quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Resumo fundamentado de um ano de guerra na Ucrânia por Roberto Buffagni


Comentário, de MB:


Enviou-me Grazia Tanta este texto, traduzido do italiano pelo site «Estátua de Sal» . O texto é rico em pormenores e a sua visão de conjunto é realmente estratégica; ou seja, sopesa as consequências para a NATO e para a Rússia, sempre no campo do realismo, sem fazer considerações ideológicas. Ótimo, mas penso que tem uma grave falha, ao não sublinhar o outro fator vital (o primeiro era a expansão da NATO até às fronteiras russas) para a decisão russa: Refiro-me ao genocídio e as constantes ações militares do regime de Kiev sobre as populações civis de Lugansk e Donetsk, ações que causaram cerca de 15 mil mortes civis, nos 8 anos decorridos entre o golpe de Maidan e o início da invasão russa. O governo russo teve que intervir em virtude de uma intensificação dos bombardeios pelos exércitos de Kiev, sobre zonas civis. 
Se eu interpreto corretamente a situação, a intensificação dos bombardeamentos, em paralelo com a concentração de tropas do regime de Kiev, cerca de 75 mil soldados, bem equipados e treinados, perto das repúblicas separatistas do Don era em preparação a uma invasão desta parte do território. 
 Esta questão é fundamental para se compreender a própria estratégia russa nos primeiros meses, visto que estavam decididos a fazer essa intervenção ao abrigo de uma disposição inteiramente legal, segundo a legalidade internacional da ONU, em ir em socorro às populações que estivessem a ser massacradas e em grave perigo de vir a sofrer um ainda maior banho de sangue. Perante a opinião pública russa, os russófonos de Donetsk e Lugansk são tão russos como eles. Os russos do Don apenas se encontravam do lado de lá da fonteira, devido às partições e arranjos feitos em várias épocas,  desde a conquista da Crimeia, no tempo da Imperatriz Catarina da Rússia, continuando por vários Czares , por Lenine e pelo regime soviético até aos anos 1991 e ao  desmantelamento da União Soviética...

Mas, no conjunto, vale a pena ler este texto porque desfaz muitas atoardas e ocultações feitas (em vez de argumentos). A propaganda raivosamente anti-russa quer ver os «maus» de um lado e os «bons» do outro. 
Oxalá que as pessoas percebam que a guerra não é nenhum jogo, que não pode ser vista como tal, mas antes como um drama que envolve milhões de indivíduos, a maior parte deles, totalmente inocentes.

Manuel Banet
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Resumo fundamentado de um ano de guerra na Ucrânia

 

Roberto Buffagni, Observatoriocrisis, 02/02/2023, Trad. Estátua de Sal)


Um ano após o início da guerra, está claro que uma vitória militar ucraniana sobre a Rússia é materialmente impossível, mas a ajuda ocidental à Ucrânia pode prolongar o conflito. Agora, se eu tiver que arriscar um palpite, acho que a Rússia continuará a guerra de desgaste por muito mais tempo...


Neste artigo analiso, com a maior brevidade e clareza, o percurso estratégico e a dinâmica que conduziu à atual quarta fase da guerra na Ucrânia, fase que considero transformadora. Não insiro notas a não ser uma, referente a um grande estudo da RAND Corp., publicado enquanto preparava este texto, no final de janeiro de 2023.

Agradeço sinceramente ao General Marco Bertolini, ao historiador Giacomo Gabellini e Giuseppe Germinario, que tiveram a gentileza de ler este rascunho e me aconselhar. Claro que a responsabilidade pelos defeitos e limitações do artigo é exclusivamente minha.

ETIOLOGIA DA GUERRA NA UCRÂNIA. NATUREZA E FINS DA GUERRA DO PONTO DE VISTA RUSSO E OCIDENTAL

Sobre a etiologia da guerra na Ucrânia compartilho a interpretação histórica do professor John Mearsheimer. O conflito é consequência da expansão da NATO para leste e do desejo dos EUA de criar um reduto militar ocidental na fronteira russa, integrando a Ucrânia na NATO: uma estratégia que a Federação Russa declarou absolutamente inaceitável desde a Cimeira da NATO em Bucareste em 2008, em que esta organização militar anunciou a sua intenção de integrar a Geórgia e a Ucrânia na Aliança Atlântica.

Entre 2008 e 2022, os Estados Unidos gradualmente integraram a Ucrânia na NATO, embora de facto e não de jure. Em 2014, pressionaram pela desestabilização do governo recém-eleito e instalaram um regime amigo, e nos anos seguintes elevaram as forças armadas ucranianas para o nível de prontidão da NATO. Em 2014, a Federação Russa anexou a Crimeia sem conflito militar.

No entanto, em 2021, registou-se uma aceleração significativa do processo de integração de facto da Ucrânia na Organização Militar Atlantista: importantes fornecimentos de armas, grandes exercícios militares conjuntos e, em novembro desse ano, foi renovada uma Convenção bilateral EUA-Ucrânia que reafirmou a intenção comum de integrar a Ucrânia na NATO, desta vez de jure.

De acordo com esta interpretação etiológica, do ponto de vista russo, a guerra na Ucrânia é uma guerra preventiva em defesa de interesses russos vitais, e não uma guerra imperialista de anexação/conquista e não é o prólogo de uma qualquer expansão territorial russa na Europa. Este último objetivo é, ao contrário, a definição da natureza e dos propósitos da intervenção russa adotada pelos Estados ocidentais.

PRIMEIRA FASE DA GUERRA (24 DE FEVEREIRO A PRIMAVERA DE 2022). ESCALADA MILITAR RUSSA: INVASÃO DA UCRÂNIA. ESCALADA POLÍTICA OCIDENTAL: REJEIÇÃO DE QUALQUER NEGOCIAÇÃO DIPLOMÁTICA.

Em dezembro de 2021, a Federação Russa, que nos meses anteriores havia destacado um contingente militar pronto para intervir na fronteira ucraniana, propôs uma solução diplomática aos EUA, na fórmula inusitada de um projeto de tratado tornado público. As principais reivindicações russas eram, fundamentalmente: a Ucrânia neutra e a aplicação efetiva dos acordos de Minsk para a proteção das populações de língua russa de Donbass, onde ocorre uma guerra civil desde 2014, apoiada não oficialmente pelos governos ucraniano e russo. Os Estados Unidos não responderam à proposta de forma satisfatória para os russos (adiaram, paralisaram, recorreram à "ambiguidade estratégica").

Em 24 de fevereiro de 2022, a Federação Russa intervém militarmente na Ucrânia. Não é possível saber ao certo porque foi escolhido esse momento. Talvez, mas esta é apenas a minha inferência lógica, porque de acordo com as informações que possuo, a Federação Russa acreditava que o exército ucraniano estava prestes a intervir contra as milícias de Donbass, uma vez que destacou a maioria de suas tropas que estavam em posições defensivas. que eles construíram ao longo dos anos, a fim de evitar uma possível intervenção militar russa e torná-la muito mais difícil, cara, incerta.

Os russos intervêm com um contingente militar de cerca de 180 a 200.000 homens, em condições de inferioridade numérica relativamente ao exército ucraniano em cerca de 3:1, embora os manuais tácticos prescrevam uma relação inversa atacantes/defensores (pelo menos 3:1 a favor do atacante, para compensar a vantagem da defesa).

Os russos desenvolvem ataques em cinco linhas, tanto no sudeste quanto no noroeste da Ucrânia. Os ataques no Noroeste são ataques secundários, uma grande manobra diversiva destinada a colocar tropas ucranianas em defesa de Kiev e outros centros afetados pela manobra, para moldar o campo de batalha no Sudeste, no Donbass, para onde se dirigem. Ao interpretar a manobra russa dessa maneira, concordo com a interpretação oferecida por "Marinus", provavelmente o pseudónimo do tenente-general (ret.) Paul Van Riper.

Em três ou quatro semanas, a manobra de diversão russa foi bem-sucedida. No final de março, as tropas russas que haviam realizado ataques secundários no Noroeste retiraram-se, enquanto o grosso das forças russas se desdobrou em praticamente todo o Donbass, infligindo pesadas perdas, especialmente materiais, ao exército ucraniano graças a um clara superioridade em poder de fogo de artilharia e foguetes. A ação militar russa evita cuidadosamente o envolvimento de civis, não toca nas infraestruturas de uso civil e militar (por exemplo, a rede elétrica) e, em última análise, assume a forma de "diplomacia armada": os russos tentam obter, com pressão militar moderada, os objetivos que não foram alcançados com a crescente pressão diplomática de vários anos.

Até ao final de março de 2022, parece que a "diplomacia armada" russa pode ter sucesso: entre 24 de fevereiro e o final de março, sete reuniões diplomáticas são realizadas entre a Rússia e a Ucrânia e, no final de março, o presidente Zelensky declara oficialmente a jornais russos independentes que está pronto para negociar a neutralidade da Ucrânia e a solucionar o problema das populações de língua russa de Donbass.

Primeira escalada política ocidental

Mas, em 7 de abril de 2022, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, visita o presidente ucraniano e declara oficialmente que a Ucrânia ”contra as probabilidades, desafiou e empurrou as forças russas para fora das portas de Kiev, realizando a maior façanha de combate do século XXI". A partir desse momento, cessaram todas as relações diplomáticas entre a Ucrânia e a Federação Russa.

A interpretação ocidental “aquela pequena Ucrânia derrotou a grande Rússia no campo de batalha” é baseada numa leitura das primeiras semanas da guerra que é radicalmente diferente daquela que propus acima.

De acordo com esta interpretação, o objetivo russo teria sido a tomada de Kiev e a "mudança de regime", o derrube do governo ucraniano e a sua substituição por um governo fantoche pró-Rússia, e os ataques no noroeste seriam ataques principais fracassados, não ataques secundários fazendo parte de uma ampla manobra de diversão. É uma interpretação possível, que, se verdadeira, denuncia uma grave insuficiência militar e política da Federação Russa: é impossível atingir objetivos tão ambiciosos com um desdobramento tão reduzido de forças e uma intensidade tão baixa do conflito.

As facções mais extremistas do campo ocidental e do governo ucraniano confiam cegamente nessa interpretação dos eventos militares, sejam elas corretas ou incorretas, genuínas ou enganosas. No Ocidente cristaliza-se a certeza oficial de que é possível infligir uma derrota militar decisiva à Rússia, sendo por isso realista propor objectivos estratégicos maximalistas, como a sangria da Rússia e a sua desestabilização política, tanto por pressão militar como por pressão económica através de sanções e a ativação de forças centrífugas. O objetivo final: a expulsão da Rússia das fileiras das grandes potências, o estabelecimento de um governo pró-ocidental e possivelmente a fragmentação política da Federação Russa.

Esses objetivos maximalistas foram reivindicados oficialmente em 24 de abril pelos secretários de Estado e de Defesa dos Estados Unidos. Assim, os países europeus e da NATO, exceto a Turquia e a Hungria, alinham-se sem escrúpulos e votam, por maioria parlamentar esmagadora, por duras sanções económicas à Rússia e remessas de armas para a Ucrânia. A Suécia e a Finlândia, historicamente neutras, anunciam sua intenção de se tornarem membros da NATO. A "diplomacia armada" russa falhou.

SEGUNDA FASE DA GUERRA (PRIMAVERA – MEADOS DO VERÃO DE 2022). CONQUISTA RUSSA DE DONBASS. A CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE DE VITÓRIA PARA A UCRÂNIA.

A conquista russa de Donbass continua com sucesso, com confrontos urbanos altamente violentos, de casa em casa em Mariupol e em outros lugares. As tropas russas presentes na linha de contato com o inimigo são principalmente as milícias Donbass, as formações de voluntários chechenos e o grupo Wagner. As formações do exército regular russo atuam principalmente (não só) no apoio, com artilharia, mísseis e comando operacional. A ação militar russa não tem como alvo a infraestrutura civil e militar (de uso duplo) da Ucrânia.

A proporção de perdas ucranianas para russas é claramente desfavorável aos ucranianos, tanto por causa do poder de fogo russo superior, quanto porque as operações militares ucranianas são fortemente influenciadas pela necessidade de justificar, aos governos ocidentais e à opinião pública, o colossal e quase unânime apoio político e financeiro à Ucrânia, apoio que tem sérias repercussões políticas e económicas nos países europeus, especialmente na Alemanha, que se vê excluída do fornecimento de energia russa barata, na qual baseia há décadas, a sua prosperidade.

Em suma, os ucranianos são obrigados a “vender” resultados no terreno, resistência inflexível e agressividade constante. Esta é a sustentabilidade política do indispensável apoio ocidental: a perspectiva de uma futura vitória militar ucraniana sobre a Rússia.

Claro, a corajosa resistência ucraniana não pode ser atribuída apenas a isso: para grande parte da população, o conflito com a Rússia transformou-se numa guerra de libertação nacional, que é complementada por uma guerra civil e uma guerra por procuração dos Estados Unidos. Estados Unidos/NATO contra a Rússia

 A condição de possibilidade de uma vitória militar ucraniana

No entanto, a condição para a possibilidade de uma vitória militar decisiva da Ucrânia sobre a Rússia é baseada numa suposição.

É um pressuposto que funciona como princípio ordenador da estratégia de dissuasão desenvolvida pelo general francês Gallois: tornar a relação custo/benefício da vitória sobre a potência mais fraca desfavorável para a potência mais forte.

De acordo com a tese de Gallois, se uma grande potência nuclear atacasse a França, certamente poderia destruir o país completamente, mas a ativação de sua força nuclear infligiria danos politicamente inaceitáveis para a potência mais forte.

Resumindo: para vencer, o poder mais fraco deve assegurar que a vitória do poder mais forte não lhe custe uma guerra total inaceitável. A Ucrânia é fraca, a Rússia é forte.

Mesmo com a ajuda ocidental, os recursos estratégicos da Ucrânia (população, poder económico latente, poder militar manifesto, tropas mobilizadas e mobilizáveis, profundidade estratégica) ainda são em ordem de grandeza inferiores aos recursos estratégicos da Rússia, porque a Rússia tem 145 milhões de pessoas, pode mobilizar até 25 milhões de homens, possui enormes recursos naturais e capacidade de transformá-los, uma grande base militar-industrial e uma profundidade estratégica de 11 fusos horários. (“Profundidade estratégica” é o espaço dentro do qual um exército atacado pode recuar, se reorganizar e contra-atacar, assim como os soviéticos fizeram após a devastadora série de avanços da Wehrmacht no início da Operação Barbarossa.)

Repito: uma potência muito mais fraca pode vencer uma potência muito mais forte apenas se tornar o custo/benefício da vitória desfavorável para a potência forte.

Foi assim que o Vietname e o Afeganistão derrotaram os Estados Unidos (foi assim também que os afegãos derrotaram a URSS). O que aconteceu é que se essas duas grandes potências tivessem decidido comprometer totalmente os seus ativos estratégicos, o Vietname e o Afeganistão não poderiam ter evitado a derrota total. Mas os EUA e a URSS não o fizeram porque consideraram que uma guerra desse tipo era politicamente insustentável: perdas muito altas, compromisso político, económico e militar de longo prazo inaceitável, crescente oposição interna à guerra, etc. Em suma, os EUA e a URSS decidiram perder porque avaliaram que, para eles, a relação custo/benefício da derrota era mais vantajosa do que a relação custo/benefício da vitória.

O que está em jogo para a Rússia

Mas hoje os objetivos estratégicos declarados oficialmente pelo governo americano e relançados pela NATO e pelos países europeus são objetivos maximalistas: sangramento e enfraquecimento permanente do poderio económico e militar da Rússia, desestabilização do governo, ativação de forças centrífugas dentro da Federação Russa, expulsão de Rússia da lista de grandes potências, possível fragmentação territorial. Particularmente aterrorizante para a Rússia – que historicamente se constituiu como um império multiétnico, multinacional e multirreligioso – é a possibilidade de ativação de forças centrífugas étnicas, religiosas e nacionais, num cenário semelhante ao da Jugoslávia na década de 1990.

Em suma, os objetivos declarados do Ocidente constituem uma ameaça existencial ao governo, estado, sociedade e nações russas. Assim, a liderança russa convenceu-se de que apostas absolutas estão em jogo na guerra da Ucrânia e, portanto, estão dispostas a fazer literalmente qualquer coisa para a vencer, e repetidamente o têm dito oficialmente. Na verdade, eles estarão dispostos, até compelidos, a fazer pleno uso de todos os recursos estratégicos russos para vencer a guerra: vencer a Ucrânia e, eventualmente, se for um conflito direto, vencer também a NATO.

Assim, a condição de possibilidade de uma futura vitória ucraniana é eliminada: que para a Rússia a vitória sobre a Ucrânia não valeria uma guerra até ao amargo fim da vitória. Para conquistar o “mundo russo”, a Ucrânia e seus aliados ocidentais teriam que obter uma vitória decisiva sobre uma Federação Russa disposta, ou melhor, forçada a comprometer plenamente, pelo tempo que for necessário, todos os seus recursos estratégicos: em suma, eles deveriam fazer a Rússia capitular.

Ao mesmo tempo, os EUA e seus aliados ocidentais, ao se comprometerem publicamente com objetivos maximalistas, estão fechando o espaço de manobra da diplomacia e a aumentar as apostas políticas das suas classes dominantes, que correm o risco de serem varridas pela derrota; apesar de um resultado desfavorável da guerra não prejudicar, como tal, os interesses vitais de suas nações, nenhuma das quais corre o risco de desestabilização após uma derrota ucraniana.

A única nação do campo ocidental que arrisca tudo é a Ucrânia, que só pode esperar terríveis desastres com a continuação da guerra e provável derrota.

TERCEIRA FASE DA GUERRA (FIM DO VERÃO – OUTONO DE 2022). SUCESSO DA CONTRA-OFENSIVA UCRANIANA . ESCALADA POLÍTICA RUSSA: ANEXAÇÃO DE QUATRO PROVÍNCIAS DE DONBASS. ESCALADA MILITAR RUSSA: BOMBARDEIO DE ALVOS MILITAR E CIVIL DE USO DUPLO. GUERRA DE MANOBRA E GUERRA DE ATRITO.

As forças russas estão estacionadas em Donbass, ocupando quase 20% de todo o território ucraniano e posicionadas numa frente de, aproximadamente, 1.500 km. Reorganiza-se o aparelho militar ucraniano, alarga-se a mobilização convocando os reservistas e estendendo-se o serviço militar obrigatório até aos 60 anos, abastece-se de novas armas ocidentais (em grande parte de material ex-soviético) para substituir as destruídas na anterior fases do conflito, o país é intervencionado por um envolvimento mais intenso do estado-maior da NATO e por uma estruturação mais capilar das funções ISR (Inteligência, Vigilância e Reconhecimento)... e em setembro de 2022 lança uma contra-ofensiva, tendo como alvo principal Kharkiv.

A contra-ofensiva ucraniana é bem-sucedida. Os russos tiveram de recuar ao longo de toda a frente, recuando mais ou menos em ordem. Motivo: o cobertor russo é muito curto. As unidades russas conquistaram vastos territórios que não podem manter com o pequeno número de tropas envolvidas na "operação militar especial". Devem, pois, resistir retirando-se o mais ordenadamente possível, encurtar a frente, reduzir os territórios a defender e fortificá-los para neles se instalarem, reconfigurar o dispositivo militar e reforçá-lo.

A Rússia ajusta-se à nova realidade no terreno. O comandante-geral das operações na Ucrânia, general Surovikin, propõe à Duma, que vota por unanimidade, a mobilização parcial de 300 mil reservistas. Também estão mobilizadas as indústrias militares, que trabalharão em três turnos de oito horas.

Escalada política russa: anexação dos quatro oblasts de Donbass

O governo propõe à Duma, que também votou por unanimidade em outubro, a anexação de quatro oblasts de Donbass: as regiões de Donetsk, Lugansk, Zaporizhzhya e Kherson, após um plebiscito organizado pelas autoridades russas de ocupação.

É a escalada política mais decisiva de toda a guerra, porque com ela a Rússia deita para trás das costas qualquer hesitação e implicitamente anuncia a sua firme disposição de comprometer todos os seus recursos estratégicos até ao fim para obter a vitória sobre a Ucrânia e seus aliados. Para que a Rússia se retire da anexação, devolvendo à Ucrânia os territórios que formalmente se tornaram território nacional da Federação Russa, a Ucrânia e seus aliados teriam que infligir uma derrota decisiva a toda a Federação Russa e fazê-la capitular.

Escalada militar russa. Bombardeio de propósito duplo de alvos militares e civis

A Rússia reconfigura o dispositivo militar em torno da unidade de comando e consolida a frente, enquanto a mobilização dos reservistas ocorre no meio de diversas dificuldades (é a primeira mobilização em oitenta anos e o aparato administrativo e logístico russo não está pronto; milhares dos russos atravessam as fronteiras para evitar o recrutamento).

O Comandante General Surovikin decide sobre escalada militar. Pela primeira vez, alvos civis e militares de uso duplo, em particular a rede elétrica ucraniana, mas também infraestruturas gerais como ferrovias, fábricas, depósitos de material militar e civil, etc., são afetados por uma série incessante de bombardeios de mísseis. A Rússia não ataca civis, mas ao atacar a infraestrutura causa sérios transtornos à população, põe em risco o curso normal da vida quotidiana e, obviamente, causa "danos colaterais", vítimas civis atingidas por engano pelos seus mísseis e pelo fogo antiaéreo ucraniano.

O general Surovikin também toma a decisão, politicamente difícil e impopular mas correta, de abandonar Kherson, um importante centro formalmente anexado ao território nacional russo, e retirar as tropas que o ocupam para a margem sul do rio Dnieper. A decisão operacional permite não desperdiçar forças evitando uma contra-ofensiva num ponto sensível, mas concentrar esforços no Donbass. Isso levará a resultados concretos benéficos no campo de batalha.

Guerra de manobra, guerra de desgaste. O exemplo histórico da Operação Barbarossa

A "guerra de manobra", em alemão Bewegungskrieg (guerra de movimento), é o oposto simétrico da "guerra de atrito", Stellungskrieg, (guerra de posição). Cada guerra combina, em porcentagens diferentes, manobra e desgaste. A guerra de atrito visa desgastar gradualmente as capacidades de combate do inimigo com a aplicação sustentada e constante da força superior. A guerra de manobra visa destruir rapidamente as capacidades de combate do inimigo, criando e explorando habilmente o Schwerpunkt, ou seja o ponto de viragem vital mais fracamente defendido da formação inimiga, contra o qual um ataque rápido e decisivo é lançado.

A vantagem da manobra sobre o desgaste parece óbvia: a manobra oferece a possibilidade de uma vitória rápida e decisiva, mas também ameaça a possibilidade de uma derrota igualmente rápida e decisiva, porque atacar é sempre arriscado e o inimigo sempre pode responder.

Como aponta Clausewitz, não existe “ciência da vitória”, e a lógica que rege a guerra não é linear mas paradoxal, como ilustra o ditado romano “si vis pacem para bellum”. A guerra de manobras é utilizada por exércitos que sofrem uma clara desvantagem na guerra de desgaste: são exércitos menos numerosos, com capacidades materiais ou logísticas inferiores às do inimigo.

Nesta fase do conflito ucraniano, que nas duas fases anteriores viu uma combinação de manobra e desgaste, a guerra estabiliza-se na forma de uma "guerra de atrito", o tipo de conflito onde mais pesa a disparidade de recursos estratégicos entre os contendores. De fato, na guerra de atrito, o que mais conta para a vitória é a capacidade de fornecer forças humanas e materiais de forma sustentável. É onde a Rússia tem a maior vantagem sobre a Ucrânia.

A vantagem russa é reforçada por um fato político essencial: a Ucrânia é totalmente dependente do apoio ocidental, e os líderes ocidentais devem justificar o crescente custo político e económico desse apoio para a opinião pública e para o seu eleitorado. Assim, os ucranianos são obrigados, por motivos políticos, a enviar constantemente tropas, mesmo insuficientes ou despreparadas, para a linha de contacto com os russos, mantendo vivo o conflito, renovando no Ocidente a admiração pela sua resiliência e alimentando a convicção de que a vitória final da Ucrânia é possível.

Do ponto de vista militar, os ucranianos deveriam realmente fazer uma pausa, reorganizar as suas reservas, reforçá-las e treiná-las, e economizar homens e equipamentos para futuras contra-ofensivas. Com efeito, uma potência com recursos estratégicos claramente inferiores ao seu inimigo só pode esperar derrotá-lo com uma hábil, agressiva e rápida guerra de manobra, especialmente rápida: numa guerra de atrito, o tempo corre a favor da potência com maiores recursos estratégicos.

Foram essas considerações fundamentais que ditaram a maneira como o poder militar prussiano, e posteriormente alemão, se desenvolveu e organizou, ou seja, na Prússia estavam os mestres da guerra de manobra agressiva e rápida.

Historicamente, tanto a Prússia quanto a Alemanha tiveram que lidar com a sua própria situação geopolítica: exposição em várias frentes no centro da Europa, fronteiras desprotegidas por obstáculos naturais, recursos naturais e humanos limitados; e, portanto, decidiram resolver esta difícil equação desenvolvendo um aparato militar altamente preparado para travar guerras de manobra rápida com grande agressividade e habilidade. Exemplos dos sucessos do estilo germânico são a magistral Blitzkrieg contra a Polónia e a França na Segunda Guerra Mundial.

No entanto, o fracasso da Operação Barbarossa também é exemplar. A Alemanha invadiu a URSS, obtém vitórias esmagadoras por seis meses, mas não consegue causar o colapso político e social do inimigo e chega ao limite das suas capacidades logísticas. A URSS não capitula, ela reorganiza-se e passa a gerar forças humanas e materiais cada vez maiores e superiores às forças que a Alemanha é capaz de gerar. Serão quatro anos de amargo conflito, mas o destino da Alemanha está selado.

Deve notar-se que na época da Operação Barbarossa todos os Estados-Maiores do mundo, deslumbrados com os esplêndidos sucessos alemães, deram como certa a vitória da Wehrmacht. Mas isso só poderia ter acontecido se a URSS tivesse entrado em colapso após os primeiros meses de derrotas devastadoras. A Operação Barbarossa foi, portanto, uma arriscada aposta estratégica, em que a vitória final dependia inteiramente do colapso da coesão política, militar e social do inimigo. O Alto Comando Alemão, por sua vez, não levou em conta tanto os recursos estratégicos da URSS quanto, e sobretudo, a sua capacidade de gerar novas forças, durante o tempo necessário para encerrar a guerra. vitoriosamente.

É o mesmo tipo de erro que o alto comando ocidental cometeu neste conflito ucraniano.

Eles subestimaram enormemente os recursos atuais da Rússia: esse erro da inteligência militar ocidental explica as constantes alegações de que "a Rússia está prestes a ficar sem reservas de mísseis e projéteis de artilharia". Esse tipo de desinformação tem-se tornado cada vez mais grotesco e desconectado da realidade; o Ocidente subestimou seriamente a capacidade da Rússia de gerar novas forças humanas e materiais a curto e médio prazo: daí a avaliação incorreta do impacto das sanções económicas sobre a Rússia, erroneamente acreditada; eles também subestimaram seriamente a coesão política e social da estrutura russa, a sua vontade de lutar e de se mobilizar: isso também explica os anúncios cada vez mais ridículos de um derrube iminente do governo russo por setores da classe dominante.

QUARTA FASE DE TRANSFORMAÇÃO DA GUERRA (FIM DO OUTONO 2022 – INVERNO 2022/23). DUAS FACÇÕES NA LIDERANÇA DOS EUA: ESCALADA OU DESCALADA? TRÊS FACTOS SIGNIFICATIVOS. ESTIMATIVAS DE PERDAS PARA UCRÂNIA E RÚSSIA. PREVISÕES. A DUPLA ARMADILHA ESTRATÉGICA

Considero a fase atual da guerra transformadora porque só nesta fase vem à tona a sua natureza de dupla armadilha estratégica. Na quarta fase da guerra, três eventos significativos ocorrem.

Sabotagem Northstream 2

Em novembro de 2022, uma sabotagem submarina desativou o Northstream 2, o gasoduto construído para transportar metano russo para a Alemanha através do Mar Báltico, contornando a Ucrânia. A investigação imediatamente parou, devido à impossibilidade política de identificar os autores: de facto, a lógica sugere que os Estados Unidos são os responsáveis pelo ataque.

A operação é provavelmente o resultado de uma colaboração entre a Marinha Real, as forças especiais britânicas e polacas. Motivo da sabotagem: a classe dominante alemã está cada vez mais preocupada com os efeitos desastrosos de longo prazo (desindustrialização progressiva da Alemanha) e a cessação do fornecimento barato de energia russa.

A sabotagem do gasoduto é um verdadeiro ato de guerra contra a Alemanha, destinado a intimidá-la a alinhar-se sem hesitação com a estratégia de oposição frontal à Rússia decidida pelos Estados Unidos. A intimidação é bem-sucedida. A Alemanha está intimidada. O único estado europeu que não adere à linha americana é a pequena Hungria; na NATO, o único estado com alto grau de autonomia política é a Turquia.

Declarações públicas do general Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA

Em novembro, e novamente em dezembro de 2022, o general Mark Milley, presidente do Estado-Maior Conjunto dos EUA, emite declarações públicas informais, pedindo a abertura de negociações diplomáticas com a Rússia e afirmando que "não se pode pedir mais aos ucranianos".

Os comentários improvisados de Milley são uma indicação clara de que duas grandes facções estão em desacordo nos centros de tomada de decisão dos EUA: uma centrada no establishment bipartidário da política externa, a favor da continuação da guerra na Ucrânia até ao fim; e outra, articulada no Pentágono, a favor da desescalada do conflito.

O facto de Milley comunicar publicamente suas posições mostra que, no debate dentro da Administração dos Estados Unidos, a posição do Pentágono é minoritária, e que o choque entre as duas posições é muito amargo.

Como prova adicional da existência desses dois alinhamentos dentro da liderança americana, um estudo muito recente publicado pela RAND Corporation ( Evitando uma longa guerra: a política dos EUA e a trajetória do conflito Rússia-Ucrânia ), analisa, do ponto de vista de o interesse nacional dos EUA, os custos de um prolongamento da guerra na Ucrânia, e recomenda a desescalada e o estabelecimento cauteloso de um processo diplomático que leve a uma conclusão negociada do conflito. A RAND Corporation é um importante e prestigioso think tank que desde sua fundação realiza análises e projetos, sobretudo para o Pentágono.

Reconfiguração da estrutura de comando russa, anúncio da reforma das forças armadas russas

Em janeiro de 2023, o governo russo reconfigurou o comando militar das operações na Ucrânia e anunciou uma reforma estrutural mais geral de suas Forças Armadas. O soldado russo de mais alta patente, General Gerasimov, Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Russas, recebe o comando geral das operações na Ucrânia, enquanto o General Surovikin reassume o seu papel anterior como Comandante das Forças Aeroespaciais.

O governo restaura os distritos militares de Moscovo e de Leninegrado, ordena a formação de um novo grupo do exército na Carélia, na fronteira finlandesa, e a criação de doze novas divisões do exército. Também anuncia que até 2026 aumentará o tamanho de seus meios militares permanentes, elevando-os para 1,5 milhão de homens.

Os principais líderes russos começam a declarar publicamente que a guerra em curso na Ucrânia é, de facto, uma guerra entre a Rússia e a NATO. Essas declarações públicas sem precedentes também têm, como sempre na guerra, valor de propaganda interna, mas interpretadas à luz das reformas militares em curso, sugerem, com alto grau de plausibilidade, que os governantes russos estão a preparar-se para o pior cenário, ou seja, para uma intervenção direta das forças ocidentais no conflito ucraniano.

A guerra de desgaste continua. Estimativas de perdas ucranianas e russas

Enquanto isso, a guerra de desgaste continua em solo ucraniano. Os ataques com foguetes contra a infraestrutura civil e militar de uso duplo da Ucrânia continuam. O dispositivo militar russo é consolidado nas posições defensivas ocupadas e fortalecidas após a retirada.

A formação dos reservistas reformados continua e é aperfeiçoada, e a logística adapta-se gradualmente à chegada dos reforços e à continuação dos intensos e constantes ataques de mísseis. Os departamentos russos lançam ataques incrementais contra as linhas defensivas ucranianas, com uso reduzido de tropas e fogo de artilharia intenso e prolongado, para limitar ao máximo as suas perdas. Os ucranianos, continuam presos à necessidade política de atacar o mais rápido possível, para justificar o apoio ocidental,

É impossível, enquanto durar a guerra, ter dados confiáveis sobre as perdas. Enquanto escrevo, no final de janeiro de 2023, fontes ocidentais como a Strategic Forecasting, uma importante agência de inteligência que frequentemente colabora com a CIA, falam de mais de 300.000 ucranianos mortos e perdas irrecuperáveis totais de cerca de 400.000 homens.

As estimativas ocidentais não oficiais mais recentes de perdas russas irrecuperáveis falam de 20.000 mortos e 30.000 feridos graves. Mesmo com todas as precauções necessárias, é bem provável que a relação entre as perdas da Ucrânia e as perdas da Rússia esteja entre 10:1.

Nas grandes batalhas da Segunda Guerra Mundial, a taxa de baixas entre o perdedor e o vencedor girava em torno de 1,3 – 1,5 para 1. O exército ucraniano não parece capaz de preparar uma contra-ofensiva em grande escala num futuro próximo: por ter sofrido um elevado número de baixas, especialmente oficiais veteranos e suboficiais; pela escassez de material bélico, apesar dos renovados carregamentos de armas ocidentais; pela crescente desorganização das estruturas de comando militar; e, pela degradação crescente e progressiva das condições económicas e sociais de toda a Ucrânia.

Eleições operacionais do Alto Comando Russo. Previsões.

Em síntese, na quarta fase da guerra começa a ficar claro que o aparato militar russo alcançou, ou está prestes a atingir, as condições necessárias e suficientes para dar ao conflito o rumo desejado por seu comando militar e político.

Claro, apenas o Alto Comando Russo sabe qual é esse rumo, mas atualmente parece ser capaz de:

Um: continuar a guerra de desgaste, aplicando constantemente a sua força superior no aparato militar ucraniano e em toda a sociedade e economia ucranianas: economizando assim o seu recurso mais precioso, os homens. Os homens são o ativo mais valioso da Rússia politicamente, por razões óbvias reforçadas pelas próximas eleições presidenciais russas de 2024. Eles também são o ativo mais valioso da Rússia militarmente, e especialmente os veteranos, que precisam treinar reservistas, nenhum dos quais com experiência direta em cargos tão elevados. guerra de intensidade (ninguém no mundo a tem exceto aqueles que nela participaram, de um lado ou do outro).

Dois: Partir para a ofensiva em larga escala, numa ou mais linhas. Objetivos estratégicos previsíveis, aniquilação progressiva da capacidade de combate do exército ucraniano; a reconquista das porções territoriais dos quatro oblasts anexados à Rússia e tomados pela Ucrânia após a retirada russa; a ocupação e a anexação de Odessa e de todo o território de Novorossiya à Rússia, a fim de excluir a Ucrânia do acesso ao mar.

Provavelmente, nas avaliações do alto comando russo estão presentes, e não em segundo plano, as previsões da reação ocidental a uma e outra decisão operacional russa. Continuar a guerra de desgaste permite que os líderes ocidentais adiem decisões político-estratégicas sobre escalada ou desescalada e provavelmente beneficiará a facção pró-desescalada, dando-lhe tempo para se organizar melhor, encontrar aliados, divulgar os seus argumentos.

Passar à ofensiva os força a escolher rapidamente, muito rapidamente, se o ataque pretende ter um êxito claro. A facção dos EUA a favor da desescalada continua sendo uma minoria: a situação no terreno favorece-a, mas carece do apoio aberto de pelo menos um dos mais importantes aliados europeus.

Na minha opinião, é vantajoso para a Rússia evitar uma aceleração do conflito, tanto pelos riscos de fracasso quanto pelos custos humanos - sempre associados a ações ofensivas de grande escala. Isso pode mudar por decisão do "partido da guerra" que, aproveitando um choque emocional, poderia iniciar uma participação direta e formal das forças ocidentais no campo de batalha, por exemplo, com a ação de uma "coligação de vontades" proposta em novembro de 2022 pelo General (ret.) David Petraeus. Ou seja, com tropas polacas, romenas, bálticas, que interviriam sob suas próprias bandeiras, mas não como membros da NATO, a partir de um pedido de ajuda militar do governo ucraniano: uma manobra legal para evitar o conflito direto entre a NATO e a Rússia,

Então, se eu tiver que arriscar um palpite, diria que a Rússia continuará a guerra de desgaste por muito mais tempo.

Vitória decisiva apenas para a Ucrânia. Vitória decisiva com intervenção ocidental direta. chance e probabilidade

Em suma, um ano após o início da guerra, está claro que uma vitória militar decisiva da Ucrânia sobre a Rússia é materialmente impossível, mas a ajuda ocidental pode continuar, ou mesmo aumentar, nas suas formas atuais. A situação só pode mudar com a participação direta das tropas ocidentais.

No entanto, surgiram dúvidas entre as lideranças político-militares ocidentais de que uma participação direta das tropas ocidentais na guerra não seria suficiente para garantir uma vitória decisiva sobre a Rússia. Acima de tudo, as dúvidas são militares: é por isso que a facção dos EUA a favor da desescalada se sedia no Pentágono.

Razões:

A atual estrutura militar da NATO, incluindo os Estados Unidos, não está projetada e preparada para uma guerra convencional de alta intensidade contra um inimigo capaz de travá-la, como a Rússia. Desde o fim da Guerra Fria, todas as nações da NATO reduziram drasticamente as suas forças militares, desmantelaram grande parte das suas instalações logísticas, direcionaram a construção e treino das suas forças armadas e a produção das suas indústrias militares para conflitos de curta duração contra inimigos. geralmente pertencentes ao "Grande Sul do mundo"; uma decisão inteiramente razoável, até que a NATO se opôs à Rússia, que de fato não a ameaçou de forma alguma.

A Rússia, por sua vez, estruturou as suas forças armadas e a sua indústria militar com vista a uma guerra defensiva contra a NATO, tradição histórica de um país que sempre teve de enfrentar e repelir grandes invasões ao seu território. Até agora privilegiou a defesa de último recurso, a tríade nuclear mas, como prova a guerra na Ucrânia, não abandonou a preparação convencional e está a reforçá-la. Ela também ganhou uma relativa superioridade sobre os Estados Unidos em áreas cruciais, como mísseis e defesa aérea. Leva-se anos a compensar tal deficiência.

Um rearmamento ocidental é muito difícil, o seu resultado incerto, os tempos longos. O financiamento, mesmo o crowdfunding, não chega: o dinheiro só compra o que já existe, e o que já existe não chega. Para fazer existir o que falta, é preciso primeiro determinar politicamente a estratégia de segurança coletiva da NATO, processo muito complicado e difícil também pela fragmentação dos centros de decisão.

Se o principal inimigo da NATO é a Rússia, é essencial, no mínimo e apenas para começar: construir um grande número de caças-bombardeiros para serem usados em apoio à infantaria, e capazes de sobreviver às defesas antimísseis russas; construir a infraestrutura logística necessária para uma grande projeção de forças em caso de crise, com o planeamento correspondente; lançar um grande programa de defesa antiaérea integrada do território europeu; lançar um vasto programa de recrutamento e formação de tropas, especialmente oficiais e suboficiais.

Neste sentido, há que ter em conta que a renúncia por parte dos países da NATO ao serviço militar obrigatório tem levado à perda de enormes reservas treinadas a que se pode recorrer em caso de necessidade. Basicamente, no caso de uma guerra que nos envolva (por muito tempo e com perdas significativas), mobilizações como as convocadas por Moscovo e pela Ucrânia são quase impossíveis nos países da Europa Ocidental. É bom ter em mente que a renúncia de recrutamento por parte de todos os países da NATO levou à perda de enormes reservas treinadas, às quais se poderia recorrer em caso de necessidade.

Obviamente, o envolvimento direto do Ocidente na guerra impediria os Estados Unidos de se concentrarem em conter a China, solidificaria a aliança desta última com a Rússia, exporia os Estados Unidos a uma possível guerra em duas frentes contra duas grandes potências nucleares e aumentaria progressivamente o risco das armas nucleares aparecerem no conflito.

Quanto mais direto e intenso for o conflito convencional entre as duas grandes potências nucleares como a Rússia e os Estados Unidos, mais provável é que o contendor que acredite estar sujeito a uma provável derrota decisiva, considere seriamente o uso de armas nucleares.

Igualmente óbvio, num conflito direto entre as forças ocidentais e a Rússia, as baixas ocidentais chegariam a dezenas de milhares, um custo humano difícil de justificar politicamente.

Uma armadilha dupla estratégica

Com a expansão da NATO para o Leste, e insistindo em incluir a Ucrânia, os Estados Unidos armam uma armadilha estratégica à Rússia, obrigando-a a escolher entre duas alternativas, ambas muito perigosas a médio e longo prazo: aceitar a proibição de ter uma esfera de influência e aceitar a presença ameaçadora de uma fortaleza militar ocidental no limiar da Rússia européia; ou intervir militarmente, assumindo o grave risco de um conflito com a NATO, e comprometendo as suas próprias relações políticas e económicas com a Europa. Esta é a primeira “mandíbula” da armadilha estratégica em que a Rússia entrou de olhos abertos, depois de quatorze anos tentando evitá-la.

No entanto, os Estados Unidos subestimaram seriamente as capacidades de reação e resistência militares, económicas, políticas e sociais da Federação Russa e também superestimaram tanto o prestígio dissuasor de sua força quanto a sua atual capacidade e potencial militar e económico. Portanto, eles são forçados a escolher entre duas alternativas, ambas muito perigosas a médio e longo prazo.

A primeira alternativa é a redução de danos, uma desescalada do conflito ucraniano que se traduz numa clara derrota político-diplomática, um forte descrédito dissuasivo, a possível abertura de uma crise por falhas no sistema de alianças e graves retrocessos políticos internos, por exemplo, uma grave deslegitimação geral da classe dominante.

A segunda alternativa é a fuga para a frente, uma escalada total do conflito, com a possível - na verdade provável, porque necessária - participação direta das tropas ocidentais; o risco de uma guerra convencional de alta intensidade para a qual os Estados Unidos e a NATO não estão preparados; o possível envolvimento futuro do território nacional dos Estados Unidos e, em perspectiva, a crescente possibilidade de uma degeneração nuclear do conflito.

A segunda “mandíbula” dessa dupla armadilha estratégica está agora a fechar-se para os estrategas americanos que a implementaram: eles entraram com os olhos fechados e só agora começam a vê-la.

Athes, a deusa que cega os líderes, a princípio os seduz com gestos amigáveis, mas depois os arrasta para redes onde não há esperança de fuga para eles” (Ésquilo, Os Persas, 96-100).

Fonte aqui


Nota

[1] Charap, Samuel e Miranda Priebe, Evitando uma longa guerra: a política dos EUA e a trajetória do conflito Rússia-Ucrânia. Santa Monica, CA: RAND Corporation, 2023. https://www.rand.org/pubs/perspectives/PEA2510-1.html

 Resumo do trabalho da Organização Rand: “A discussão da guerra russo-ucraniana em Washington é cada vez mais dominada pela questão de como ela pode terminar. Para informar essa discussão, essa perspectiva identifica as maneiras pelas quais a guerra poderia evoluir e como trajetórias alternativas afetariam os interesses dos EUA.

Os autores argumentam que, além de minimizar os riscos de uma escalada séria, os interesses dos EUA seriam mais bem atendidos ao evitar um conflito prolongado. Os custos e riscos de uma guerra prolongada na Ucrânia são significativos e superam os benefícios potenciais de tal trajetória para os Estados Unidos. Embora Washington não possa determinar a duração da guerra em si, pode tomar medidas que tornem uma eventual conclusão negociada para a guerra mais provável. conflito. Baseando-se na literatura sobre o fim da guerra, os autores identificam os principais obstáculos para as negociações Rússia-Ucrânia como otimismo mútuo sobre o futuro da guerra e pessimismo mútuo sobre as implicações da paz. A perspectiva destaca quatro ferramentas políticas que os Estados Unidos poderiam usar para mitigar esses obstáculos.


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GRAZIA  TANTA

Documentos e textos em:    

http://grazia-tanta.blogspot.com/                               




terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

GOYA E O SONHO DA RAZÃO, REVISITADOS

 


As pessoas são alimentadas, ao longo da vida, por narrativas lineares. A ideia de que as sociedades e a tecnologia vão ser «mais isto ou aquilo». É muito divertido observar as publicações de magazines populares, que estimavam há cem anos atrás (ou menos), «como seria o futuro»: É um lugar-comum verem-se automóveis que também voavam, ou pessoas a viverem em apartamentos cheios de gadgets, embora as coisas que eram imaginadas, há várias dezenas de anos, como fazendo parte dos confortos da «modernidade», ou nunca se concretizaram ou, se vieram a existir, são de uma forma substancialmente diferente.

Sociologicamente, também, as projeções do futuro são lineares; há o alargamento - a quase generalização - do modo de vida do tipo «classe média», uma população de engenheiros, doutores, cientistas, profissões de elevado prestígio. É costume as pessoas projetarem os seus desejos no futuro. Mas é singular haver tão fraca imaginação, uma incapacidade, incluindo nos «futurologistas», em decifrar no presente aquilo que serão as linhas de força da próxima década, já para não falar do próximo século. 

As pessoas estão muito cientes de «verdades» que lhes foram transmitidas por inúmeros canais, a maior parte, sem relação nenhuma com a realidade das coisas. Mas, mesmo quando fazem um esforço genuíno para projetar as tendências observáveis no presente em direção ao futuro, incluindo o mais próximo, a regra é errarem redondamente. 

Assim, deveríamos estar completamente abertos a todos os campos de hipóteses, aquelas que conseguimos vislumbrar e mais ainda aquelas de que não fazemos a mínima ideia, no presente. 

Por vezes, tais  são as transformações, que as pessoas ficam completamente desnorteadas. A nossa mente é feita para apanhar a tendência dominante, projeta-la no futuro e construir a realidade a partir destas projeções. 

Mas, os fenómenos complexos ultrapassam - em muito - as capacidades de os equacionar, mesmo que sejamos «génios». Os fenómenos não se submetem a uma lógica linear. Linearidade ou «lei estatística» é o que a nossa mente gostaria que fosse. O nosso inconsciente está sempre a procurar a conformidade, porque é algo que nos tranquiliza, nos dá uma sensação (ilusória) de continuidade. Não somos feitos para incorporar o  insólito, o estranho, o irracional no nosso mundo. Assim, estamos com frequência de pé atrás face à novidade, sobretudo se tal novidade vem contradizer as «certezas», que nós julgávamos eternas.

Os ilusionistas, os demagogos, servem-se sistematicamente do efeito de «normalidade», que está tão arreigado no nosso psiquismo. Este efeito, é uma das principais fontes de equívocos, de avaliação errónea dos dados ao nosso dispor. 

Os sentidos podem ser facilmente «iludidos», mas note-se que eles não são a fonte da ilusão, do equívoco, nem tão pouco, a natureza exterior do que eles veiculam: Afinal, as ilusões ditas dos «sentidos», são antes ilusões da interpretação cerebral das imagens ou sons, etc. que nos vêm pelos sentidos.  Mesmo a imagem que seja «ambígua» à partida, não o será, de verdade: 

- Somos nós que construímos, com aquilo que recebemos dos sentidos, uma certa interpretação ou a descartamos, no momento seguinte, por outra, que nos pareça igualmente coerente. É sempre a reconstrução da imagem que fazemos no cérebro, que  desencadeia a interpretação ambígua. A imagem em si mesma, as manchas de cor e de sombra, os contornos, etc.,  são o que são. Não mudam: É o nosso dispositivo cerebral que é tomado pela interpretação ambígua. 

Porque razão continuamos iludidos, sabendo como é fácil nos ilusionarmos, sabendo também que as ilusões ou miragens, resultam de certa visão que nós próprios damos às coisas, não das coisas em si mesmas. 

Se fizermos uma reflexão profunda sobre a falibilidade dos sentidos e dos juízos que (conscientemente, ou não), fazemos a partir destes, é possível atingir o primeiro grau da sabedoria: 

- A nossa própria psique é que nos engana, na maioria das vezes. Não fazemos a análise adequada das informações que nos chegam pelos sentidos. Assim, somos nós próprios a fonte os enganos.

Se extrapolarmos para o domínio da vida política, económica, etc. verificamos que evoluímos como crianças que se enganam a si mesmas, julgando ver o objeto real no seu mero reflexo, estando convencidas de que a ausência de algo, significa que esse algo não exista realmente, etc.

Temos de reconhecer que, por muito «racionais» que nos consideremos, a maioria das pessoas vive fora da realidade. A realidade é reduzida à imagem distorcida, limitada da mesma. 

Por isso, não considero que exista um fosso intransponível entre o «patológico» e o «normal». De facto, as pessoas estão sempre a tomar os seus desejos por realidade. E quanto à pessoa doente mental: Está ela sempre «fora da realidade»? Mas o que é a realidade? Eu  tenho impressão que, em vez da realidade inteira, é «entronizada» a ideia comum que as pessoas têm da realidade. 

Pode uma mente genial ver aquilo que as pessoas vulgares não conseguem ver; pode também uma pessoa perturbada mentalmente ver algo que as outras não vêm. Mas, quem decide o que é lúcido e não lúcido? Realmente, é muito difícil estabelecer a fronteira entre o normal e o patológico. A História mostra-nos, vezes sem conta, que pessoas, perfeitamente ajuizadas, emitiram hipóteses, ou teorias, que foram descartadas como extravagantes ou pior, inspiradas pelo demónio. Mas, na verdade, eram perfeitamente racionais e lógicas. A sociedade, ao fim de algum tempo, terá assumido tais «elucubrações» como a coisa mais normal deste mundo.

A nossa neotenia abre-nos a porta dos possíveis. A nossa necessidade de proteção, de segurança, fecha essa mesma porta.  A criança que tem medo, tapa os olhos com as mãos, para não ver. A sociedade, ao longo dos tempos, tem feito o mesmo. Tem sido tentada por mundos desconhecidos, que lhe batem à porta; em simultâneo, tem sido afugentada pelo medo do desconhecido, das trevas cheias de monstros, de emanações fantasmagóricas dos nossos próprios medos.

  

 

domingo, 5 de fevereiro de 2023

INDIVÍDUO / COLETIVO

O título apela a uma oposição, a qualquer coisa irredutível, na essência. Porém, se este é o modo de pensar e de filosofar de muitos, não é o meu! Embora aceite que eu possa ser influenciado por uma sociedade e um discurso dominantes, que se caracterizam por um pensamento dicotómico, simplificador. Porém, as propriedades imensamente complexas do social e do histórico entrelaçam-se para produzir algo totalmente inédito, em termos de evolução biológica.
 
O que os humanos têm feito ao longo da sua breve existência (como espécie, uns meros 300 mil anos), mas imenso tempo, em termos de memória humana (as primeiras civilizações surgem apenas há pouco mais de uns 10 mil anos), não tem sido senão depredação do seu ambiente. A «revolução agrária», iniciada há mais de 10 mil anos, implicou uma radical transformação, não apenas do modo de produzir e consumir alimentos, passando da caça-recoleta, para uma produção agrária, mas também a destruição de ecossistemas naturais, sobretudo na orla do mar Mediterrâneo, onde apenas restam alguns vestígios do que foi a floresta mediterrânea primitiva, vasta zona produtiva natural, que tinha uma diversidade notável, em termos de flora e fauna, zona temperada e de clima não demasiado seco. Veja-se que vastas áreas, como a Anatólia (Turquia), Síria e Levante, assim como Norte de África, não eram formadas por desertos ou semidesertos, como hoje. Eram zonas muito propícias para a caça e coleta e para a agricultura. Porém, a construção de impérios diversos na antiguidade extinguiu estes ecossistemas frágeis. Por exemplo, havia, até aos tempos históricos, leões nessas zonas; muitos documentos escritos e pictóricos atestam-no. Mas, estes superpredadores precisam de uma fauna de herbívoros, como gazelas, etc. Por sua vez, os herbívoros que aí viviam precisavam de condições mínimas para sobreviver; precisavam de alguma humidade, de fontes de alimento abundantes ao longo do ano, etc. Portanto, temos uma ideia muito clara de como eram os habitats naturais, no início da «revolução agrária» e sabemos que permitiam uma diversidade biológica muito maior do que as zonas áridas e desérticas, que constituem uma boa parte do entorno do Mediterrâneo, nos nossos dias. A transformação de vastas áreas em desertos ou semidesertos, terá tido contribuição humana, com a sua destruição dos ecossistemas, usando a caça muito para além das suas necessidades. A destruição dos habitats naturais pelo fogo, foi realizada pelos primeiros agricultores, para aí fazer crescer plantas agrícolas. Este comportamento humano foi causador de catástrofes ambientais, desde as civilizações mais antigas conhecidas.

O sucesso da linhagem humana (pelo menos, o género Homo), enquanto tal, mede-se, sobretudo, pela sua expansão para lá dos limites geográficos que foram as suas zonas geográficas iniciais de África e depois também a orla do Mediterrâneo. Mas, essa expansão ocorreu repetidas vezes, houve várias saídas para fora de África. Ocorreram mesmo com espécies anteriores aos humanos modernos, há mais de um milhão de anos, como no caso dos Homo erectus, que se disseminaram na Ásia. Porém, não devemos ter uma imagem idílica destes períodos, pois os efetivos totais da Humanidade, em qualquer momento deste período muito longo, não devia exceder uns parcos milhares.

Algumas pessoas têm uma visão pessimista (Malthusiana) da espécie humana e da dinâmica populacional no nosso planeta, porém esta visão enferma de um grande simplismo. Primeiro, há sinais de diminuição clara da natalidade, acompanhada de envelhecimento geral, nas sociedades mais afluentes, quer sejam europeias, americanas ou asiáticas. Segundo, as restantes zonas do globo experimentam evolução demográfica semelhante à da Europa, desde a revolução industrial, com uma expansão demográfica muito elevada no início, até se chegar aos dias de hoje, com taxas de reprodução inferiores às de reposição da população (cerca de 2,1 bebés por mulher fértil). Os países ditos do «Terceiro Mundo», que saíram do marasmo do subdesenvolvimento, tiveram um decréscimo natural dos nascimentos. Na verdade, o que os demógrafos temem não é a «bomba populacional», no sentido dos que profetizam - como Malthus - um crescimento populacional indefinido e superior à capacidade de sustentação da Terra, enquanto ecossistema global. Mas, uma catástrofe demográfica no sentido contrário, ou seja, uma diminuição da fertilidade, em paralelo com o aumento da longevidade, o que vai tornar difícil de perpetuar e de gerir uma sociedade como a que conhecemos, com os benefícios sociais que muitos dão como adquiridos, mas que pressupõem um sistema económico capaz de sustentar um certo modelo social.

Aquilo que se chama «condição humana» ou ainda «natureza humana», não é algo fixo, estático. Embora a nossa história biológica passada deixe as suas marcas nos corpos presentes e mesmo nos modos de organização presentes das sociedades humanas, nada deve ser dado como definitivo.

A espécie no seu todo e cada uma das populações humanas que a constituem, estão em permanente evolução. Podemos dar muitos exemplos de frequências de versões de genes (alelos de genes) que foram aumentando, ou diminuindo, nas populações ao longo dos tempos históricos: São mesmo muitas, as modificações sensíveis e com efeitos notórios no modo de vida dos contemporâneos. Os genes estão sempre a sofrer mutações; aqueles que são transmitidos à descendência, ao longo de gerações sucessivas, costumam conferir um coeficiente de sobrevivência positivo e serão conservados. Porém, certos genes podem ser deletérios num determinado contexto e serem benéficos, noutro. Mas, ao nível da população, a variedade genética é essencial. Temos uma diversificada capacidade de resistência inata aos agentes infeciosos. Esta resistência à doença por um certo agente infecioso, é - em geral - muito elevada quando, durante longos períodos, a população foi confrontada com esse agente, um efeito de seleção darwiniana típico.

A tecnologia das sociedades humanas cria situações novas, às quais as populações e os indivíduos respondem. Há aquisição cultural de muitos comportamentos, mas há também a extinção de outros. Esta evolução cultural é muito mais rápida que a evolução biológica. Tipicamente, deve-se contar com um lapso de tempo da ordem da dezena de milhares de anos, para uma população sofrer uma variação significativa (diminuição ou aumento) da frequência de genes, em consequência de mudanças ambientais. Isto é válido para a espécie humana e para as outras espécies estudadas.

Mas, a alteração do comportamento, que pode inclusive implicar a mudança radical no modo de vida da população, pode verificar-se no espaço de uma geração, ou até de menos. Por exemplo, os nativos da Amazónia, mais próximos de comunidades vindas de ambientes urbanos, adotaram um novo estilo de vida, abandonaram o modo de vida de caça e coleta. Poderia argumentar-se que houve uma intervenção, por vezes violenta, para coagir estes povos. Mas, isto aconteceu - também - quando as populações indígenas não foram sujeitas a tal coação. Escolheram adotar um outro modo de vida; mas elas seriam deixadas viver como os ancestrais, se assim o desejassem.
O mesmo padrão ocorre noutros casos, em populações ainda não integradas no modo de vida industrial, tais como as populações nómadas, etc. Em todos os casos estudados, a «aculturação», seja com ou sem aspetos de coação sobre a população, tende a ser muito rápida. A mudança de um modo de vida para outro, corta a população de certos saberes, separa os indivíduos e as comunidades de certas tradições: Pode-se lamentar isso, mas não se pode impedir que os povos escolham a forma de vida mais conforme com as suas aspirações.
No polo oposto, no seio de sociedades industrializadas, assiste-se à profusão de «subculturas». Estas, por vezes, duram somente uma geração (ou menos) mas, noutros casos, evoluem de forma autónoma e fixam-se como subconjunto estável. O processo de fracionamento nas sociedades industriais «maduras» é tal, que acaba por funcionar como contrapeso à tendência homogeneizadora nas mesmas sociedades.

Portanto, «a natureza eterna e imutável da humanidade», é apenas um efeito de ótica, de se observar uma estreita faixa da humanidade, no tempo e no espaço.

É o preconceito que nos leva a imaginar um psiquismo semelhante ao nosso, quer em civilizações ou culturas muito anteriores, quer nas contemporâneas, mas que estejam mais distantes culturalmente da nossa. Temos um modelo implícito, assumimos que tal modelo é generalizado, para além da nossa vivência singular, enquanto indivíduos participantes numa dada sociedade.

Não somos uma espécie individualista típica, como é o caso de algumas espécies animais que evitam a «mistura» com outros de sua espécie, excetuando no acasalamento: os felinos selvagens têm esse comportamento, na maioria das espécies.
Em muitas espécies, a participação do macho para a descendência é o mínimo que se possa imaginar. Quanto à fêmea, esta acasala, dá à luz e depois cria os filhotes, essencialmente sozinha. No polo oposto, temos diversas espécies de símios, incluindo símios antropoides, símios sem cauda incluindo o gorila, o chimpanzé, o bonobo e outras. São animais sociais, constituem bandos, têm uma hierarquia que não é rígida, pois está sempre a ser contestada, têm um comportamento de grupo no dia-a-dia. São animais que se poderia chamar de «naturalmente coletivistas». Nós somos oriundos da grande família dos símios antropoides, mas não somos tão rigidamente determinados no comportamento coletivista, como estes.

Assim, a contradição entre individualismo e coletivismo deve ser equacionada no tempo mais longo, no da evolução biológica. A adaptabilidade intrínseca da espécie humana é considerada, por muitos, ser resultado da evolução por neotenia*. A adaptabilidade permite que a nossa resposta seja mais individualista ou mais coletivista, consoante as circunstâncias. Não podemos - porém - esquecer que somos uma espécie essencialmente social.

Note-se que o criador de Robinson Crusoe percebeu perfeitamente isso. Ele dá como adquirido que o herói, embora consiga adaptar-se a uma vida solitária, está sempre ansiando por retomar o contacto com outros humanos e quando consegue encontrar um humano («Sexta-feira», em inglês Friday), fica muito feliz ; trata-o como companheiro, não como criado ou escravo. Daniel Defoe exprime uma constante da psique humana, que ele bem conhecia, ou seja, que somos feitos para ter um relacionamento social. Sem isso, somos incompletos.

A insistência em ideologias «individualistas» ou «coletivistas» corresponde, de facto, a fracas abordagens da complexidade dos indivíduos e das sociedades.

Não se concebe uma sociedade sem seres humanos individuais e capazes de se auto-determinarem. A sociedade de «robots» é  uma distopia (utopia negativa), não me parece ser um futuro possível. Mas, uma sociedade de indivíduos todos eles separados e isolados uns dos outros, por mais nobres que sejam seus sentimentos e valores, também não é uma sociedade saudável, onde se deseje viver. Esta seria, ao fim e ao cabo, como uma «sociedade» de felinos selvagens, como atrás referi. Mas, não somos felinos, estamos próximos das espécies mais sociais entre os mamíferos, os símios antropoides.

A evolução biológica é muito complexa. Uma característica dela, é que baliza a evolução posterior, nunca ao contrário: Não há verdadeira evolução «regressiva». Não podemos voltar atrás e modificar os antepassados dos humanos, mesmo admitindo que estes por cá andassem ainda, ou que tivéssemos um processo de engenharia genética de os fazer reviver, não só como indivíduos, mas enquanto comunidades.

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Neotenia, a propriedade de haver maturação de órgãos reprodutores e  reprodução efetiva, num estádio larvar. Segundo a «hipótese neoténica» os humanos seriam símios neoténicos, o que explicaria a sua capacidade de aprendizagem ao longo da vida e a sua flexibilidade comportamental, além de traços «fetais» como a escassez de pêlo, a fragilidade muito grande dos recém-nascidos e durante os primeiros anos de vida. A nossa cabeça, mais de acordo com as proporções de um feto de símio do que de um símio adulto,  está no limite do crescimento, face às dimensões da pélvis da mulher, dificultando o parto. O falecido biólogo Stephen Jay Gould foi um dos mais conhecidos defensores da hipótese neoténica para a espécie humana.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

UP, UP AND AWAY [5th Dimension] + COMENTÁRIO DE MB

 


O tempo dos balões está aí. Mas não inocentes veículos de turismo, sobrevoando pedaços da paisagem campestre. 

A China está muito ativa a enviar balões para a estratosfera: claro, não consegue controlar tudo, nesses engenhos que se elevam, porque mais leves que o ar, mas que dificilmente se podem dirigir com precisão. Assim, para avaliar as diversas camadas da atmosfera,  os seus parâmetros, as estações meteo do mundo inteiro enviam balões para a atmosfera. O seu destino quase certo, é perderem-se, serem arrastados pelos ventos. 

A histeria do nosso tempo é que transforma estes instrumentos em perigosos instrumentos de espionagem disfarçados de inócuos auxiliares de meteo. Enfim, sabemos que a panóplia da espionagem vai crescendo: aviões-espiões; satélites-espiões... mas, balões-espiões (??!): Acho que não é muito boa ideia. Há muiita histeria no ar. 

É clara a motivação dos que sopram ventos da discórdia entre as nações, em particular entre os EUA e a China, quando estava programada a viagem do secretário de Estado dos EUA, Blinken, para conversações ao mais alto nível, com Xi Jin Pin.

Podíamos dizer que a história do «balão-espia- chinês» é como «lançar um balão» para rebentar no momento certo, pondo em causa qualquer possibilidade de diminuição das tensões entre estes dois países gigantes, económicos e militares.

Diz-me quem beneficia com a situação, e eu te direi quem está na origem da campanha de medo.

PS: Os militares americanos (as altas patentes) frustrados de não conseguirem qualquer sucesso no terreno da Ucrânia, com as tropas mercenárias e os seus «brinquedos caros», decidiram dedicar-se ao «tiro ao balão», parece brincadeira, mas não é, verifiquem na notícia seguinte: https://caitlinjohnstone.com/2023/02/18/what-we-know-about-the-us-air-forces-balloon-party-so-far/

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

O «SEGREDO» DA ECONOMIA CAPITALISTA OCIDENTAL


Preço em euros do ouro (quilogramas) durante os últimos 20 anos

Não é por «culpa» de Putin, ou da guerra na Ucrânia, ou da pandemia de COVID. 
Os mercados assinalam, desde há vinte anos, a perda acelerada e constante de valor aquisitivo das diversas divisas. No caso do ouro, metal monetário (significa que é considerado «dinheiro»), a sua subida não é real, pois apenas reflete a descida exponencial das divisas-fiat, sejam elas consideradas «fortes» ou não, em relação ao dólar. O dólar é apenas uma das divisas que está a ser mais intensamente impressa, pelo banco central respetivo (Federal Reserve), sendo também o euro (pelo Banco Central Europeu) e outras divisas ocidentais. A média corporativa é dominada por interesses (capitais) relacionados com a economia financeirizada. Por isso, será muito improvável que possas encontrar este gráfico acima, e estes comentários, em tais órgãos de «informação».
 Assim, a elite do dinheiro vai continuando a fazer os seus jogos. Quem perde são os que veem seu salário, sua pensão de reforma, suas poupanças, «encolherem». A inflação, é simplesmente a excessiva impressão de unidades monetárias, em relação aos bens disponíveis nos mercados. Na linguagem comum diz-se que tal ou tal item, ou o «custo de vida» em geral, está mais caro
Na realidade, o que acontece é que a inflação é criada pelos banqueiros, quer os dos bancos comerciais, quer dos bancos centrais. São eles que criam as unidades de valor em brutal excesso em relação ao total de mercadorias disponíveis para venda, nos mercados. A consequência inevitável é o «aumento» do preço dessas mercadorias, medidas em termos de unidades de valor que estão permanentemente encolhendo. 
Como os ricos e seus conselheiros sabem isso, vão jogando de forma a aumentarem o valor REAL das suas posses, obtendo bens que não estejam sujeitos à erosão da inflação (como imobiliário, terrenos agrícolas, matérias-primas, objetos de arte ou de coleção, ouro e prata ), contra ativos cujo poder de compra vai sendo erodido pela inflação (todos os bens financeiros, tais como: o próprio dinheiro, ativos bolsistas, fundos, obrigações estatais ou privadas, derivados, etc.).
Portanto, as pessoas só têm uma maneira de não serem trituradas, das suas posses não serem anuladas, neste período de involução e destruição acelerada do capital, sob todas as formas: É investirem em bens não financeiros. Estes, aconteça o que acontecer, guardarão a sua utilidade, haverá sempre quem queira comprá-los, terão tendência no longo prazo, a conservar o valor real, ou seja, não medido em divisas fiducitárias. É sabido que TODAS as divisas acabam por ter o seu valor descendo até zero
          Valores das divisas-fiat (escala logarítmica) em função do ouro, retirado de AQUI

São inúmeros os exemplos que nos dá a História, talvez os mais célebres sejam a depreciação do denário, no final do império romano, dos «assignats», na revolução francesa, ou dos «reichmark», na república  de Weimar. Mas o ouro, por contraste, no longo prazo, mantém o mesmo poder aquisitivo
Um dos mais importantes índices, é o preço do petróleo. Pois bem, em termos de gramas ou onças de ouro, o preço do barril de petróleo pouco variou desde 1950 até hoje, como se pode ver pelo gráfico abaixo:


Mas, se vires o mesmo gráfico, em termos de preço em dólares / barril de petróleo, no mesmo intervalo de tempo, verás oscilações brutais e um crescimento geral do preço em dólares.
 
Na figura seguinte, vê-se o preço do petróleo em EUROS (cinza) e onças de OURO:



Como se pode verificar, o preço do petróleo em ouro, permanece quase constante neste intervalo de tempo. 
O petróleo e todos os outros combustíveis, têm uma importância tal, que seu custo vai influenciar todos os outros preços, desde matérias-primas, a transportes, a alimentos, etc. 
Os políticos começaram a modificar os critérios para medição da inflação, no início dos anos 80, para poderem disfarçar a real perda de valor das divisas e continuarem a fazer o mesmo jogo, de gastar muito mais do que a receita dos diversos impostos permitia. Assim, puderam levar a cabo políticas deficitárias, com orçamentos aldrabados, tal como os montantes dos PIB.
Vê a comparação entre os índices oficiais, e índices de inflação calculados pelo método usado ANTES  das ditas alterações metodológicas, nos anos oitenta (a azul, com a metodologia anterior às modificações; a vermelho, as inflação segundo os critérios oficiais):




Não é nada misterioso, o modo como os ricos conseguem ser mais ricos, com a ajuda da classe política, associada com a classe capitalista, em geral. Se a classe capitalista não consegue corromper um certo político, acaba por destruí-lo, de uma maneira ou de outra. 
É assim que as pessoas humildes, com seu esforçado trabalho alimentam o enriquecimento ilegítimo dos que já são muito ricos. Os jornalistas e outros «fazedores de opinião», também estão comprados, pelo que não se pode esperar que eles nos forneçam as informações que eu delineei acima. 
Se quiseres saber mais e melhor sobre a realidade, aconselho-te a fazer a tua própria pesquisa!