Creio que a magia do som diretamente produzido e transmitido aos nossos ouvidos, naquele instante, é impossível de reproduzir. Ainda assim, gosto de ver/ouvir (em vídeo) alguns interpretes darem um recital ou um concerto público, até mesmo quando a interpretação não é perfeita, ou quando a captação do som tem algumas deficiências.
Irei acrescentar no futuro outros vídeos, que me pareçam especialmente interessantes e do meu subjetivíssimo agrado.
A qualidade da interpretação de Marcelo Fagerlande, numa espineta conservada no museu imperial de Petropólis, é das mais elevadas e corresponde aos critérios estilísticos e musicológicos adequados para esta música.
Por sinal, esta música é muito sensual e penetra muito facilmente no ouvido, pelo que as jovens gerações poderão praticá-la - no cravo ou no pianoforte - com imenso prazer e proveito, em paralelo com obras de J.S. Bach ou Rameau...
O estilo galante, que se ouve nesta gravação, era mais adequado ao temperamento meridional e tropical de portugueses e brasileiros, do que a austera ciência contrapontística do norte europeu.
Oiçam o delicioso Minueto em fá menor e digam-me se não soa muito como fado? A mim soa-me como tal, por mais que eu saiba que isto é um anacronismo, visto que só terá havido «fado» propriamente dito, de meados do século XIX em diante, mais de cem anos depois de Carlos Seixas. Porém, os ingredientes estavam lá: nas formas eruditas e populares, no sentimento da plebe e da aristocracia e, sobretudo, na forma como exprimiam esses mesmos sentimentos.
Um álbum cheio de sonoridades surpreendentes...
Carlos Seixas (1704-1742)
- Sonata nº 37
- Sonata nº 27
- Minueto em fá menor
Francisco Xavier Bachixa (?-1787)
- Sonata em ré maior
José Maurício Nunes Garcia (1767-1830)
- Fantasia nº 2, Lições nº 11 e 12
João de Souza Carvalho (1745-1798)
- Toccata em sol menor
Luís Alvares Pinto (1719-1779)
- Lições de Solfejos nº XXII, XXII e XXIV
Francisco Xavier Baptista (?-1797)
- Sonata II em sol maior
Carlos Seixas, um dos nomes mais conhecidos da música barroca portuguesa é, na verdade, muito pouco conhecido...
Sem dúvida, foi celebrado em vida, durante a curta vida, em que lutou para obter o título de «Cavaleiro» que lhe permitia entrar na corte e assegurar o futuro das suas filhas. Filho de um organista de Coimbra, cedo ficou órfão e teve de procurar sustento em Lisboa.
Caiu nas boas graças do rei D. João V, que nessa altura tinha o grande Domenico Scarlatti ao seu serviço. Muito influenciado teria sido o Rei por Scarlatti, o mestre de música da Infanta Bárbara e futura rainha de Espanha.
D. João V enviou a Roma e a Nápoles vários músicos para se aperfeiçoarem na música italiana, então favorecida na corte portuguesa e em todas as cortes europeias.
Apesar do italianismo reinante, Seixas tem uma forma de compor as sonatas que, embora reminiscente da escrita de Scarlatti, é por demais distante, para que se possa dizer que o português tomou como modelo o italiano. Nomeadamente, as sonatas seixianas, numa forte proporção, possuem vários movimentos, tal como a sonata XXII aqui reproduzida, que se inicia com um Allegro, na forma da sonata bipartita típica das escolas italo-ibéricas, continua com um adágio e finaliza com um menuet, peça típica do gosto francês.
O fortepiano, presente nas casas mais ricas da corte, proveniente de Itália, é conveniente para interpretar esta música, toda ela em subtileza, tal como é apropriada no clavicórdio, instrumento mais modesto e presença banal nos lares burgueses ou nas celas conventuais, nessa época.
Santiago Macário Kastner, o musicólogo descobridor e primeiro editor destas Sonatas, costumava dizer que a música de Carlos Seixas flui como água de nascente. Dizia sobre a qualidade destas peças que elas eram como um cofre cheio de pedras preciosas: muitas maravilhosas e perfeitas, porém algumas tendo um pouco de «jaça» (aquela imperfeição ou impureza nas pedras preciosas, que lhes diminui o valor).
Muitas peças de Seixas são de uma sensibilidade muito para lá da época, ou seja, anunciam o final do barroco, o estilo chamado «rococó», presente na música para tecla de Carl Philip Emmanuel Bach.
Como exemplo, oiça-se a sonata XVII Em Dó Menor, com uma sensibilidade e um estilo que poderiam passar perfeitamente por composição das últimas décadas do século XVIII, da época pré-romântica.
Aliás, foram copiadas e executadas estas sonatas de Seixas, muito tempo depois da sua morte, o que - de certa maneira - apoia tal juízo.
A Professora Cremilde Rosado Fernandes, musicóloga eminente discípula do Prof. Kastner, é uma das mais conceituadas interpretes e mestras do cravo e do fortepiano, tendo leccionado na Escola Superior de Música de Lisboa (da qual foi Directora). Além de várias gravações discográficas, participou em recitais a solo ou com orquestra, em inúmeras ocasiões, em Portugal e no estrangeiro.