[continuação dos artigos nº1 e nº2, neste blogue]
A construção de um consenso é fundamental para fazer funcionar a sociedade capitalista; esta possui muitas articulações da economia com o Estado.
A construção de um consenso é fundamental para fazer funcionar a sociedade capitalista; esta possui muitas articulações da economia com o Estado.
Seria por demais ingénuo supor que existe o Estado, por um lado, com um certo número de funções eletivas e onde as vontades dos cidadãos - supostamente - se traduzem numa determinada política e, por outro, empresas, o mundo da economia, onde empresários e gestores decidem e os empregados executam.
Na realidade, a imagem, que as pessoas têm da organização política e económica do país e do mundo, é distorcida. Mas, isso é intencional, é resultante da ocultação e deformação constantes.
É esta ausência de lucidez da generalidade dos cidadãos, justamente, que cria um consenso mínimo e possibilita esta governação (pseudo) democrática.
A razão desta estratégia é muito fácil de compreender: As classes dominantes, em todo o mundo, sabem que é mais fácil manter uma fachada de democracia, do que exercer sua ditadura sem máscara.
Porém, fruto das condições da crise que se generaliza, a narrativa do poder está constantemente a entrar em contradição com a sua prática. Tal constitui sinal claro de que o Estado de «democracia liberal» tem os seus dias contados.
A emergência recente de tendências ditas «populistas», sobretudo na Europa, parece-me um último recurso para reconstruir o tal consenso, fundamental para a conservação do Estado e do sistema capitalista.
As pessoas estão numa situação de ignorância na prática, sobre os mecanismos da política. Embora seja vista como algo de exterior, apercebem-se dos efeitos graves que ela exerce sobre suas vidas.
Então, imaginam que haverá alguém que os compreende, que será seu porta-voz e que não estará corrompido: uma parte da população adere, entusiasta, a tais movimentos e personagens, mais do que às ideologias ou programas políticos, na esperança ingénua de que sejam pessoas íntegras, incorruptíveis. Os partidos e líderes populistas ascenderão então ao poder.
Mas, chegará um dia em que estas forças populistas, confrontadas com o exercício do poder, terão de atender às pressões do grande capital e do «Estado profundo» (corpos não eleitos: funcionários, polícias, militares, tribunais), com capacidade de bloqueio, quando não mesmo, de derrube do governo.
Sujeitos a esta chantagem, os políticos populistas terão de reagir, de uma ou doutra maneira. Mas, em geral, não adotarão medidas extremas para reprimir violentamente a oposição no interior da máquina estatal.
Vão preferir compor com elas; isso significa que certas medidas prometidas não serão tomadas, que haverá uma redefinição discreta de objetivos, tentando salvar a face com explicações sobre a conjuntura económica, etc.
Dececionados com o desempenho daqueles que ingenuamente tomaram como seus salvadores, as pessoas não equacionarão o facto de que a crise é sistémica e global, pelo que não haverá um qualquer retorno à «democracia pura» e ao «capitalismo puro» que, aliás, nunca existiram.
Com o agravamento da crise económica, com o desespero da classe média pauperizada e a rutura completa do contrato social, que permitia manter os economicamente mais fragilizados fora das situações extremas de pobreza, criam-se condições para uma mudança radical.
Porém, esta mudança pode bem ser em direção a um totalitarismo. Poderá ser um totalitarismo, com características próprias, mas igual - na essência - aos outros totalitarismos, historicamente conhecidos.
Não apenas é realista este cenário, como está a acontecer diante dos nossos olhos: Basta ver a deriva autoritária de vários regimes, ditos de democracia liberal. Ocorre, não em países periféricos, mas em praticamente todo o chamado «Ocidente» (América do Norte, Europa, Japão, Austrália...).
Somos testemunhos, em muitos países, de um deslizar para um «fascismo cinzento», ou seja, um autoritarismo sem clara e definida viragem do discurso ideológico, guardando aparências de governo e instituições formais, mas onde o verdadeiro poder está nas mãos da oligarquia que controla tudo: meios de produção, média subserviente, aparelho de Estado, partidos políticos.
Penso que muitas pessoas estão completamente desprevenidas e, portanto, incapazes de se defenderem. Para isso contribui a viragem das forças de esquerda, parlamentares ou não-parlamentares, para posições reformistas e de cogestão do capitalismo e do Estado. Nesta deriva, desde os anos oitenta do século passado, elas evoluíram de reivindicações de classe e de lutas com o objetivo explícito da mudança em direção ao socialismo, para reivindicações hedonistas, identitárias e que não colocam sequer a hipótese de mudança geral da sociedade, seja ela pacífica ou não.