Para a história do pós 25 de Abril
É talvez mais difícil do que parece, efetuar um trabalho de reflexão e análise sobre acontecimentos históricos, sociais e políticos, nos quais se participou. Isto é válido, tanto para os que participaram ao nível de atores principais, como para os figurantes: pela simples razão que a sua subjetividade está presente em todas as suas recordações (boas e más), associadas nas suas mentes, aos acontecimentos e à época que pretendem retratar. Por isso, irei abordar o assunto ao nível das generalidades e não me debruçarei explicitamente sobre episódios em que participei, de que fui testemunha ou de que tive conhecimento mais ou menos direto.
Mas estou convicto que ser verdadeiro é honrar devidamente o povo anónimo e as conhecidas figuras, que participaram nesta revolução. Isto tem o significado para mim, de fazer - tanto quanto possível - a correta avaliação das forças em presença, do que estava em jogo, do real, e não ficcionado, desenrolar dos acontecimentos, dos erros cometidos de parte a parte.
Infelizmente, muitos dos que escrevem sobre acontecimentos nos quais estiveram envolvidos, costumam omitir ou distorcer o seu papel pessoal, ou das forças nas quais estavam integrados. Por esse motivo, os seus testemunhos têm de ser vistos sempre criticamente, mesmo se tiverem a nossa simpatia.
Os movimentos revolucionários emancipatórios que se desenrolaram nos vários países e continentes, nas várias épocas que nos é dado estudar através da História, têm - a meu ver - a característica de enormes fracassos: ou porque falharam e resultaram em banhos de sangue, ou porque, aparentemente triunfantes, degeneraram em regimes cuja prática está no polo oposto daquilo que os revolucionários da primeira hora defendiam. A revolução bolchevique foi um fracasso, a revolução maoista, idem. Nestas, como em muitas outras, a edificação do poder decorrente, veio colocar uma chapa suplementar «em nome do povo», sobre as opressões multiseculares que estes povos sofriam.
Portanto, as «revoluções triunfantes» têm sido, quase sempre, triunfantes pela burocracia e sobre os desapossados, os desclassificados. O facto de institucionalizarem um ritual, uma doutrina, uma verdade de Estado sobre os acontecimentos históricos, sobre os seus desenvolvimentos e significados, é uma mordaça suplementar, que colocam a eventuais críticos que possam surgir nas suas fileiras. Estão assim a designá-los – a priori - como contrarrevolucionários, ou como traidores à causa do povo.
Diria que é uma tragédia mais, a adicionar à tragédia concreta destes eventos históricos designados por «revolução», o facto de que nem os protagonistas, nem as gerações seguintes, aprendem algo de substancial com eles. Isso é assim, em grande parte, porque tais acontecimentos foram usados como argumento, como «demonstração», pelas várias correntes, sejam elas revolucionárias, ou antirrevolucionárias. Os relatos históricos nunca são neutros, sabemo-lo bem mas, no caso destes episódios, carregados de significado ideológico, dá-se a sua transformação precoce em narrativas míticas. É quase inevitável que assim seja. Sobretudo, se nos limitarmos às narrativas da história oficial, ou oficiosa. A estas, aplica-se a expressão de que «a história é escrita pelos vencedores». Porém, não chega haver uma «contra-história», produzida, cultivada e difundida em círculos reduzidos, para que a situação possa inverter-se.
Perante esta situação, qual será a atitude possível, tanto do ponto de vista da ética, como duma prática de mudança?
- Os que se assumiram do lado da revolução, deveriam perguntar a si próprios porque falharam. Mas, a sério: Não tentando aliviar culpas, não procurando atenuantes, embora sem fazer disso um exercício de autoflagelação. Isto não é simples de se fazer, mas é possível, no entanto. É um caminho que implica o pôr-se em causa as certezas e preconceitos. Mas, sobretudo, implica aceitar-se que as premissas que levaram os protagonistas a agir de tal ou tal maneira, estavam erradas.
É frequente as pessoas que estiveram envolvidas nos acontecimentos do 25 de Abril e posteriores, reconhecerem que existiu sectarismo. É tempo de se despirem desse sectarismo. Só o podem fazer, se aceitarem que estavam imbuídas de preconceitos: o preconceito do vanguardismo, a convicção da verdade «infalível» e «científica» da teoria marxista-leninista; a ideia de que tudo o que não estivesse de acordo com seus pontos de vista, era «reacionário», «contrarrevolucionário»; a ideia da inevitabilidade e da irreversibilidade do «caminho para o socialismo».
Enfim, existiram tantos erros fundamentais, que o resultado prático foi os «revolucionários» comportarem-se de um modo irrealista, reflexo de um pensamento totalmente alienado. Uma tal situação só podia dar naquilo que deu. Só podia resultar no triunfo das forças moderadas e antirrevolucionárias. Porque o povo, a maioria não arregimentada no ideário marxista, percebia que o estavam a levar para um beco ou para uma catástrofe.
As pessoas realmente revolucionárias devem reconhecer que estiveram erradas. Pois, se não percebem o erro, a sua natureza, sua extensão e gravidade, vão persistir nele. Os intoxicados com a sua própria ideologia são como drogados: Estes julgam estar perfeitamente capazes de dominar, de «controlar» a droga, quando é exatamente o contrário. As pessoas imbuídas de ideologias também se julgam muito sábias, muito capazes de compreender o mundo, graças à ideologia que lhes daria a chave de tudo. Como indica o próprio nome «ideologia», é um sistema de ideias que se sobrepõe ao real. As ideologias são sempre ilusórias; não são a realidade, não são a ciência. São apenas discurso de ideias.
É preciso colocar as coisas no devido pé: A ideologia é uma inversão da realidade. É uma miragem, uma ilusão de ótica, que mantém os indivíduos enganados. É costume pensar-se que as pessoas são impelidas a agir por causa de suas ideias, ou que atuam sob influência de certas ideias. Porém, não são «as ideias que os guiam para a ação», é antes o oposto. O resultado da ação é que exerce um papel significativo, transformativo, nas ideias e sentimentos das pessoas envolvidas em determinados acontecimentos.
A única possibilidade de se teorizar, seja no que for, é sempre a posteriori: Primeiro vem o fenómeno, depois vem a teoria. Os que se dizem marxistas, muitas vezes põem a teoria à frente, a «guiar» a práxis. Eu penso que alguém mergulhado na ciência, se colocará antes na postura inversa, de testar a teoria: perante a práxis e seus resultados, muda-se o que se deve mudar, na teoria.
Os revolucionários, tal como os estrategas militares, que estudam as táticas e estratégias da última guerra, costumam estudar a(s) revolução/ões passada(s). Isto não lhes dá nenhum guião sobre como conduzir-se na revolução seguinte. Mas, ao menos, o seu estudo inteligente poderá impedi-los de cair exatamente nos mesmos erros, ou parecidos. Isto já é alguma coisa.
A crítica e autocrítica não deveria ser vista como exercício para determinar qual ou quais seguem a linha justa ou quais «são oportunistas e revisionistas» (os «inimigos» interiores). Esta paranoia é uma doença crónica que tem servido para esfacelar organizações revolucionárias.
Enfim, um espírito aberto, o mais amplo possível, é necessário. Não se pode ter certezas definitivas nenhumas. Há pessoas que invocam a torto e a direito a «ciência», sem saberem que a ciência nunca prova nada, apenas fornece hipóteses. Estas hipóteses são consideradas válidas como aproximações da realidade, até vir um facto, ou conjunto de factos, que as invalida. Portanto, a modéstia e a humildade deveriam proibir os revolucionários de chamar a suas teses de «científicas» e, muito menos, de «cientificamente provadas».
Eu baseio-me neste princípio, tanto nas ciências naturais, como nas ciências humanas, na história e na sociologia. Se determinado evento correu desta maneira, e não como nós desejávamos ou esperávamos, é porque a análise feita na altura estava equivocada, a um ou outro nível. A modéstia e inteligência consistem em ver os nossos erros, não atirando culpas para a maldade do inimigo, a traição de aliados ou a imaturidade do povo, tudo argumentos que tenho me cansado de ouvir, até em bocas ilustres. Tais falsos argumentos são apenas autoilusão, sacudir água do capote.
O período do «PREC» («Processo Revolucionário em Curso»), foi marcado pelo florescimento da liberdade e pela aprendizagem da política mas, igualmente, por radicalismos e visões marcadamente ideologizadas da sociedade portuguesa. Só quem esteve por dentro do torvelinho nesse período, compreenderá como ele pôde, em breve sucessão, suscitar uma enorme vaga de esperança e uma profunda deceção.
Penso que não sou o primeiro a considerar que o 25 de Abril foi a última revolução leninista na Europa, ou no «Ocidente». É verdade que uma parte dos jovens, fossem eles trabalhadores, estudantes ou soldados, estavam influenciados pela ideologia marxista-leninista, não só veiculada pelo PCP, como por grupos esquerdistas que, também em Portugal, apesar da repressão, se tinham desenvolvido após o Maio de 68. Esta «sacudidela revolucionária», cujo epicentro foi em França, teve repercussão internacional e desencadeou, por sua vez, movimentações em muitos outros países.
A guerra colonial arrastava-se, sem outra perspetiva que a humilhante derrota à vista. Isto era a convicção, não apenas dos «capitães de Abril», como de todas as pessoas que refletiam. Este facto, conjugado com o congelamento das «reformas» de Marcelo Caetano (o sucessor de Salazar), assim como a crise social e industrial, que empurrava cada vez maior número de jovens para a emigração, eram causas de descontentamento e de radicalização específicas da situação portuguesa.
Precisamos de ouvir historiadores sérios, quaisquer que sejam os seus pontos de vista, que se debrucem em profundidade sobre o período entre o 25 de Abril de 74 e o 25 de Novembro de 75 (o «PREC»). Precisamos de confrontar os vários pontos de vista. Devemos ponderar as análises, face a dados objetiváveis, de que possamos dispor.
Não creio que este tão rico momento da História de Portugal esteja suficientemente estudado. Sobretudo, falta debater serenamente, não «a favor ou contra» as correntes políticas intervenientes, mas antes a génese e dinâmica do processo.
É uma lacuna que se deveria colmatar agora, que se aproximam os 50 anos do 25 de Abril de 74 e estando vivos muitos protagonistas dessa época, que podem dar o seu testemunho. Não creio que as jovens gerações, que não viveram esse período, possam compreender o Portugal contemporâneo, se os mantêm na ignorância, disfarçada por alguns clichés, sobre o pós 25 de Abril, sobretudo o período dito revolucionário. Porém, é certamente uma chave necessária para se compreender a evolução da sociedade portuguesa, de 1974 até à atualidade.