quinta-feira, 23 de março de 2017

RUPTURA E QUEDA DA UNIÃO EUROPEIA

Foi há cerca de nove anos atrás que as pessoas começaram a acordar para a realidade da EU pós tratado de Lisboa e pós moeda única. 

Quando se começou a perceber a enorme dívida acumulada pelo Estado grego, tendo nenhum mecanismo seguro de reembolso, começou-se a perceber que o sobre endividamento dos Estados tinha sido o resultado negativo da introdução do euro, em países que tinham aderido à União Europeia, mas que careciam de uma estrutura financeira e fiscal sólida, permitindo garantir os empréstimos dos respectivos Estados. 
Foi então que surgiu o acrónimo não muito simpático de PIGS (Portugal, Ireland, Greece, Spain) para designar estes mesmos países, que tinham uma estrutura deficitária crónica da sua balança de pagamentos precisando de recorrer a crédito sob forma de obrigações soberanas, para colmatar o défice. 

Ora, os governos destes países tinham, desde o euro, uma maior facilidade de obterem crédito e a juro mais baixo, permitindo assim fazerem obras faraónicas (exemplo, os estádios do Euro 2004 em Portugal), desbaratar o dinheiro em submarinos e outros «brinquedos» de guerra (Portugal e Grécia), criar e manter enormes bolhas do imobiliário (Espanha, sobretudo, embora também os restantes PIGS), etc.

Na realidade, o povo desses países pensava ingenuamente que os dirigentes eram geniais pois faziam «prosperar» as respectivas economias, as pessoas já se viam aproximarem-se dos níveis de vida da Europa do Norte. Só que a Europa do Norte tinha os cordões da bolsa, emprestava com juros e queria que este dinheiro investido fosse rentabilizado. 

Portanto, nada de perdoar ou reestruturar os empréstimos. Somente, em economia, não existe défice crónico que não resulte de um superavit, crónico também, algures. Neste caso, a Alemanha e outros países do Norte da EU tinham um mercado cativo no Sul, um poço sem fundo para exportarem os seus produtos e faziam tudo para que os respectivos governos, «adictos» na compra desses bens de equipamento e consumo, continuassem a obter crédito. 

Numa economia ao nível das empresas, uma empresa que «ofereça» crédito aos seus clientes para estes comprarem os seus produtos, fá-lo com a convicção desses clientes terem capacidade de pagar; caso  saibam que efectivamente estão sobre-endividados e continuem a «dar» créditos a esses clientes, simplesmente estão a assumir, eles próprios, o risco de não pagamento por parte desses clientes. 
Se – efectivamente - alguns clientes não puderem pagar, os que lhes impingiram esses créditos são igualmente responsáveis por esse crédito malparado,  pois aplicaram de forma demasiado arriscada o capital. 

Claro que no caso de contas entre Estados a coisa é mais complexa, porém nada será fundamentalmente diferente, a não ser num ponto crucial. 
O cliente sobreendividado do exemplo anterior não tem meio de ir buscar o dinheiro em dívida a nenhum lado. Ele está condenado à bancarrota pessoal; mas o Estado sobreendividado está «protegido», porque tem o poder de pressionar os seus cidadãos a fornecerem mais dinheiro em impostos, tem o poder de efectuar «cortes», ou seja, de renegar parte das somas devidas nas pensões de reforma e salários dos seus funcionários públicos.

Assim, o Estado português tem feito «default» ou falta de pagamento,  não em relação aos detentores de dívida pública, detida por grandes empórios financeiros, grandes bancos internacionais, hedge funds (fundos especulativos), mas à sua própria população, não apenas desviando capitais de investimentos em infra-estruturas indispensáveis, como falhando nas suas obrigações estritas de pagar os salários contratualmente acordados e as pensões nas condições estabelecidas. 

Com efeito,  as pensões de reforma não são uma benesse, mas antes um salário diferido, um salário que o trabalhador foi acumulando à medida que passavam os anos e, embora retido pelo Estado, este já não tem legitimidade de o considerar seu e de dispor dele como se o fosse. A partir do momento em que o Estado ou a empresa pagou uma determinada quantia, mensalmente, ao trabalhador como contribuição para a segurança social, esse dinheiro reverte para um fundo, que não é nominalmente do Estado. 

A chamada recuperação das finanças portuguesas não foi nenhum milagre, nem um feito heróico do governo (deste ou dos outros) mas apenas resultou do «bail in» (resgate interno) continuado, feito sobre a imensa maioria, sobre assalariados (por roubo), pensionistas (por roubo),  cidadãos em geral (por não realização do investimento prometido e necessário).

Qualquer observador, daqui a um século, verá – estou certo - como incrível aquilo que se tem vindo a passar na EU, pois os países do Sul não têm, objectivamente, qualquer interesse em continuarem cativos, numa espécie de servidão neocolonial, dos países do Norte. 
Apenas uma classe política corrupta mantém este estado de coisas, porque ela tem pessoalmente a ganhar com os lugares muito bem pagos de que pode gozar nas diversas instâncias: parlamento europeu, comissão europeia, tribunal de Estrasburgo,  BCE de Frankfurt…  Deve estar muito segura da ignorância dos seus cidadãos para continuar a vender a ideia de que é «indispensável» continuarmos a pertencer à U.E.!

O facto da cidadania ignorar ou recusar prestar atenção a estes factos, afinal muito simples na essência, tem a ver com a permanente lavagem ao cérebro dos cidadãos/eleitores. A média corporativa faz bem o seu trabalho de intoxicação quotidiana ao serviço dos poderosos. 
Poucas pessoas equacionam que parte substancial do rendimento é desviado para pagar uma dívida, em grande parte, ilegítima.
O que se passa agora com os países do Sul passou-se na África, nos anos 70 e 80 do século passado, com os empréstimos do FMI (na realidade, um conglomerado de grandes bancos é que emprestava, o FMI só «garantia» que os empréstimos fossem cobrados). Os países africanos governados, na sua maioria, por ditadores foram sendo endividados pelos respectivos governos e os capitais e juros foram arrancados às populações nas condições mais brutais, para enriquecer consórcios bancários e grandes empresas fornecedoras de bens e serviços (em grande parte da EU e dos EUA).

Mas tudo tem um fim e o da União Europeia está próximo: as forças centrífugas são demasiado fortes, devido aos egoísmos do Norte conjugados com a exaustão, o empobrecimento artificial e forçado do Sul. 
Toda a dívida que não pode ser paga, não será paga. Esta dívida pública dos países do Sul não tem qualquer tendência a diminuir mas a acumular-se, pois os Estados têm de emitir constantemente mais dívida (com juros relativamente altos) para pagar dívidas que vão vencendo.
O ponto de ruptura varia de país para país e também de acordo com as circunstâncias globais da economia da zona Euro e mundial. É, porém, inevitável. 

Entretanto, as populações do Norte estão em pânico com a vaga migratória, vinda de países que seus dirigentes contribuíram para mergulhar no caos (Líbia, Síria, Iémen…). As pessoas têm mais reflexos identitários agora e não aceitarão fazer sacrifícios pelos cidadãos dos Estados Europeus do Sul. 

Os governos da Alemanha e de outros países credores do Norte europeu, para se manterem no poder, têm de mostrar que seguem uma «linha dura», em relação ao pagamento de uma dívida impagável nas condições objectivas que vivem os países do Sul.  Eles sabem – melhor que ninguém- que assim é. 

Visto que não existe qualquer solidariedade dos países do Norte, não é apenas o destino dos países do Sul que está em causa, é a própria arquitectura da EU que está a ruir pela base.


quarta-feira, 22 de março de 2017

CERTIDÃO DE ÓBITO DA «UNIÃO» EUROPEIA

Tanta indignação na Internet sobre as declarações do presidente do eurogrupo! 

Eu penso que há males que vêm por bem, pois ele apenas vozeou aquilo que muitas pessoas pensam, na Holanda e noutros países do Norte europeu. 

A boa consciência dos que usufruem de bem-estar material, aliada à completa ausência de moral, ou até de uma lembrança disso, faz um certo número de pessoas pensar que os do Sul, se estão mal, é porque foram «preguiçosos», «irresponsáveis», etc. 
O atraso mental que revela esta falta de inteligência e de humanismo, este simplismo racista e xenófobo, contradiz a própria tradição cultural dos seus países, em larga medida. 
Os demagogos políticos precisam de se mostrar próximos do «sentir popular», mesmo quando isso (ou sobretudo isso ...) implica uma justificação das teses da extrema-direita.

Nada resta da «União» Europeia: Djisselbloem passou portanto (inadvertidamente) a certidão de óbito dessa fantasia neo-liberal, que já custou demasiado aos povos do Sul e que, na verdade, não favoreceu a população trabalhadora do Norte, mas apenas e somente as classes privilegiadas.

DOZE EPIGRAMAS -1977

EPIGRAMAS*

1.

Agrilhoado aos tendões do desespero
Canto raivoso o cativeiro
Do corpo cansado prisioneiro
Impaciente a morte espero



2.

Meço o Mundo pelos passos
Que marcam o tempo gasto
Anos-luz de sonhos que arrasto
Na quarta dimensão dos espaços



3.

Sem falar diz-me tudo nos lábios
Como a bruma beija no mar
O pescador de olhos sábios
Que sabe no céu a rota tomar



4.

Com o olhar revela segredos
Como a fonte vertendo na noite
Suaves lágrimas de rochedos



5.

Semeias pelas janelas da cidade
Cantos leves como o vento



6.

Segredos à flor dos lábios
Olhos cerrados no azul
Abismo em campo aberto



7.

Tudo se diz no silêncio
É impossível fechar os ouvidos ao silêncio
É impossível calar o silêncio



8.

Palavras para quê?
Não ouves o grilo cantando a sua serenata?
O fogo a crepitar na lareira?
As estrelas difundem uma harmonia límpida;
São lágrimas?



9.

Sinto o sangue a latejar na cabeça
Abre-se-me o corpo em flor
Descubro uma chaga no lugar do coração



10.

Em ti redescobri o objecto há muito tempo perdido
Há tanto tempo...
Sabor a sal, a algas marinhas, a moluscos
Dentro de conchas nac’radas...



11.

Há em mim
“Um-não-sei-quê”
Que se esvai
Um cisne preto
Deslizando sobre o lago
Numa manhã outonal





12.

Da fé pela minha estrela
Mui cedo me desenganei
Agora só me desvela
A saudade de quem amei




--------------
(*) Esta recolha de Epigramas pertence ao livro de poemas inédito, «Anónimo Eu». Neste, recolhem-se alguns poemas escritos em 1977 e nos dois anos anteriores.  
Estes epigramas não têm relação entre si, como se pode ver imediatamente pela pluralidade temática. Porém, liga-os a inspiração estética comum quer à poesia haiku, quer à quadra popular.

terça-feira, 21 de março de 2017

MICHEL ONFRAY - INESGOTÁVEL CONVERSADOR

Gosto deste francês tão típico do espírito francês «des lumières».
 Mesmo nos casos em que discordo dele, ele ensina-me coisas. 

A sua forma desinibida de conversar não significa que ele possua os assuntos superficialmente, mas antes que se preocupa genuinamente em tornar ao alcance de qualquer um as questões mais relevantes da filosofia e da história da civilização. 













segunda-feira, 20 de março de 2017

GAVOTTE E VARIAÇÕES DE RAMEAU

             

Aviso: este vídeo não deverá ser ouvido por pessoas apressadas, mas antes por aquelas que se deixam penetrar pela música de Rameau, fruindo cada nota, cada silêncio, como a essência da volúpia. 

Que importa que o compositor tenha escrito isto há mais de 250 anos!? Importa-me que a Natacha Kudritskaya restitua o esplendor e a subtileza desta sequência de variações para usufruto das gerações presentes. O rigoroso fraseado ao piano, na peça composta originalmente para cravo, não desfigura a estética barroca, mas torna as suas belezas mais sensíveis ao ouvido contemporâneo . 

domingo, 19 de março de 2017

INTERNACIONALISMO OU CARPIDEIRAS HUMANITÁRIAS?

Uma acção implica necessariamente uma reacção. É uma lei geral da física. Também se aplica, como não podia deixar de ser, nos assuntos humanos. Vem isto a propósito do que o «Ocidente» tem feito nos últimos anos em terras do Médio Oriente e Norte de África.
 O imperialismo dos EUA, com os seus apêndices Britânico e Francês, antigas potências imperiais dominantes no vasto mundo não europeu, devastou os países árabes, usando uma táctica de desestabilização que designou propagandisticamente de «Primavera Árabe». Hoje sabe-se, para além de toda a dúvida, que a política do Departamento de Estado, sob a chefia de Hillary Clinton, é responsável:  as operações «Primavera árabe» foram planeadas e executadas friamente, usando - como sempre- os anseios legítimos de populações empobrecidas e descontentes com os ditadores domésticos, para propulsionar a subida ao poder de facções favoráveis aos poderes «ocidentais», tais como a Irmandade Muçulmana, uma sociedade semi-secreta que não tem nada de progressista ou anti-imperialista, mas que soube avançar com a sua agenda desestabilizadora para destronar os regimes «laicos» ou seja em que a lei corânica não é considerada lei geral: nomeadamente, o Egipto, a Líbia e a Síria. O efeito foi desastroso, conduziu a morticínios dos quais os maiores responsáveis são justamente os que se arvoram em juízes dos outros, o poder nos EUA e nos países da EU…
A destruição, a guerra civil, a guerra religiosa, que o chamado Ocidente semeou, está agora a colher «fruto», sob forma de ataques terroristas, de afluxo de refugiados não desejados, temidos por grande parte da população, sob forma de crescimento da extrema-direita, dos movimentos xenófobos, racistas. Tudo isto, no meio de uma crise económica profunda, que os poderes do dinheiro nunca tiveram coragem de reparar. As bolhas especulativas causadoras do abalo de 2008 estão constantemente a ser re-insufladas na esperança vã de reacenderem uma economia definhando numa espiral deflacionária.
As pessoas de «bons sentimentos» mas fraco juízo crítico, manipuladas, pensam que é seu dever mostrar-se muito humanas face a uma onda de refugiados, quando – na verdade – graças a uma média completamente manipulada pelos Soros e companhia, estão a vender-lhes uma aceitação das políticas imperiais acriticamente, uma submissão de súbditos do império, aos ditames dessa «elite» plutocrática que domina o poder na EU.
Estas pessoas, na melhor hipótese são míopes, na pior, são coniventes dos desígnios dos poderes. A realidade pode situar-se algures entre os dois. Pois o lógico, face aos dados objectivos de que dispomos em abundância, não era tomar uma posição hipócrita de equidistância: Quando existe um agressor e um agredido, como tem sido o caso com a destruição da Líbia, com a guerra suja contra o regime e o povo da Síria, como a guerra de genocídio contra o povo do Iémen, alguém que se coloca numa posição de «neutralidade» está apenas a dar espaço de manobra a um dos lados, ao lado agressor. Vemos que, quer do ponto de vista ético, quer numa perspectiva realista para acabar com essas guerras fomentadas pelo Império, só há uma atitude a tomar: as pessoas com reais e profundas preocupações humanitárias nos países europeus deveriam energicamente lutar contra as políticas imperialistas dos poderes, aderir a campanhas pelo desarmamento, contra vendas de armas a ditaduras sanguinárias e genocidárias, como a Arábia Saudita, exigirem que os seus governos se desvinculem das campanhas orquestradas pelos EUA, que arrastam os países europeus, através da NATO, para um confronto.
 Na realidade, o que me entristece e enfurece mais - nisto tudo - é constatar a impotência fabricada.
 - Com é que procedem? As falsas campanhas humanitárias, de ONG’s subsidiadas pela Fundação George Soros, pelo Departamento de Estado dos EUA, etc., em vez de se atacarem à raiz dos males, «choram» sobre os seus efeitos, sem nunca porem o dedo na ferida.
É assim que os poderosos continuam a ditar as políticas dos países da EU, conseguindo arregimentar a opinião pública: uma parte, «sentimental», julga lutar por causas elevadas ao fazer campanha pelo acolhimento dos refugiados, mas - na verdade- está a ser manipulada, a ser usada desavergonhadamente. Outra parte da opinião pública, «xenófoba», só vê perigos na imigração maciça, mas não sabe identificar a causa verdadeira dessas catástrofes, que são precisamente os seus governos e suas políticas criminosas.
No meio disto, algumas personalidades, algumas organizações cívicas e políticas têm tido um papel nada positivo, pelo facto de se colocarem numa falsa equidistância, numa política do «nem, nem». Não vêm que estão a permitir que se perpetue a política de agressão a certos Estados, que – obviamente- são também de agressão aos respectivos povos.
Uma esquerda verdadeiramente internacionalista deveria ter forte motivação para lutar contra as políticas criminosas dos Estados e governos da UE, quer em relação à Ucrânia, quer à Síria, ou em relação a outros teatros de guerra ou de tensão.
Estou convencido que esta fraqueza tem a ver com o abandono da concepção classista, internacionalista. Em vez disso, temos uma política «mole», «de causas fracturantes» e um retraimento das lutas sociais, de classe. O «humanitarismo» despojado de quaisquer análises sobre a luta de classes e a luta anti-imperialista é apenas um encobrimento, um branqueamento.  
Se todos os povos são nossos irmãos, se não existem guerras humanitárias, se todas as guerras são actos bárbaros e os responsáveis estão ao comando nas cadeiras do poder nos nossos países, então a tibieza e timidez na luta contra a guerra revela cobardia e comprometimento com os nossos piores inimigos.

Esse triste cortejo de hipocrisias, tão cheias de sentimentos humanitários, dá-me náuseas, dá-me vontade de vomitar.

sexta-feira, 17 de março de 2017

EXISTIRÁ UM NACIONALISMO DE ESQUERDA?


Muitas pessoas estão polarizadas numa fractura ideológica «esquerda-direita». No entanto, esta fractura é mais aparente do que real.
O facto da globalização capitalista hegemonizar a cultura de massas, permite que as referências de pessoas «de esquerda» e de «direita», neste momento, sejam essencialmente as mesmas.
Nomeadamente, isto permite que – com facilidade – as pessoas troquem de postura, pelo simples facto de que, tanto a sua postura prévia como a nova, são impulsionadas pelo desejo de consumir, pelo desejo de afirmação, pelo efeito que têm sobre elas determinadas figuras mediáticas «não políticas» (estrelas de cinema, modelos, actores, desportistas, apresentadores de televisão, etc…).

A ignorância política atingiu um extremo. A política, no sentido elevado, no seu aspecto fundamental de «gestão da coisa pública», está completamente arredada dos media, que apenas se especializaram em escândalos, em fazerem campanhas de imagem contra os que designam como «grandes demónios» (Putin e Trump…de momento). 
Neste quadro, é previsível que o meu inquirir frio e sereno sobre a noção de «nação» levante um certo número de vozes indignadas, sobretudo de pessoas que se apressam a fazer juízos depois de leituras enviesadas e apressadas das opiniões alheias. 
Mas, adiante….

Primeiro que tudo, devemos fixar, duma vez por todas, que o conceito de nação é sobretudo um conceito surgido no fragor da Revolução Francesa, com os mais radicais, na época, a apelarem ao povo em defesa da nação, identificada não apenas como território, como vista como o conjunto dos cidadãos em armas, imbuídos dos ideais revolucionários. 
Esta visão não é muito diferente da que a propaganda bolchevique se esmerou em transmitir, logo após o triunfo da revolução de 1917, para mobilizar vontades e combater os exércitos invasores de vários países europeus, coligados com os russos «brancos». De novo, o mesmo patriotismo ou nacionalismo foi invocado para mobilizar o povo soviético contra a invasão nazi. 
Idem em relação a Mao, durante a Longa Marcha e após a proclamação da RP da China: os «nacionalistas» eram invariavelmente descritos, não como autênticos nacionalistas, mas como lacaios do imperialismo.
Será necessário evocar as diversas guerras de guerrilha e de libertação nacional… Em que, tanto o braço político como o militar dos movimentos de libertação tinham como pressuposto básico um «nacionalismo revolucionário»? 
De facto, estes movimentos foram perdendo os seus atributos revolucionários, infelizmente, uma vez que tomaram conta do poder. Quanto ao «nacionalismo», nem sequer isso se pode considerar que permaneceu, após o seu triunfo. Com efeito, múltiplos foram aqueles que - uma vez no poder-  literalmente venderam os recursos do seu país à potência que mais vantagens lhes oferecia … a eles, não ao povo.
O fiasco estrondoso da «revolução bolivariana» na Venezuela, não nos deveria fazer esquecer que o regime instaurado por Hugo Chavez se apoia tanto numa versão autoritária de «socialismo», como num sentimento de nacionalismo difuso, presente  - não só na Venezuela - como em toda a América do Sul. Este nacionalismo popular exprime-se nas classes mais humildes e encontra-se muito associado com reivindicações sociais, naturalmente.

Classificar o nacionalismo como sendo de «direita» ou de «esquerda», não faz sentido.

Qualquer espécie animal é formada por populações e estas populações ocupam territórios distintos. Estes territórios são muito mais fluídos, em geral, no caso de animais não humanos. No início da humanidade seria assim, também. Não esqueçamos que os humanos foram nómadas, provavelmente assim viveram,  como Homo sapiens, durante duas centenas de milénios (idade provável da espécie humana moderna: aproximadamente 200 mil anos).

Evidentemente, o aparecimento de Estado veio consolidar determinadas fronteiras, sendo esse território considerado propriedade ou posse, directa ou indirecta, do monarca que dominava a região.
A transformação dos Estados, de monarquias em repúblicas, que aconteceu durante o século XIX e XX, principalmente, não conduziu a um atenuar desse nacionalismo, desse apego ao território… Pelo contrário, todos os poderes, fossem eles absolutistas, democráticos, liberais, socialistas ou fascistas… sempre apelaram para esse sentimento e sempre o exaltaram. 
Para todos eles foi considerado razão «nobre» para verter o seu sangue - isto é - o sangue dos súbditos, dos pobres, dos proletários… 
A carnificina da 1ª Guerra mundial e todas as que se seguiram são factos insofismáveis, que mostram como os poderes recorrem ao argumento da pátria e do nacionalismo, para justificar a guerra.

Um pensamento de esquerda realista e tendo em conta os factos da antropologia, deveria aceitar pacificamente que o ser humano é territorial. Mas há muitas maneiras de uma espécie ser territorial, como podemos ver, em múltiplos exemplos, no mundo animal.
A grande plasticidade das culturas humanas, que as distingue de todas as outras espécies animais, permite que as populações inventem modos de vida, uma nova organização social, nova cultura, de acordo com o ecossistema particular em que se encontram, mas sobretudo, de acordo com uma série de parâmetros sócio culturais, históricos.

A incapacidade de pensar a «nação», o território, faz com que o discurso sobre o mesmo seja completamente açambarcado pela extrema-direita. Esta, «tem as mãos livres» para inocular, numa boa parte das pessoas, despolitizadas ou desiludidas, a versão mais retrógrada do conceito de «pátria», de «nação», o qual tem um inegável apelo junto das pessoas, devido ao seu instinto territorial, profundamente ancorado na história biológica, evolutiva.

A esquerda inteligente deve recusar que uma esquerda estúpida continuamente lance anátemas sobre quaisquer pessoas que tentam debater sobre o que é a nação, a pátria, se existe ou não nacionalismo revolucionário e se sim o que é, afinal.
Esta esquerda estúpida (porém, maioritária nalguns meios) é o exemplo acabado de autoritarismo e cobardia … pois não se bate no plano das ideias com outras pessoas, fazendo efectivo uso da liberdade de opinião; antes quer, a todo custo, calar a voz dos que ela considera serem inimigos… nestes últimos tempos, o «politicamente correcto» revelou-se claramente como o que sempre foi implicitamente: a expressão de desespero de classes médias em perda de estatuto, que pensam recuperar esse estatuto arvorando-se em detentores da verdade, do saber, etc. Bastante triste, na verdade. Mas isto não tem que ver com uma outra esquerda, que sempre se colocou ao lado e no seio dos humildes, dos espoliados, dos oprimidos.

Negar a existência fundamental da nação, da pátria, não tem que ver com uma esquerda classista e, portanto, esta não deve ter complexos em desenvolver um pensamento, uma política e uma acção dirigidas ao território e à nacionalidade. 
Pelo contrário; esta esquerda classista tem ainda maior responsabilidade em fazer uma escolha clara e responsável, clarificando conceitos e derivando daí as escolhas. Ou seja, tem de fazer uma política própria, não se deve deixar arrastar por modismos.