Palestina, Líbia, Síria e Iémene – sem um fim à vista, após 30 anos de
guerra, sempre se espalhando, com toda as suas violências e caos.
Nenhuma das guerras levadas
a cabo pelos EUA após o 11 de Setembro de 2001 foi autorizada pelo Conselho de
Segurança da ONU, tal como a Carta da ONU o exige, o que quer dizer que, ou
violaram a Carta das Nações Unidas, como o Secretário Geral Kofi Annan admitiu
no caso do Iraque, ou violaram os termos explícitos das resoluções do Conselho
de Segurança, como no caso do mandato UNSCR
1973 para um «cessar-fogo imediato», um estrito embargo de armas
e a exclusão duma «força
de ocupação estrangeira sob qualquer forma” na Líbia, em 2011.
Na realidade, embora os
lideres imperialistas dos EUA costumem usar o Conselho de Segurança da ONU
para enfeite dos
seus planos bélicos, arrogam-se o direito de tomar decisões sobre a guerra e a
paz, por si próprios, usando argumentos políticos para justificar guerras que
não têm um fundamento legal real, face à lei internacional.
Os líderes dos EUA mostram o
mesmo desdém pela Constituição dos EUA, que têm para com a Carta e as
resoluções da ONU. Tal como escreveu James Madison a Thomas Jefferson em 1798,
a Constituição dos EUA «com prudente cuidado entregou a questão da guerra ao
corpo legislativo», precisamente para evitar os tais abusos perigosos, quando o
poder de decretar a guerra é exercido pelo ramo executivo do governo.
Mas, passaram-se décadas de
guerra e milhões
de mortes até que o Congresso dos EUA tivesse invocado a Lei dos
Poderes de Guerra durante a guerra do Vietname, para que fizesse uso da sua
autoridade constitucional para parar tais guerras ilegais e inconstitucionais.
O Congresso, até agora, limitou-se à guerra do Iémene, em que a Arábia Saudita
e os Emirados Árabes Unidos (EAU) são os agressores principais e os EUA
desempenham um papel de apoio, embora vital para esta guerra. Com um dos seus
na Casa Branca, a maior parte dos congressistas republicanos continua a resistir,
até mesmo a esta afirmação limitada de autoridade constitucional do Congresso.
Entretanto, uma proposta de
lei, HR 1004, do representante Cicilline, para confirmar que o presidente Trump
não possui autoridade constitucional para ordenar o uso de força militar dos
EUA na Venezuela, tem apenas 52 subscritores (50 democratas e 2 republicanos).
O senador Merkley introduziu uma lei semelhante no Senado, a qual aguarda ainda
o seu primeiro co-signatário.
Os debates políticos que
ocorrem nos EUA sobre a guerra e a paz, ignoram a realidade legal da Carta da
ONU, antecedida pela “Renúncia em Fazer a Guerra Como Instrumento de
Política Nacional” no Pacto de
Kellogg-Briand de 1928 e a proibição
de levar a cabo uma agressão da lei internacional comum, todas elas
proibindo que os EUA ataquem outro pais. Em vez disso, os políticos dos EUA
debatem vantagens e inconvenientes de um ataque dos EUA sobre um dado país,
apenas em termos do interesse dos EUA e na sua forma redutora de pesar os prós e os
contras políticos de uma situação.
Os EUA utiliza a guerra de
informação para diabolizar governos estrangeiros e a
guerra económica para desestabilizar as nações escolhidas, para
gerar crises políticas, económicas e humanitárias que possam servir de pretexto
à guerra, tal como o mundo tem visto, de um país para o outro; agora, como
podemos testemunhar
com a Venezuela.
Isto são claramente acções e
políticas de um poder imperial, não de um país soberano, agindo no respeito
pela lei internacional.
Cortando O Ramo No Qual
Estamos Sentados
Não passa uma semana sem que
novos estudos revelem aspectos antes não mencionados da crise ambiental, que a
espécie humana e o mundo em que vivemos, enfrentam. A totalidade das espécies
de insectos pode ficar extinta
dentro de um século, com a possível excepção das baratas e das moscas
domésticas, desencadeando o caos ecológico pois as plantas ficarão não polinizadas,
as aves e outros seres irão sofrer após o desaparecimento dos insectos o mesmo
destino de extinção em massa. Metade das
populações terrestres de mamíferos, peixes e répteis já desapareceu
nos passados 40 anos.
As alterações climáticas
podem provocar uma subida do nível do mar de seis ou oito pés, neste século –
ou serão
20 ou 30 pés? Ninguém pode saber, ao certo. No momento presente, já é
demasiado tarde para preveni-lo. Um recente
artigo de Dahr Jamail em Truthout, intitulado “Estamos a
Destruir o Nosso Sistema de Sustentação da Vida” é uma boa revisão daquilo que
realmente sabemos.
De um ponto de vista
prático, tecnológico, a transição necessária para energias renováveis das quais
pode depender a nossa sobrevivência, é inteiramente realizável. Então o que
impede o mundo de levar a cabo esta transição crítica?
Os cientistas compreendem os
aspectos básicos do aquecimento global induzido pelos humanos desde os anos
1970. A
Convenção Sobre Alterações Climáticas das Nações Unidas (UNFCCC) foi
negociada em 1992 na Cimeira da Terra de Rio e rapidamente, com cortes maiores
impostos aos países desenvolvidos que são os mais responsáveis pelo problema.
Mas há um país ausente: os Estados Unidos. Somente os EUA, Andorra e o Sudão do
Sul não ratificaram o Protocolo de Quioto, aos quais se juntou o Canadá, que
se retirou deste em 2012.
Muitos países desenvolvidos
reduziram substancialmente as suas emissões de carbono aquando da primeira
etapa do Protocolo de Quioto e a Cimeira
de Copenhaga de 2009 foi planeada para elevar a estrutura legal,
no seguimento de Quioto. A eleição de Barack Obama levou muitos a acreditar que
os Estados Unidos, a nação historicamente responsável por maior quantidade de
emissões de carbono, iria finalmente unir-se ao plano global para resolver este
problema.
Em vez disso, a condição
para a participação dos EUA foi a insistência em objectivos não-vinculativos,
voluntários em vez dum tratado com obrigação de cumprir as metas. Então,
enquanto a União Europeia (UE), a Rússia e o Japão apontaram objectivos de reduções
da ordem de 15-30% sobre seus níveis de emissões em 1990, para 2020 e a China
apontou para uma redução de 40-45% das suas emissões em 2005, os EUA e o Canadá
apenas se comprometeram a reduzir de 17% as suas emissões, em relação aos
níveis de 2005. Isto significa que o objectivo dos EUA era cortar apenas de 4%
suas emissões relativamente ao seu nível de 1990, enquanto quase todos os
países desenvolvidos apontavam para níveis de 15-40%.
O Acordo
Climático de Paris baseava-se no mesmo modelo de objectivos
voluntários, não-obrigatórios, tal como o Acordo de Copenhaga. Com a fase final
do Protocolo de Quioto expirando em 2020, nenhum país terá qualquer obrigação
internacional de reduzir as emissões de carbono. Os países e povos genuinamente
empenhados na transição para formas de energia renovável estão a avançar,
enquanto os outros não estão. A Holanda aprovou uma lei exigindo que as
emissões de carbono sofram uma redução
de 95% dos seus níveis de 1990, em 2050, e decidiu banir a
venda de carros a gasolina e a diesel após 2030. Entretanto, nos
EUA as emissões de carbono apenas desceram de 10% desde que atingiram um
máximo, em 2005 e – mesmo – chegaram a subir
de 3.4% em 2018.
Tal como as leis
internacionais que proíbem a guerra, os EUA recusam ficar obrigados por acordos
internacionais relacionados com as alterações climáticas. Têm usado do seu
poder imperial para dificultar acções internacionais relativas ao clima a cada
passo, para preservar ao máximo do tempo possível, a economia baseada em
combustíveis fósseis. O «fracking» e o petróleo de xisto foram largamente
expandidos no seu território e elevam a produção para níveis
recorde, gerando ainda mais gases de efeito de estufa que os métodos
tradicionais de exploração de petróleo e de gás.
As políticas ambientais
destrutivas, possivelmente suicidas, são racionalizadas pela sua ideologia neoliberal,
que eleva «a magia do mercado» a um quase-religioso artigo de fé, escudando as
políticas e a economia nos EUA de qualquer aspecto da realidade, que colida com
os interesses estreitos das corporações, cada vez mais monopolistas e do 1%, a
classe no poder, representada pelos Trump, Obama, Bush e Clinton.
No corrupto «mercado» da
politica e dos media dos EUA, os críticos do neoliberalismo são
menosprezados como ignorantes e heréticos; os 99%, o tal «povo Americano» tão
aclamado, são tratados como sujeitos inferiores destinados a serem passivamente
conduzidos como rebanho, da TV à câmara de voto, ao Walmart (ou ao Whole
Foods) e – de vez em quando – à guerra. A bolha do mercado de acções
prova que tudo vai bem, enquanto a economia neoliberal destrói o mundo natural
cuja real magia nos sustenta a todos.
O imperialismo EUA é
portador e disseminador do vírus do neoliberalismo aos quatro cantos da Terra,
ao ponto de destruir o mundo natural que nos sustenta a todos: o ar que
respiramos; a água que bebemos; o solo que produz o nosso alimento; o clima que
torna o nosso planeta habitável; e as extraordinárias criaturas como nós que
até agora, têm partilhado e enriquecido o mundo onde vivemos.
Conclusão
Tal como Darryl
Li observou nos casos dos suspeitos de terrorismo que estudou, os EUA
exercem uma soberania imperial, extensa, extraterritorial. Não reconhecem
limites geográficos permanentes à sua soberania imperial. Os únicos limites que
o império dos EUA aceita, contrariado, são os limites práticos que países
fortes conseguem estabelecer, ao defenderem-se contra o peso daquele poder.
Mas os EUA trabalham sem
descanso para continuar a expandir a sua soberania imperial e diminuir a
soberania dos outros, para fazer tombar a balança do poder ainda mais a seu
favor. Eles obrigam cada país, que queira defender qualquer aspecto de sua
soberania ou independência em contradição com os interesses comerciais ou
geo-estratégicos dos EUA, a lutar pela sua soberania a cada passo do seu
caminho.
Isto vai desde as pessoas
que, no Reino Unido resistem às importações vindas dos EUA, de carne com
hormonas e de frangos
clorinados e à privatização
por etapas do seu Serviço Nacional de Saúde, pela indústria de «saúde»
dos EUA, até às lutas do Irão, da Venezuela e da Coreia do Norte para travarem
ameaças específicas de guerra dos EUA, que entram em flagrante violação da
Carta da ONU.
Para onde quer que olhemos
no nosso mundo conturbado, para questões de guerra e paz ou para a crise
ambiental, ou outros perigos que enfrentamos, encontramos sempre presentes
estas duas forças e sistemas: o imperialismo dos EUA e a lei internacional, em
conflito um com o outro, procurando obter o direito e o poder de tomar
decisões, que irão moldar o nosso futuro. Ambos reclamam implícita ou
explicitamente uma universalidade que nega a autoridade do outro, o que os
torna mutuamente incompatíveis e inconciliáveis.
Então aonde isto leva? Aonde
pode possivelmente levar? Um sistema tem de ceder perante o outro, se
quisermos resolver os problemas existenciais que a humanidade enfrenta no
século XXI. O tempo é curto e não restam dúvidas sobre qual o sistema que
oferece possibilidades ao mundo de ter um futuro de paz e sustentável.
Nicolas J S Davies é o autor
de Blood On Our Hands: the American Invasion and Destruction
of Iraq. É um investigador para CODEPINK e um escritor «freelancer»,
cujo trabalho tem sido publicado numa série de órgãos de comunicação
independentes, não corporativos.