Hesitei longo tempo em escrever esta crónica, porque os factos à qual esta se refere são simplesmente repugnantes.
Toda a gente em Portugal comenta a notícia da sentença do Tribunal da Relação do Porto, que considera aceitável violência (exercida com sadismo, ainda por cima) pelo marido, devido a se tratar de uma mulher adúltera.
Foi preciso uma afirmação do Presidente da República, de que «todos os magistrados são obrigados, obviamente, a cumprir a Constituição da República» para que o Conselho Superior da Magistratura instaurasse um inquérito disciplinar.
Ora, acontece que o juiz que redigiu a sentença infame tinha antecedentes em desculpar a violência contra mulheres e mesmo em «justificar» violência contra criança de quatro anos.
Estes factos, quando saltam dos tribunais para as primeiras páginas dos jornais e para a discussão pública, são chocantes porque as pessoas têm uma noção intuitiva da justiça que está exatamente no polo oposto do comportamento destes juízes. Aliás, não é assim tão raro - em Portugal - vir a público uma notícia de uma sentença completamente disparatada e com fundamentos absurdos, como foi este recente caso, que despoletou a onda de indignação em todo o país.
Infelizmente, as pessoas estão completamente equivocadas em relação à chamada «justiça». Ela é efetivamente uma justiça de classe e os seus guardiões de toga estão ao serviço do Estado, não ao serviço dos cidadãos. São privilegiados - pelo próprio estatuto e pelo Estado - que se veem numa situação de impunidade.
Muitos devem ver-se a si próprios como fora do alcance de qualquer medida disciplinar, mesmo quando pisam e distorcem de forma grotesca a letra e o espírito da lei. Muitos, não apenas aqueles juízes do Tribunal da Relação do Porto, pensam que podem decretar sentenças segundo o seu parecer subjetivo e distorcer - até à caricatura - os fundamentos legais, sobre os quais essas mesmas sentenças teoricamente deveriam repousar.
Sem dúvida, o ordenamento do Estado tem a ver com esta situação de virtual impunidade dos juízes: a prática tem-lhes mostrado que poucas vezes algo acontece em termos disciplinares, seja qual for a sentença proferida, seja qual for o fundamento invocado para a mesma.
Pressupõe-se que um juiz deve ser respeitoso da Constituição e das Leis, mas a sua posição é praticamente inamovível ou é preciso um escândalo de enormes proporções, como este, da «sentença da mulher adúltera», para que algo sério lhes aconteça, em termos disciplinares.
A um nível diferente, também os polícias são salvaguardados de sérias consequências dos seus atos, mesmo quando estes envolvem clara violação dos direitos das pessoas, um desrespeito óbvio pela lei e atos de brutalidade. Tanto no caso dos magistrados como dos polícias, há alguns elementos que interpretam de forma «demasiado lata» a impunidade que - de facto- lhes é facultada pelo Estado - dito- de «Direito», com suas leis e práticas disciplinares.
Que eles têm a proteção do aparelho e dos agentes do Estado, pode ser comprovado por nunca serem postos em causa quando ocorre a repressão brutal e totalmente injustificada de manifestações, que eles consideram «contrária à ordem pública», mesmo manifestações legalmente convocadas, onde não exista qualquer ato agressivo de manifestantes.
Nestas ocasiões, quanto muito, pode surgir alguma indignação pública por «actos desproporcionados» por parte dos polícias ou sentenças «demasiado severas» por parte de juízes.
Mas não se equaciona nunca que estes são levados a cabo pelos mesmos que os das sentenças aberrantes ou dos atos brutais nas esquadras. Se não são os mesmos, pertencem todos ao mesmo caldo de cultura dos tribunais e das esquadras.
Se um indivíduo de origem africana é agredido no interior de uma esquadra ou se uma mulher, que sofreu agressão física pelo seu marido com um bastão cheio de pregos, é sujeita a uma sentença totalmente absurda, a indignação do público, muito justificadamente, sobe ao rubro.
Porém, após o anúncio de um inquérito, parece que tudo volta à normalidade, tudo entra «na ordem». As punições disciplinares são decretadas e aplicadas muito tempo depois e com a maior das indulgências, por norma, ou não fossem eles também, os que as decretam, guardiãos do sistema.
Não nos iludamos: a justiça é de classe e defensora do Estado acima de tudo. As corporações, supostamente especializadas em defender a legalidade, têm de defender o Estado, acima de tudo!
... e as pessoas? - Bem, estas, deve-se dar a impressão de que o Estado «se preocupa» com elas.
Uma justiça de verdade só poderá ser baseada num poder real do povo; não me admira nada que numa sociedade divida em classes e onde o poder do dinheiro «soa» cada vez mais alto, a justiça seja o lamentável espectáculo que se vê.