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terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

GOYA E O SONHO DA RAZÃO, REVISITADOS

 


As pessoas são alimentadas, ao longo da vida, por narrativas lineares. A ideia de que as sociedades e a tecnologia vão ser «mais isto ou aquilo». É muito divertido observar as publicações de magazines populares, que estimavam há cem anos atrás (ou menos), «como seria o futuro»: É um lugar-comum verem-se automóveis que também voavam, ou pessoas a viverem em apartamentos cheios de gadgets, embora as coisas que eram imaginadas, há várias dezenas de anos, como fazendo parte dos confortos da «modernidade», ou nunca se concretizaram ou, se vieram a existir, são de uma forma substancialmente diferente.

Sociologicamente, também, as projeções do futuro são lineares; há o alargamento - a quase generalização - do modo de vida do tipo «classe média», uma população de engenheiros, doutores, cientistas, profissões de elevado prestígio. É costume as pessoas projetarem os seus desejos no futuro. Mas é singular haver tão fraca imaginação, uma incapacidade, incluindo nos «futurologistas», em decifrar no presente aquilo que serão as linhas de força da próxima década, já para não falar do próximo século. 

As pessoas estão muito cientes de «verdades» que lhes foram transmitidas por inúmeros canais, a maior parte, sem relação nenhuma com a realidade das coisas. Mas, mesmo quando fazem um esforço genuíno para projetar as tendências observáveis no presente em direção ao futuro, incluindo o mais próximo, a regra é errarem redondamente. 

Assim, deveríamos estar completamente abertos a todos os campos de hipóteses, aquelas que conseguimos vislumbrar e mais ainda aquelas de que não fazemos a mínima ideia, no presente. 

Por vezes, tais  são as transformações, que as pessoas ficam completamente desnorteadas. A nossa mente é feita para apanhar a tendência dominante, projeta-la no futuro e construir a realidade a partir destas projeções. 

Mas, os fenómenos complexos ultrapassam - em muito - as capacidades de os equacionar, mesmo que sejamos «génios». Os fenómenos não se submetem a uma lógica linear. Linearidade ou «lei estatística» é o que a nossa mente gostaria que fosse. O nosso inconsciente está sempre a procurar a conformidade, porque é algo que nos tranquiliza, nos dá uma sensação (ilusória) de continuidade. Não somos feitos para incorporar o  insólito, o estranho, o irracional no nosso mundo. Assim, estamos com frequência de pé atrás face à novidade, sobretudo se tal novidade vem contradizer as «certezas», que nós julgávamos eternas.

Os ilusionistas, os demagogos, servem-se sistematicamente do efeito de «normalidade», que está tão arreigado no nosso psiquismo. Este efeito, é uma das principais fontes de equívocos, de avaliação errónea dos dados ao nosso dispor. 

Os sentidos podem ser facilmente «iludidos», mas note-se que eles não são a fonte da ilusão, do equívoco, nem tão pouco, a natureza exterior do que eles veiculam: Afinal, as ilusões ditas dos «sentidos», são antes ilusões da interpretação cerebral das imagens ou sons, etc. que nos vêm pelos sentidos.  Mesmo a imagem que seja «ambígua» à partida, não o será, de verdade: 

- Somos nós que construímos, com aquilo que recebemos dos sentidos, uma certa interpretação ou a descartamos, no momento seguinte, por outra, que nos pareça igualmente coerente. É sempre a reconstrução da imagem que fazemos no cérebro, que  desencadeia a interpretação ambígua. A imagem em si mesma, as manchas de cor e de sombra, os contornos, etc.,  são o que são. Não mudam: É o nosso dispositivo cerebral que é tomado pela interpretação ambígua. 

Porque razão continuamos iludidos, sabendo como é fácil nos ilusionarmos, sabendo também que as ilusões ou miragens, resultam de certa visão que nós próprios damos às coisas, não das coisas em si mesmas. 

Se fizermos uma reflexão profunda sobre a falibilidade dos sentidos e dos juízos que (conscientemente, ou não), fazemos a partir destes, é possível atingir o primeiro grau da sabedoria: 

- A nossa própria psique é que nos engana, na maioria das vezes. Não fazemos a análise adequada das informações que nos chegam pelos sentidos. Assim, somos nós próprios a fonte os enganos.

Se extrapolarmos para o domínio da vida política, económica, etc. verificamos que evoluímos como crianças que se enganam a si mesmas, julgando ver o objeto real no seu mero reflexo, estando convencidas de que a ausência de algo, significa que esse algo não exista realmente, etc.

Temos de reconhecer que, por muito «racionais» que nos consideremos, a maioria das pessoas vive fora da realidade. A realidade é reduzida à imagem distorcida, limitada da mesma. 

Por isso, não considero que exista um fosso intransponível entre o «patológico» e o «normal». De facto, as pessoas estão sempre a tomar os seus desejos por realidade. E quanto à pessoa doente mental: Está ela sempre «fora da realidade»? Mas o que é a realidade? Eu  tenho impressão que, em vez da realidade inteira, é «entronizada» a ideia comum que as pessoas têm da realidade. 

Pode uma mente genial ver aquilo que as pessoas vulgares não conseguem ver; pode também uma pessoa perturbada mentalmente ver algo que as outras não vêm. Mas, quem decide o que é lúcido e não lúcido? Realmente, é muito difícil estabelecer a fronteira entre o normal e o patológico. A História mostra-nos, vezes sem conta, que pessoas, perfeitamente ajuizadas, emitiram hipóteses, ou teorias, que foram descartadas como extravagantes ou pior, inspiradas pelo demónio. Mas, na verdade, eram perfeitamente racionais e lógicas. A sociedade, ao fim de algum tempo, terá assumido tais «elucubrações» como a coisa mais normal deste mundo.

A nossa neotenia abre-nos a porta dos possíveis. A nossa necessidade de proteção, de segurança, fecha essa mesma porta.  A criança que tem medo, tapa os olhos com as mãos, para não ver. A sociedade, ao longo dos tempos, tem feito o mesmo. Tem sido tentada por mundos desconhecidos, que lhe batem à porta; em simultâneo, tem sido afugentada pelo medo do desconhecido, das trevas cheias de monstros, de emanações fantasmagóricas dos nossos próprios medos.

  

 

domingo, 14 de agosto de 2016

A VERDADE OU O CONTRÁRIO DA SABEDORIA


Estamos fortemente condicionados para ver a realidade de um modo unidimensional, ou composto por «sins» e «nãos» apenas. Essa «realidade» que nós inteiramente construímos ou que nos construíram quando éramos pequeninos, está tão entrincheirada no nosso subconsciente, que se torna um exercício muito penoso e problemático vermo-nos livres dessa maneira de encarar as coisas.
Mas é de facto necessário nos colocarmos fora dessa forma de pensar confortável mas inteiramente equivocada, das «verdades» simples, dos «sins» e «nãos» que forram o nosso cérebro e que nos iludem. A nossa fantasia faz-nos vogar num mar desconhecido, com a ilusão de ter uma bússola. A bússola é a «verdade», a certeza, todas as certezas, as que são evidentes, as que não precisam de comprovação.
Nem tudo, porém, pode ser do domínio da verdade ou certeza. Muitas coisas estão aquém de tal estatuto de «certezas»: Tais são os factos, as situações, que nós procuramos deslindar, de uma forma ou de outra. Como fazemos isto?
 Normalmente através de uma série de «testes», que nós acreditamos permitir decidir aquilo que é «verdadeiro», daquilo que não é. Porém, os «testes de verdade» são meros reforços de nossos preconceitos, não são realmente testes cientificamente validados: 
- Quando obtemos um resultado contrário aos nossos preconceitos/convicções, simplesmente ignoramos ou damos como não pertinente ou como defeituoso o tal «teste de verdade». 
- Pelo contrário, se ele vier confirmar as nossas convicções/preconceitos, o teste e o resultado que dele emana é tido como válido.

Tragicamente, este tipo de pensamento, completamente equivocado, não é utilizado nos domínios exteriores a nós próprios, como a astronomia, a física, a biologia, etc. 
Este modo de pensar, absolutamente tendencioso, perverso mesmo, aplica-se sobretudo a todas as relações com os nossos próximos, familiares, amigos e colegas. É no domínio das relações pessoais que este género de autoconvencimento e de autocondicionamento opera. 
É assim que certa imagem interior desta ou daquela pessoa próxima se infiltra na nossa mente, fazendo com que tenhamos a ilusão de conhecê-la «por dentro». 
O nosso universo relacional está formado por uma teia de preconceitos, que nós tecemos constantemente em relação aos outros, mas também dos outros em relação a nós próprios. 
Por isso, muitas vezes ficamos admirados e angustiados, quando alguém mostra que afinal não nos compreende. Somos muito sensíveis às falhas de compreensão dos entes que nos são próximos. Estimamos que eles têm a chave da nossa personalidade, que nós não temos segredos para eles. 
Porém, as pessoas são completamente opacas umas para as outas. O que julgamos ser o outro, nada mais é do que o nosso reflexo subjetivo da imagem do outro, na nossa mente. Esta constatação é válida, não importa qual o grau de intimidade e de interação efetiva que exista entre nós e o outro.
Como confusamente ou instintivamente sabemos que nada é tão simples assim, que as nossas «verdades» são somente categorias que nos ajudam a dar um sentido à espessura impenetrável do real, muitos de nós vamos procurar uma forma ou outra de religião. 
Quando falo de religião, não estou a mencionar apenas as convencionais, as religiões organizadas, com igrejas ou comunidades estruturadas, com os seus ritos, suas tradições etc. Também me estou a referir a sistemas de crenças desde a astrologia, ocultismo, esoterismo até às diversas ideologias políticas, etc…
Precisamos desesperadamente de «certezas» infundidas por uma qualquer religião, precisamos desse conforto de estar dentro de determinada ortodoxia, nem que esta «ortodoxia» seja heterodoxa em relação à imensa maioria das pessoas que nos rodeia.
A necessidade é real, não é portanto para se desprezar, para se rejeitar com um movimento de ombros, como coisa absolutamente fútil e desprezível. Todas as civilizações têm a sua religião, ou religiões. A humanidade não construiu nenhuma estrutura social, até hoje, onde não esteja no centro, explícita, uma ou outra forma de crença religiosa. 
Alguns poderão objetar que as sociedades em que nós vivemos, as chamadas democracias de modelo ocidental, são isso mesmo, sociedades onde não reina nenhum modelo religioso, onde uma pessoa é livre de pensar o que quiser e de comunicar esse pensamento, sem haver qualquer impedimento, desde que isso não ponha em causa a liberdade dos outros. 
Pois aí está um credo religioso, o neoliberalismo, que se tenta naturalizar, fazendo com que as pessoas adotem como única visão possível e desejável uma sociedade regida pelo «ter» sobrepondo-se ao «ser», pela posse ou propriedade investida de valor absoluto, ao ponto de definir o valor dos indivíduos (o teu valor é o da tua conta bancária), uma sociedade que deífica o dinheiro, convencida de que «ele» existe, de que é a «coisa mais real» que existe. Chega-se ao cúmulo de atribuir vida, vontade própria, a esse símbolo…
Se desconstruirmos as teias de ilusões que nós próprios tecemos e que nos mantêem dentro de uma «matrix», poderemos experimentar inicialmente a sensação de estranhamento, de perda de referências, de desorientação. Mas se persistirmos, vamos nos libertar e teremos toda a vantagem nisso. 
O caminho a trilhar consiste em procurar, não a «verdade» das outras pessoas ou seres, mas sim a relação, as relações entre as coisas/seres umas com as outras e a interação dessas coisas/seres connosco próprios. 
Se adotarmos este ponto de vista filosófico, muito simples e fácil de aceitar, teremos ainda que pô-lo em prática, no quotidiano e isso afigura-se mais difícil. Mas as dificuldades serão compensadas pela capacidade de lidar melhor com a realidade, de não nos auto iludirmos com as «realidades» que fabricamos dentro das nossas mentes, mas que não são reais.
A nossa vida torna-se então mais harmoniosa, as nossas decisões mais sábias e mais apropriadas às circunstâncias particulares das nossas existências.
Queríamos que «a realidade se conformasse com as nossas convicções», não podia ser maior o engano. Ao nos livrarmos dessa ilusão, livramo-nos dos medos, das angústias, das ansiedades, pois descobrimos a causa desses sentimentos.