terça-feira, 20 de novembro de 2018

NÓS, OS PEQUENOS DEUSES (nº3)

[continuação dos artigos nº1nº2, neste blogue] 

A construção de um consenso é fundamental para fazer funcionar a sociedade capitalista; esta possui muitas articulações da economia com o Estado. 
Seria por demais ingénuo supor que existe o Estado, por um lado, com um certo número de funções eletivas e onde as vontades dos cidadãos - supostamente - se traduzem numa determinada política e, por outro, empresas, o mundo da economia, onde empresários e gestores decidem e os empregados executam. 

Na realidade, a imagem, que as pessoas têm da organização política e económica do país e do mundo, é distorcida. Mas, isso é intencional, é resultante da ocultação e deformação constantes. 
É esta ausência de lucidez da generalidade dos cidadãos, justamente, que cria um consenso mínimo e possibilita esta governação (pseudo) democrática. 
A razão desta estratégia é muito fácil de compreender: As classes dominantes, em todo o mundo, sabem que é mais fácil manter uma fachada de democracia, do que exercer sua ditadura sem máscara. 
Porém, fruto das condições da crise que se generaliza, a narrativa do poder está constantemente a entrar em contradição com a sua prática. Tal constitui sinal claro de que o Estado de «democracia liberal» tem os seus dias contados.

A emergência recente de tendências ditas «populistas», sobretudo na Europa, parece-me um último recurso para reconstruir o tal consenso, fundamental para a conservação do Estado e do sistema capitalista. 
As pessoas estão numa situação de ignorância na prática, sobre os mecanismos da política. Embora seja vista como algo de exterior, apercebem-se dos efeitos graves que ela exerce sobre suas vidas. 
Então, imaginam que haverá alguém que os compreende, que será seu porta-voz e que não estará corrompido: uma parte da população adere, entusiasta, a tais movimentos e personagens, mais do que às ideologias ou programas políticos, na esperança ingénua de que sejam pessoas íntegras, incorruptíveis. Os partidos e líderes populistas ascenderão então ao poder.

Mas, chegará um dia em que estas forças populistas, confrontadas com o exercício do poder, terão de atender às pressões do grande capital e  do «Estado profundo» (corpos não eleitos: funcionários, polícias, militares, tribunais), com capacidade de bloqueio, quando não mesmo, de derrube do governo. 
Sujeitos a esta chantagem, os políticos populistas terão de reagir, de uma ou doutra maneira. Mas, em geral, não adotarão medidas extremas para reprimir violentamente a oposição no interior da máquina estatal. 
Vão preferir compor com elas; isso significa que certas medidas prometidas não serão tomadas, que haverá uma redefinição discreta de objetivos, tentando salvar a face com explicações sobre a conjuntura económica, etc.
Dececionados com o desempenho daqueles que ingenuamente tomaram como seus salvadores, as pessoas não equacionarão o facto de que a crise é sistémica e global, pelo que não haverá um qualquer retorno à «democracia pura» e ao «capitalismo puro» que, aliás, nunca existiram. 

Com o agravamento da crise económica, com o desespero da classe média pauperizada e a rutura completa do contrato social, que permitia manter os economicamente mais fragilizados fora das situações extremas de pobreza, criam-se condições para uma mudança radical. 
Porém, esta mudança pode bem ser em direção a um totalitarismo. Poderá ser um totalitarismo, com características próprias, mas igual - na essência - aos outros totalitarismos, historicamente conhecidos. 

Não apenas é realista este cenário, como está a acontecer diante dos nossos olhos: Basta ver a deriva autoritária de vários regimes, ditos de democracia liberal. Ocorre, não em países periféricos, mas em praticamente todo o chamado «Ocidente» (América do Norte, Europa, Japão, Austrália...). 
Somos testemunhos, em muitos países, de um deslizar para um «fascismo cinzento», ou seja, um autoritarismo sem clara e definida viragem do discurso ideológico, guardando aparências de governo e instituições formais, mas onde o verdadeiro poder está nas mãos da oligarquia que controla tudo: meios de produção,  média subserviente, aparelho de Estado, partidos políticos.

Penso que muitas pessoas estão completamente desprevenidas e, portanto, incapazes de se defenderem.  Para isso contribui a viragem das forças de esquerda, parlamentares ou não-parlamentares, para posições reformistas e de cogestão do capitalismo e do Estado. Nesta deriva, desde os anos oitenta do século passado, elas evoluíram de reivindicações de classe e de lutas com o objetivo explícito da mudança em direção ao socialismo, para reivindicações hedonistas, identitárias e que não colocam sequer a hipótese de mudança geral da sociedade, seja ela pacífica ou não.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

NÓS, OS PEQUENOS DEUSES (Nº2)

No primeiro texto, a minha crítica centrava-se mais numa perspectiva antropológica e ecológica, da insustentabilidade do ecossistema global na idade do antropoceno. 
Hoje, porém, irei centrar mais a minha crítica na lógica própria do modo de produção capitalista. 
Ao fazer esta análise crítica, desejo pôr em evidência que a própria lógica do capitalismo é condutora, inevitavelmente, à anulação de suas condições de funcionamento. 
Com efeito, a lógica do capitalismo é a da acumulação: acumulação de capital, sob suas diversas formas, para ele se reproduzir, originando mais capital. 
É um sistema que precisa de consumir cada vez mais e que não pode prescindir de maximizar o lucro, a cada etapa e por cada ator do processo. 
É esta a lógica intrínseca: os atores que não saibam ou possam assumir esta mesma lógica, acabam - mais cedo ou mais tarde - por ser varridos do jogo, por outros com mais agressividade, mais tenacidade, maior apetência para o lucro, etc.  

A lógica do capital penetrou todos os «poros» da sociedade, não havendo realmente nenhuma classe, nenhum grande sector da sociedade, que esteja disposta a coletivamente reivindicar outra forma de organizar a produção, o consumo e a própria a vida. 
Os trabalhadores reivindicam mais salário ou melhores condições de trabalho, não a abolição da sociedade baseada no trabalho, enquanto forma de exploração.

As disfunções que se observam têm muitas causas próximas, mas existe uma causa fundamental, a meu ver: a ideia generalizada de que a posse, a propriedade, a riqueza material, consiste na forma de se obter felicidade e segurança. 
Isto significa que as pessoas sentem justificação para fazer tudo com vista a obter essa tal riqueza material. 
Além disso, não limitam nunca a sua acumulação de riqueza, tal como o próprio sistema capitalista, que moldou suas mentalidades: «quanto mais, melhor; dinheiro, nunca é demais»... 
A valorização da acumulação é muito típica do capitalismo em todas as suas etapas, não apenas da presente. Sem essa procura constante de acumulação de riqueza e de poder, não haveria impulso inicial para construção das empresas pelos empresários, nem para uma total identificação à lógica da empresa, dos seus quadros médios e superiores. 

O espírito acumulador estende-se a todos os atores, desde os trabalhadores realizando as tarefas mais humildes, até ao topo da hierarquia social e empresarial. Para a generalidade das pessoas, não possuir emprego, ou outro meio de gerar dinheiro, de modo a que possam participar na sociedade de consumo, constitui a maior ameaça, o maior medo. 

Como vimos no artigo anterior, a questão principal que se coloca, é em relação à sustentabilidade ecológica de um tal sistema. Para o «bom» funcionamento do capitalismo é preciso sempre um «crescimento económico», seja lá como for. 
No século XIX, durante a primeira fase da revolução industrial, havia muitos recursos inexplorados, tanto energéticos como outras matérias primas, muitas delas vindas das colónias, possuídas por potências europeias. 
Além disso, não havia escassez de mão-de-obra disponível para ser explorada.
Aquando da segunda etapa, do «Fordismo» e do «Toyotismo», era essencial que os operários tivessem uma participação efetiva no consumo dos produtos da sociedade industrial, pelo que tiveram acesso a confortos e bens materiais, anteriormente reservados apenas aos extratos mais ricos (automóveis, eletrodomésticos, etc).
O capitalismo, presentemente, na sua fase de financeirização extrema (predomínio absoluto dos bancos sobre os outros ramos da atividade económica, subordinação do capitalismo industrial ao capitalismo financeiro), com a diminuição ou a impossibilidade de geração de valor,  recorre a todas as artimanhas para empurrar as pessoas a consumir a crédito, muito para além das suas verdadeiras possibilidades, até à insolvência. 
O mesmo se passa com os Estados, com as finanças públicas, empurradas para uma dívida cada vez maior. 
Mas esta dívida é, no fundo, um imposto diferido, um imposto que será cobrado sobre a sociedade em geral, de uma ou outra forma, no futuro. Este esquema perpetua-se porque os políticos querem manter-se no poder e as pessoas não questionam esse poder, se tiverem mais (ou a ilusão de mais) no imediato.
Portanto, as condições de funcionamento «normal» de uma sociedade e economia capitalistas são insustentáveis em si mesmas, visto que não existem recursos infinitos, nem apetência ou capacidade infinita de os consumir. As contradições vão-se agudizando, em relação à sustentabilidade ecológica, mas também entre classes sociais: Observa-se, nestes últimos 20 anos, a acumulação cada vez maior de riqueza nas mãos duma pequena oligarquia, perante um número cada vez maior de destituídos, de marginalizados do processo de consumo.
A mudança torna-se inevitável; mas tanto pode ser para melhor, como para pior. Não existe determinismo na evolução das sociedades.

domingo, 18 de novembro de 2018

NÓS, OS PEQUENOS DEUSES (nº1)

Chegámos ao cúmulo da contradição capitalista. A contradição não significa que ele esteja em vésperas de se desmoronar. Com efeito, não é um regime ou um edifício que se poderia simplesmente derrubar ou desmontar, mas antes um modo de produção, algo que penetra em todos os «poros» da sociedade. 
Seria um trabalho gigantesco e completamente fora das minhas forças retraçar a história da humanidade desde os seus primórdios, até aos nossos dias. Outros o fizeram e seus grandes frescos tornaram-se obsoletos, em pouco tempo. Aliás, assiste-se hoje à constante renovação de conceitos e noções na História, em particular da História dos povos sem escrita mas, igualmente, em novas abordagens do passado mais recente. 

Porém tento, através de um olhar de biólogo, esclarecer alguns aspetos da questão. 
O fenómeno antropológico mais notório, na minha perspetiva, é a sobredimensão da intervenção humana nos ecossistemas. 
Ela teve efeitos catastróficos já desde muito cedo, nos tempos do Neolítico, em que imensas florestas foram simplesmente queimadas para dar lugar a solos agrícolas. No entanto, a tendência depredadora acentuou-se nos últimos cem ou duzentos anos, por comparação com os dez ou doze mil anos desde o neolítico. Houve uma real transformação em todos os ecossistemas e no ecossistema planetário. O fenómeno atingiu um novo patamar, em que os mecanismos essenciais para a renovação dos equilíbrios naturais deixam de funcionar. 
Por outras palavras, assiste-se a uma catástrofe de grandes dimensões e gravidade para a própria existência da humanidade enquanto tal, para a existência de civilização. 
Mas, isso deixa indiferentes grandes e pequenos, poderosos e humildes, mesmo que - no fundo - o saibam. 
Escudam-se numa atitude fatalista - «é assim, é verdade, mas nada de significativo podemos fazer para inverter a marcha» - ou numa denegação - «haverá sempre saída, uma transformação pela tecnologia, que resolverá esses problemas». Ambas as atitudes mentais fornecem o alibi para as pessoas continuarem a consumir e a sacrificar ao deus do dinheiro a melhor parte das suas vidas.  

A existência de uma enorme força entrópica, destruidora, devido à atividade humana, tem sido expulsada para as margens do sistema. O sistema não nos parece entrópico, pois nele estamos banhados e visto que a entropia aumenta, não no nosso entorno imediato, mas nas suas margens. Por margens, aqui, entenda-se os ecossistemas naturais e o seu funcionamento, cada vez mais defeituoso, ao ponto de que certas partes experimentam degradações irreversíveis; extinção de espécies em escala semelhante à de outras grandes extinções geológicas, a contaminação dos oceanos e dos solos com todo o tipo de poluentes, pondo em risco a manutenção da própria vida em geral . 
Mas também, o caos/entropia tem sido relegado para uma marginalização dos próprios humanos nas sociedades; a indiferença do chamado «Primeiro Mundo» à crescente pauperização nos «Terceiro e Quarto Mundos». Na própria periferia das sociedades ditas afluentes, reproduz-se esse fenómeno, um número crescente de pessoas que não têm o suficiente para sustentar uma vida digna, cujas vidas foram destroçadas pelo desemprego, a violência social e moral, com o seu cortejo de sequelas, o alcoolismo, as drogas, etc... Estas pessoas são simplesmente «ignoradas», enquanto as restantes continuam nas suas atividades, no seu quotidiano. 

No próprio interior dos indivíduos, esconde-se o medo, o medo de ser excluído, de não corresponder ao padrão de exigência que se impõe a todos, através duma norma social não escrita. 
Observa-se o crescimento das neuroses e psicoses, além de novas patologias sociais, com a criação e reforço de todo um conjunto de reflexos ou padrões comportamentais: 
- A excessiva preocupação com a estética pessoal, a formatação mental completa por imersão em «lixo informativo», em videojogos que mergulham as pessoas em universos ficcionais, uso aditivo e compulsivo de telemóveis, etc. Estas novas patologias, somam-se às mais «tradicionais» frequentemente, num mesmo indivíduo.
Em tal sociedade, o «ecossistema interno» dos indivíduos, à imagem do ecossistema exterior em que estão inseridos, acaba por se tornar disfuncional, em todos os planos: na psique, nos afetos, na mente, na razão, no senso moral, na ética. 

A mais vulgar reação, quando as pessoas se apercebem de que «qualquer coisa vai mal» é apelarem para um sistema de explicação mítica global, seja duma religião organizada no sentido tradicional, ou outro sistema de crenças sem explícita referência ao divino, como as ideologias. Assim, libertam-se de parte das suas angústias, mas à custa da perda da sua auto-determinação, da sua capacidade de examinar livre e maduramente as causas dos males que as afligem.
As pessoas, cujas vidas se tornaram horrivelmente solitárias e depressivas, vão procurar satisfação e proteção em grupos «tribais»: por exemplo, os grupos de adeptos dos clubes de futebol (as claques), onde partilham símbolos, mitos, cerimónias religiosas, comportamentos ritualizados, etc.  
Mas também se pode verificar os mesmos reflexos noutras tribos urbanas, desde grupos de afinidade partilhando espaços e um modo de vida alternativo, até aos gangs de delinquentes, ou grupos paramilitares neonazis.
Todas estas pseudorespostas, são afinal tentativas não conscientes de superar  simbolicamente o que há de disfuncional em suas vidas, no seu sentir e pensar.

Há uma evidência, que todos os poderes se esforçam por ocultar: São, justamente,  as condições dessa violência disseminada por toda a sociedade, que permitem a continuidade e reforço da exploração. 
Os fenómenos, individuais ou sociais, acima mencionados, são consequência dessa tal violência social surda, dessa exclusão de um estatuto de cidadania real e da dignidade humana na sua plenitude, em milhões de indivíduos. 

O medo é o principal factor «organizador» desta sociedade. 
As pessoas encontram-se - sem perceberem porquê, nem como - isoladas, sem vínculos, sem trabalho regular, sem reais hipóteses de melhorar.  
A escola tem como função fazer com que a maioria se resigne a essa marginalização, tem como função criar o fracasso, o insucesso. A interiorização do fracasso é condição para a manutenção das desigualdades sociais, para a imposição da exploração.




sábado, 17 de novembro de 2018

ASSASSINATO PREMEDITADO DE ASSANGE?

Que esta época seja das mais contrárias à liberdade de informar e ser informado tem realmente uma forte confirmação em todo o percurso da perseguição contra Julian Assange, «culpado» afinal de revelar os podres, os segredos, que os poderosos pretendiam esconder das massas, de fazer afinal o que os jornalistas profissionais fizeram em tempos idos e deixaram de fazer, após serem (quase todos) incorporados na máquina de triturar cérebros e vontades chamada «mainstream media».

Uma imprudência acidental da máquina judiciária dos EUA permitiu desvendar a acusação secreta contra Assange e Wikileaks, que «justificaria» a sua extradição, entrega e condenação a um pseudo-aparelho de justiça tão enviesado como a Inquisição da Igreja Católica, em tempos de cruzadas contra os heréticos e os «marranos»...

 Leia-se « U.S. Optimistic It Will Soon Prosecute WikiLeaks Founder Julian Assange»:
http://www.informationclearinghouse.info/50615.htm

e também, «Trump Quietly Orders Elimination of Assange» :
http://www.informationclearinghouse.info/50620.htm


A tentativa de calar - por todos os meios possíveis - Wikileaks e Julian Assange, não esmoreceu nem um pouco. Esperam simplesmente que o crime seja feito sem que levante a suspeita na opinião pública de que se tratou de um deliberado e continuado atentado à sua vida, à sua integridade física e mental. 
Por isso, é muito importante divulgar, por todos os meios ao nosso alcance, estes factos. Não é apenas a vida e liberdade de Assange que estão em jogo, mas igualmente toda a liberdade de informar e ser informado. 
Se eles conseguirem os seus intentos terão ganho, pelo menos provisoriamente e nós, os cidadãos em geral, no mundo inteiro, teremos perdido, mais uma vez. 
Por isso, quero ter esperança de que as pessoas serão suficientemente lúcidas para desmascarar, denunciar, esta profunda injustiça, esta perseguição cruel contra um homem que não cometeu nada mais, afinal, senão o «crime» de informar sobre os crimes e desvarios dos poderosos.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

COMO É QUE O IMPÉRIO DOS EUA TRATA OS SEUS «ALIADOS»

Escrevo este artigo como comentário do muito bem informado e lúcido artigo de Grete Mautner, abaixo:

Não irei repetir os argumentos desta autora, com os quais estou geralmente de acordo, apenas tentarei acrescentar algumas reflexões originais.

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As pessoas têm tendência a ver com olhos favoráveis o papel dos EUA em relação à política europeia. No entanto, a memória é curta, basta relembrar o caso Gládio, que está na origem dos «anos de chumbo» em Itália, ou o constante e dedicado apoio à aliança de Portugal de Salazar e Caetano, com a África do Sul do Apartheid, que foi o eixo estratégico dos EUA para combater a «ameaça soviética» em África e conduziu ao prolongamento de uma guerra insustentável e perdida à partida para as forças portuguesas. Pois os líderes políticos desta «grande democracia» americana, não têm muitos motivos de se alegrarem com uma independência, mesmo que relativa, do bloco UE, que se poderia autonomizar ainda mais do ponto de vista económico, político e militar-estratégico em relação ao «Big Brother» dos EUA. 
A imagem da diplomacia dos EUA é a do «bully» que ameaça e faz chantagem permanente com adversários e aliados. Vezes sem conta, os EUA fizeram exactamente o necessário para colocar europeus uns contra os outros, como no caso do golpe arquitectado, financiado e monitorizado pelo governo de Obama, que derrubou um governo constitucional na Ucrânia, pondo no poder líderes de movimentos de extrema-direita e a tomada de muitas riquezas estratégicas deste país pelos interesses americanos. A imposição toma o lugar da diplomacia num país sem cultura de verdadeira consensualização, de harmonização de interesses: os EUA, sempre que podem, tentam impor a sua «lei» ao resto do mundo. Veja-se o caso das sanções contra o Irão e o «torcer da mão» de uma UE sem verdadeiro contra-peso para essa chantagem (uma expressão de Obama, usada em relação a adversários, mas que estaria bem também em relação a «amigos»). 
Acumulam-se os sintomas de que a UE vai ser objecto de manobras para a desestabilizar, já que esta se atreveu a pronunciar o tabu máximo: a possibilidade de construção de uma defesa autónoma, sem necessidade de recurso à NATO e portanto, a prazo, o definhamento e finalmente a total secundarização, senão a morte, da aliança estratégica agressiva. 
No plano financeiro, a guerra surda entre o dólar e o euro já existe, com a subida do juro (iniciada há mais de um ano) das taxas da FED, enquanto os das taxas equivalentes do BCE se mantinham próximos de zero; isto foi drenar muitos capitais para os EUA. Mas não é tudo:
- As patentes e escandalosas benesses fiscais de que as grandes firmas americanas beneficiam (como Apple e Microsoft) no espaço da UE não seriam toleradas a empresas da própria UE, 
- O esforço de guerra que os europeus têm efectuado nas aventuras neocoloniais em África, têm drenado para essas operações, sob a bandeira da NATO, muitos biliões, ao longo dos anos. 
- A presença da NATO no Afeganistão, um fracasso militar (americano principalmente) que se prolonga há 17 anos, tem como resultado a mobilização de forças europeias, desde as mais ricas, como a Alemanha, até às mais pobres como Portugal.  

De facto, a geração de políticos medíocres e oportunistas, que tem o poder numa grande parte dos países europeus, tem favorecido o jogo americano. Mas, no geral, um «bully» tem tendência a exagerar e a causar reacções naqueles que escolhe como vítimas: a opinião pública de países centrais na UE cada vez mostra mais claramente o seu repúdio por líderes submissos e que prestam vassalagem aos EUA. Por este motivo, mesmo os mais servis vassalos têm de dar um ar de independência, de vez em quando. 
Muito se fala nos media europeus de uma onda de populismo misturando este com o «trumpismo», mas que são realidades e conceitos distintos. 
O que os chamados «populistas» europeus pretendem é substancialmente diferente do que pretende a liderança do império. 
Aqueles pretendem um reapossar dos comandos do governo em mãos nacionais, contra a oligarquia de Bruxelas que tem desempenhado o papel de poder imperial «subordinado», ou seja enquanto vassalo directo de Washington. 
Ao contrário, Trump pretende que os EUA voltem a um relativo isolacionismo, abandonando a ingerência permanente como «polícia» mundial, assim como uma reindustrialização do país, podendo assim livrar-se da dependência em que se encontra em relação à China, a qual se tornou uma espécie de «fábrica do Mundo».
Em qualquer instância, o comportamento futuro dos EUA em relação aos seus «aliados» será o mesmo que tem sido até agora: 
- Afundem-se as economias da zona Euro, para que o dólar e os mercados dos EUA possam flutuar e até prosperar com o sofrimento alheio. 
- Uma Europa fraca do ponto de vista económico não poderá ser capaz de forjar um exército poderoso que dispense a presença «amiga» das bases da NATO. 
Aliás, o constante acirrar da tensão, usando constantes provocações militares contra a Rússia, tem como objectivo mostrar aos europeus que eles continuam a «precisar» das tropas americanas para sua defesa, como no tempo da Guerra Fria nº1.
Uma Europa dividida por rivalidades e querelas mas temerosa de desagradar aos seus senhores, será sempre terreno propicio para a diplomacia americana, tal como ela costuma fazer com países do «Terceiro Mundo» na África, Médio-Oriente, América Latina, etc. Para os olhos dos imperialistas dos EUA, a Europa é um espaço a manter sob seu domínio.

Os europeus são sistematicamente «deitados por debaixo do autocarro» pelos seus aliados:
- São os que têm de aguentar com o pior das crises económicas, para usufruto de Wall Street, 
- São os que aguentam com o peso económico e também militar estratégico de uma ocupação permanente do território com tropas estrangeiras (as bases da NATO), colocando esses países automaticamente na mira de um ataque nuclear preventivo por parte dos russos (o que se torna mais provável com a constante arrogância e provocação que tem sido a política americana em relação a estes)
- São os que têm de aguentar na sua fronteira com situações explosivas como a guerra civil da Síria com o seu cortejo de destruição e de violência, os refugiados, as crises de chauvinismo e a subida da extrema-direita aproveitando essas circunstâncias ou a secessão das regiões do leste da Ucrânia. Em ambas as situações é clara a interferência pesada de Washington, quer na sua eclosão quer na sua manutenção.
- São os que vão como «subcontratantes» para países de África como o Mali, a Rep. Centro-Africana, e outros, para manter no seu posto governos completamente submissos ao «Ocidente» a pretexto de combater grupos aparentados com a Al Quaida (mas, entretanto os grupos do tipo Al Quaida, na Síria são considerados «rebeldes moderados», visto que são úteis para combater Assad).

Infelizmente, tenho de ser pessimista no curto/médio prazo, pois não vejo nas forças que estão irrompendo no cenário, na maior parte dos casos, mais do que oportunistas explorando um sentimento de profunda frustração das massas, de desencantamento pelo paraíso do consumismo como a UE dos anos 80 e 90 se apresentou, de medo de perda da identidade e que vai de par com uma completa incompreensão do papel dos dirigentes no próprio desencadear das guerras causadoras de ondas de refugiados. Um cenário de nacionalismo «genuíno» é tão impossível como um voltar para trás no tempo, para o passado, para o século XIX. Com efeito, a afirmação duma nação com a sua expressão de comunidade política,  está historicamente correlacionada com a aliança precária entre classes - como a pequena, a média e a grande burguesia - para explorarem melhor e sem concorrência, os recursos dentro de cada país (a sua própria classe operária, inclusive). Mas o capital hoje em dia está verdadeiramente internacionalizado, nem sequer poderá haver um capitalismo auto-suficiente no mais rico e poderoso país do mundo, os EUA, quanto mais em pequenos ou médios países. Aliás nem isso seria bom, quer em termos de desenvolvimento humano, quer em termos de conservação da paz entre os povos.
Mas, este cenário de avanço dos nacionalismos tem como vantagem -para os EUA- fraccionar politicamente o espaço da UE. Para os EUA, isso vai tornar mais fácil subjugar o seu continente «aliado» e rival, a Europa. 
É possível que este seja o cenário em que se desmorone a UE ou em que esta seja relegada a mera união aduaneira.


quinta-feira, 15 de novembro de 2018

A TRAGI-COMÉDIA DO BREXIT

                        

Conforme eu tinha vaticinado há alguns meses, as forças centrífugas predominam nas fileiras pró-governamentais da Grã-Bretanha. Teresa May conseguiu um acordo de saída da UE que tem tudo para enfurecer uns e outros: uns, que votaram a favor do brexit, porque o acordo mantém em vigor muitas das leis e disposições que estiveram na base do descontentamento que levou ao voto no brexit. Outros, os pró-UE, que vêem que a associação com a UE vai continuar, apenas sem possibilidade dos britânicos terem voz e influência no seio dos órgãos de poder da mesma. 

Consequência imediata, 4 ministros do governo May demitiram-se, incluindo o próprio ministro encarregue do brexit. Se eu compreendi, o que se segue será que Theresa May deverá submeter ao parlamento um novo gabinete, que deverá votar - ou não - a nova composição do mesmo. Em alternativa, Theresa May pede à Rainha a dissolução do parlamento e eleições antecipadas.   
Os negócios em geral, especialmente os novos investimentos, serão afectados, pois este cenário deverá conduzir a um período de incerteza. 
Os EUA, que sempre contaram com o Reino Unido como o «cavalo de Tróia» dentro da UE, serão beneficiados no imediato, em termos de taxas de juro das suas «treasuries» e dum aumento do dólar, visto a instabilidade no continente europeu desencadear sempre um «reflexo de protecção» dos capitais em direcção aos EUA. 
A UE, ou melhor, aquilo que resta da UE, será mais frágil, apesar da Comissão Europeia ter averbado uma vitória parcial nestas negociações. Mas esta vitória pode transformar-se rapidamente em «vitória de Pirro», pois também não vejo este resultado como dissuasor de outros países seguirem as pisadas da Grã-Bretanha. 
A incapacidade da UE se definir como um super-estado federal, devido a razões profundas, não devido a caprichos de seus dirigentes, está na raiz de todos os problemas. 
Se não existe uma moeda comum sólida é porque a Alemanha se  negou sempre a colectivizar as dívidas soberanas europeias, porém tem arrecadado - em anos sucessivos - superávits que apenas são possíveis em face dos défices dos seus parceiros de «união». 
A inoperância das instituições europeias faz com que não existam condições, apesar de múltiplas tentativas, de forças armadas comuns dos países da UE, nem mesmo dentro dum «pilar europeu»  da NATO. Esta aliança militar mantém bases americanas um pouco por todo o continente, sendo um processo de «racket» sobre os destinos políticos e a economia europeias, embora a retórica seja de que os americanos estão no continente europeu para «proteger» os seus aliados. 
As oligarquias do poder e dos negócios que dirigem o continente, querem uma UE assim como está; um colosso em termos de população, de economia, de inovação, ciência e cultura, mas um anão militar e diplomático... É isso que lhes permite melhor controlar as massas, encurraladas nos seus países respectivos, ao contrário dos capitais que fluem livremente, não apenas entre países da UE, como atravessando sem restrições as fronteiras virtuais do espaço europeu.
A City de Londres constituiu-se, desde a adesão da Grã-Bretanha à CEE, como um imenso centro de lavagem de dinheiro, de fuga ao fisco dos países continentais e como coordenador doutros paraísos fiscais nas Caraíbas e também nas ilhas do Canal da Mancha.
Não me admirava que o acordo agora alcançado seja o que preserve ao máximo esse papel da City. 
A questão da existência ou não de uma fronteira física separando a Irlanda do Norte da República da Irlanda, por muito importante que seja para as pessoas e para a economia local, pode considerar-se a questão-pretexto que interessa agitar junto das opiniões públicas, para melhor calar aquilo que estava realmente em jogo: a manutenção dos privilégios exorbitantes e  descontrolo completo dos fluxos de capitais que passam pela City de Londres.

Enquanto não houver uma profunda tomada de consciência das pessoas, elas serão manipuladas, sobretudo usando-se a corda sensível do nacionalismo, para serem levadas a aceitar passivamente a continuação de uma oligarquia política, económica e financeira, ao comando dos seus países respectivos. 
A UE tem proporcionado, no fundo, as condições para a classe no poder exercer uma ditadura disfarçada, com o famoso TINA (There Is No Alternative!) 

terça-feira, 13 de novembro de 2018

CARLOS SEIXAS - SONATAS

Interprete: Cremilde Rosado Fernandes

               


Sonata XIX Em Ré Menor: Moderato - 0:00
Sonata XIX Em Ré Menor: Minuet - 4:03
Sonata VII Em Ré Menor - 6:27
Sonata XXVII Em Lá Maior - 10:19
Sonata XXII Em Mi Menor: Allegro - 14:09
Sonata XXII Em Mi Menor: Adagio - 16:21
Sonata XXII Em Mi Menor: Minuet - 17:58
Sonata XXVIII Em Lá Menor: Allegro - 19:10
Sonata XXVIII Em Lá Menor: Minuet - 22:00
Sonata V Em Ré Menor: Moderato - 23:34
Sonata V Em Ré Menor: Minuet - 29:02
Sonata 43 Em Fá Menor - 30:18
Sonata 44 Em Fá Menor - 34:43
Sonata XVII Em Dó Menor: Andante - 39:24
Sonata XVII Em Dó Menor: Minuet - 45:52
Sonata II Em Dó Maior - 47:34
Sonata VI Em Ré Menor: Allegro - 54:17
Sonata VI Em Ré Menor: Adagio - 57:46
Sonata VI Em Ré Menor: Minuet - 59:13


Carlos Seixas, um dos nomes mais conhecidos da música barroca portuguesa é, na verdade, muito pouco conhecido... 
Sem dúvida, foi celebrado em vida, durante a curta vida, em que lutou para obter o título de «Cavaleiro» que lhe permitia entrar na corte e assegurar o futuro das suas filhas. Filho de um organista de Coimbra, cedo ficou órfão e teve de procurar sustento em Lisboa. 
Caiu nas boas graças do rei D. João V, que nessa altura tinha o grande Domenico Scarlatti ao seu serviço. Muito influenciado teria sido o Rei por Scarlatti, o mestre de música da Infanta Bárbara e futura rainha de Espanha. 
D. João V enviou a Roma e a Nápoles vários músicos para se aperfeiçoarem na música italiana, então favorecida na corte portuguesa e em todas as cortes europeias.

Apesar do italianismo reinante, Seixas tem uma forma de compor as sonatas que, embora reminiscente da escrita de Scarlatti, é por demais distante, para que se possa dizer que o português tomou como modelo o italiano. Nomeadamente, as sonatas seixianas, numa forte proporção, possuem vários movimentos, tal como a sonata XXII aqui reproduzida, que se inicia com um Allegro, na forma da sonata bipartita típica das escolas italo-ibéricas, continua com um adágio e finaliza com um menuet, peça típica do gosto francês.

O fortepiano, presente nas casas mais ricas da corte, proveniente de Itália, é conveniente para interpretar esta música, toda ela em subtileza, tal como é apropriada no clavicórdio, instrumento mais modesto e presença banal nos lares burgueses ou nas celas conventuais, nessa época. 

Santiago Macário Kastner, o musicólogo descobridor e primeiro editor destas Sonatas, costumava dizer que a música de Carlos Seixas flui como água de nascente. Dizia sobre a qualidade destas peças que elas eram como um cofre cheio de pedras preciosas: muitas maravilhosas e perfeitas, porém algumas tendo um pouco de «jaça» (aquela imperfeição ou impureza nas pedras preciosas, que lhes diminui o valor). 
Muitas peças de Seixas são de uma sensibilidade muito para lá da época, ou seja, anunciam o final do barroco, o estilo chamado «rococó», presente na música para tecla de Carl Philip Emmanuel Bach. 
Como exemplo, oiça-se a sonata XVII Em Dó Menor, com uma sensibilidade e um estilo que poderiam passar perfeitamente por composição das últimas décadas do século XVIII, da época pré-romântica.
Aliás, foram copiadas e executadas estas sonatas de Seixas, muito tempo depois da sua morte, o que - de certa maneira - apoia tal juízo.

A Professora Cremilde Rosado Fernandes, musicóloga eminente discípula do Prof. Kastner, é uma das mais conceituadas interpretes e mestras do cravo e do fortepiano, tendo leccionado na Escola Superior de Música de Lisboa (da qual foi Directora). Além de várias gravações discográficas, participou em recitais a solo ou com orquestra, em inúmeras ocasiões, em Portugal e no estrangeiro.