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terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

A DEMOCRACIA PARLAMENTAR É UM LOGRO

 Praticamente todas as pessoas se conformam com este estado de coisas. Mas, quase todas, tecem severas críticas ao funcionamento do regime de partidos e aos efeitos desse regime sobre a «moral pública», ou seja, quase todos estão de acordo que a democracia parlamentar tem como corolário, a corrupção.

 Porém, eu vou mais longe que esta constatação banal de que existem políticos corruptos em todos os países onde haja democracia parlamentar: Eu nem sequer considero esta corrupção como inerente à natureza humana. Se assim fosse, teríamos de aceitar que não existe possibilidade nenhuma de haver democracia genuína, seja parlamentar ou outra. 

Não; eu assumo que existem determinadas formas de organização do poder político que convidam à corrupção; que são mesmo, estruturalmente, formas corruptas, em si mesmas, até quando seus protagonistas não tenham pessoalmente cometido atos de corrupção, ativa ou passiva. 

A democracia parlamentar assenta sobre o princípio da representação. Mas, este princípio é viciado, se não for complementado pelo princípio de responsabilidade. 

O que entendo por esta expressão? Responsabilidade, por aqueles que votam uma lei ou medida, das suas consequências; se votaram algo que vai contra o programa eleitoral, ou que contradiga as promessas feitas aos eleitores, estes deputados devem demitir-se ou ser demitidos, porque traíram a confiança dos eleitores. Para isso, tem de haver uma espécie de assembleias permanentes, onde os deputados venham prestar contas aos seus respectivos eleitores. 

A proximidade dos deputados aos seus eleitores respectivos não será fácil. Costuma-se objetar com o facto do poder legislativo ser de representação nacional. Note-se que existe a possibilidade de se fazer um sistema em patamares, em que o patamar mais na base - com um número de membros que coubesse numa grande sala pública - discutiria os assuntos em agenda. Dessa discussão, iria resultar uma orientação, que seria levada para a assembleia de grau intermédio, composta por mandatários escolhidos pela base. 

O desenvolvimento dos meios tecnológicos veio proporcionar que tal sistema se instalasse na sociedade, se tal fosse a vontade política da grande maioria. Hoje em dia, a tele- conversa, o voto eletrónico, etc. são meios de viabilizar, de remover os obstáculos a uma democracia descentralizada, direta: É perfeitamente possível, se as pessoas quiserem. Mas, nesta sociedade tecnologizada, também há grande inércia, indiferença e ignorância, que se conjugam para obstaculizar tal mudança. Não há dúvida de que tal é desejado e estimulado pelo sistema. 

De qualquer maneira, o que se verifica é o afastamento da pessoa comum em relação à política. Os chefões dos partidos, os funcionários e os ativistas partidários, adoram isso, pois só desejam que o cidadão comum «participe» com o voto. A fraude é muito clara; participar não é votar. Votar só pode ser assumido como participação ativa, se associado a um conjunto de reflexões e de ações políticas dos cidadãos. 

Num sistema de democracia direta, em que os cidadãos tenham voz nos assuntos que afetam suas vidas, as questões serão debatidas entre eles - de diversas maneiras - e, portanto, haverá uma participação natural e não forçada, num referendo, local, regional ou nacional, ou numa proposta de lei. 

Fosse a participação das pessoas efetiva, isso equivaleria a dizer que a ação dos deputados eleitos, ou de agentes políticos, assim como das instituições, estaria sempre sob escrutínio, que haveria conhecimento sobre quais as medidas votadas e estas seriam comparadas aos programas eleitorais respetivos. Não seria uma democracia perfeita; mas a componente de participação iria dar o controlo efetivo dos eleitos, pelos eleitores. 

Quando a democracia não é compreendida como uma efetiva participação dos cidadãos, incluindo na criação das leis, mesmo que este processo envolva várias etapas, acaba por se transformar numa competição entre as diversas «elites» pelo poder: Interiormente aos partidos e entre os diversos partidos. 

Pode-se imaginar todos os golpes baixos aplicáveis e aplicados, numa luta sem quartel, contra os próprios colegas de partido, já para não falar dos adversários. A demagogia torna-se a arma principal. O engano, a falsidade, estimulam os instintos mais baixos dos eleitores; são estes truques que mais «rendem», em termos eleitorais. O terreno político é propício às demagogias, ao ódio, à ganância, ao racismo, à vaidade. Quem tiver menos escrúpulos, mais indiferentismo moral, é quem triunfa, dentro deste sistema. Há um favorecimento dos sociopatas, dos psicopatas, para ascenderem na hierarquia dos partidos e dos cargos públicos.

Nem sequer abordarei aqui as problemáticas da educação e da informação, que deveriam ser não enviesadas, não controladas por monopólios. Toda a média de massas está ao serviço dos interesses capitalistas e especializada em fazer lavagens ao cérebro do público. No seu conjunto, existem muitos elementos que fazem com que este tipo de «democracia» parlamentar seja uma farsa.

De qualquer maneira, não conheço nenhum exemplo na História em que uma classe, ou grupo poderoso, esteja no poder e conforme-se com ser retirada do poder. As eleições são a possibilidade de alternância consentida pelo sistema, no seu interior, não existe alternativa senão de fora, senão derrubando as instituições caducas, viciadas, feitas para favorecer um restrito grupo. 

O problema, que não é equacionado devidamente pelos marxistas-leninistas, é que a instauração de um novo poder só se pode efetuar pela violência, sendo impossível graduar ou classificar essa violência, como legítima ou ilegítima, sendo essas tentativas classificatórias meras capas verbais para legitimar o poder ditatorial. 

Historicamente, os bolcheviques e até alguns anarquistas, seguiram a palavra de ordem de Lenine, de tomada do Palácio de Inverno, para descobrir, pouco depois, que - eles também - acabaram sendo triturados pela máquina de poder instaurada. 

Depois, os herdeiros da IIª Internacional (os partidos socialistas), sobretudo depois da IIª Guerra Mundial, foram os gestores do capitalismo (por ele instalados). Deve-se-lhes o chamado «Estado de Bem-Estar» ou «Estado Social». Os comunistas, com algum atraso, também se amarraram ao barco do parlamentarismo, sendo eles agora, outra versão, «mais à esquerda» da social-democracia. 

Neste momento, em Portugal, a deceção e a ausência de formação dos trabalhadores estão na origem da subida espetacular de intenções de voto num partido de extrema-direita. Tal como noutros países europeus, estes partidos têm sido apoiados discretamente pela burguesia, não porque ela se identifique com as suas fórmulas e programas, mas porque lhes permite fazer uma política muito direitista, com a ameaça implícita de que «se não formos nós, serão eles». 

O centro, em Portugal, é constituído por dois partidos, que têm nomes que em nada correspondem às suas políticas (partido «socialista» e partido «social-democrata»): Estão permitindo e até favorecendo o tal «monstro» da extrema-direita, assim como o fez François Mitterrand, ainda nos anos oitenta, ao permitir que o Front National de Jean-Marie Le Pen se fosse apresentar nas eleições. 

Enquanto a classe trabalhadora não gerar a sua própria democracia, com critérios próprios,  exercida através de assembleias (onde não haja capangas a comandar quem tem a palavra e indicando quais são os «bons» e os «maus»), ela será joguete de forças partidárias exteriores.  

Preconizo uma forma de sindicalismo e de cooperativismo entre os trabalhadores, em que eles possam realmente manter o controle das organizações em suas mãos. Que estas não se tornem «correias de transmissão» de partidos, como tem sido demasiado frequentemente o caso, em Portugal, nestes 50 anos depois do 25 de Abril

A democracia parlamentar é sempre feita de acordo com a vontade da classe dominante, que a «inventou» e manipulou, de forma a que ela servisse os seus interesses. A democracia proletária, no sentido amplo, é baseada na pertença a um grupo socioprofissional e à adesão a formas de participação igualitária, na deliberação e tomada de decisão, assim como no controlo, pela base, dos mandatários escolhidos.


terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

«Autocarros e bombas na Bolívia» & «O anarquista acidental»

COMO É QUE OS MINEIROS LUTAM, NA BOLÍVIA:





Buses and bombs in Bolivia


Bolivian Blockade
I was sleeping blissfully with my face smack against the bus window when a cacophony of increasingly loud Spanish voices woke me up. ‘Blockade, the miners are blockading the road! What are we going to do now?’ At first, the answer seemed obvious to me, wait until the miners let us through, which I’m sure would be in a couple of hours. It was 3am after all. But fifteen minutes later, as I stood outside the bus staring at the hundreds of vehicles lying motionless in front of me, I knew one thing only. That this was going to be a long night.
12 hours ago, I walked into La Paz bus terminal, ready to haggle for as cheap of a bus fare to Santa Cruz as I could get. Santa Cruz’s large houses, wide roads and tropical weather remind me of my home country Portugal and so I was happy to have scored a 70Bs (just over £9) bus fare that would give me a break from La Paz’ claustrophobic urban layout, congested roads, and cold, mountain air. Fun fact, did you know that the regional department of Santa Cruz is bigger than Germany? Well I didn’t, but that probably explains why the estimated journey time from La Paz was 14 hours.
Having been on a 35-hour bus from Lima to La Paz, I arrogantly scoffed at that figure, secure that I would arrive to Santa Cruz in time for a hearty Bolivian lunch. But 12 hours later, I was the one being scoffed at, this time by locals who had no time to explain to a naïve ‘chino’ why the bus drivers couldn’t “just talk to the miners”.
I soon found out why. As I walked past row after row of buses, all empty, it became clear that these miners had not merely put some cones up or organized a peaceful sit-in. I soon started to see huge pieces of rock, presumably from the mountains flanking the roads, strewn onto the tarmac, a mass of smaller debris surrounding them. I have never had the most logical of brains, so I thought to myself ‘these miners must be incredibly strong to be able to move those rocks.’
Before I could voice out my stupidity to a Bolivian family I was walking with, the sound of exploding dynamite made it pretty clear how the rocks had ended up on the road. I asked Elvis, a Bolivian on his way to Buenos Aires, if the mineros were blowing the mountain up in full certainty that there was no danger of civilian casualties. Elvis chuckles and said ‘Son, the miners are like the Taliban, get it?’
In Bolivia, miners are not affiliated to syndicates with a large membership like their European counterparts. On the way to La Paz airport a week later, a taxi driver by night, miner by day would explain to me that miners are usually organized into cooperatives, groups of 40-50 men who all work together in the same mine.
The daily toils which bind together such a collective mean that, in the driver’s words, everyone regards each other as their “hermano” or brother. This results in tight-knit organization, which facilitates coordination with other similar cooperatives, and a mindset which makes violent action easier to commit to, as the livelihoods of your “hermanos” are at stake.
The passengers could not care less about such considerations however, cursing the miners frequently throughout the night. This was understandable given that most of us would spend 5 hour walking uphill, in the middle of the night, just so we could get to a small village where there might be some taxis that could whisk away from this nightmare.
Speaking of which, it was interesting to see how some, well in reality just one, passenger adopted the miners’ hard-nosed form of protest. After arguing with multiple taxi drivers over their prices, a young but tough-looking Bolivian man decided that he was going to organize a “blockade” of his own. He then proceeded to pick up some rocks (about twenty times smaller than the ones blocking the buses), lay them on the ground and declare that he was blocking passage to all vehicles unless they accepted to take passengers with them, ‘women and children first’ he stressed.
Being halfway through Jon Lee Anderson’s biography of Latin American revolutionary Che Guevara, I eagerly joined in, fantasizing for an opportunity to abdicate my middle-class privilege and die for some people who could not care less about me, exactly like Che. However, my martyrdom would be denied as soon as the first truck simply ran over our mini-blockade.
After finally getting to Cochabamba, taking another bus to Santa Cruz, I finally arrived to my destination around 10pm, where I was greeted by my Bolivian friend and her gigantic SUV. I suddenly felt an internal moral conflict. I took a glance at my Che Guevara biography then at the palms of my hand, which still beared the marks from the 3 minutes of blockade-building I engaged in. But then my stomach started rumbling and so I cut the crap and just got on the car.
But surely I may be excused. As French philosopher Montaigne said ‘I feel quite a different person before and after a meal’. After a large dish of piqué macho, a wonderful calorie bomb consisting of pork strips, sausage and chips, I was ready for another blockade. If only Santa Cruz wasn’t so beautiful, I would have fulfilled my quest for martyrdom by now. Oh well, I’ll just add it to my post-undergrad gap yah to-do list.
ver também:


http://www.accidentalanarchist.net/watch-online/

quinta-feira, 13 de julho de 2017

«O ESTADO... ESTÁ FORA DE PRAZO»

O Estado é uma complexa e tentacular organização que se instalou e consolidou paulatinamente, há uns 6000 anos. 
Sofreu as mais diversas formas e reformas, mas - na sua essência - continua a ser baseado no monopólio da força e coerção, sobre um povo ou vários povos, além de que tem o monopólio de «sacar tributo» ou seja de decretar impostos, sendo criminalizados todos aqueles que violenta ou pacificamente põem seriamente em causa este domínio hegemónico. 


O livro de Gregory Sams é muito original e a entrevista acima reproduzida dá conta disso. O entrevistador não poupa questões difíceis, faz o papel de advogado do diabo, todo o tempo... o que torna a entrevista viva e intelectualmente provocante.
Muitos autores de um vasto espectro têm criticado a construção autoritária do Estado, sem por isso pretenderem a abolição de toda a forma de autoridade, simplesmente vendo esta como emanação de baixo para cima, ou seja, das comunidades. Estas estão muito mais em medida de exercer uma certa coerção no seio da própria comunidade do que uma autoridade exterior, judicial ou policial. O autor também privilegia a justiça de tipo reparativo sobre a justiça punitiva, que prevalece ainda hoje.
Ele não se considera anarquista: porém, muitos anarquistas evolucionistas, por oposição às tendências revolucionárias, têm tido ideias semelhantes a Gregory. 
São pessoas pragmáticas, que preferem avançar para objectivos de maior justiça, liberdade e igualdade, a fomentar um cataclismo, que provavelmente iria desencadear a construção de um poder tão ou mais ditatorial e opressivo do que o que foi derrubado.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

UM NÃO-MANIFESTO PELO PRESENTE





No presente, existe uma profusão de ruído que impede muita gente de ver o que importa mais. São impedidos, pela gritaria propagandística, de se concentrarem na realidade. Estamos sempre a ser atordoados por ribombantes declarações, brilhantes manifestos, doctíssimas teses...
Por isso mesmo, eu vou apenas dizer o que sinto que este momento da história da Europa e do Mundo parece representar. Vou dizê-lo sem qualquer ilusão de ser detentor da verdade ou de especial lucidez.
Não me importo de repetir o que outros disseram, desde que seja o meu pensamento também; não me importo que outros vão buscar aos meus ditos ou escritos, não tenho «copyright» em relação aos meus textos de análise. Se os meus textos inspiram o pensamento doutros por afinidade ou por oposição, tanto melhor!

A desmontagem do chamado «Estado Social» ou «Wellfare State» está - a partir de agora - na sua etapa terminal.
Com a eleição de Macron, o continente europeu vai alinhar-se cada vez mais com os «valores» do ultra-liberalismo, permitindo que o nível de exploração e de obtenção de lucros atinja valores que satisfaçam os grandes capitalistas. Mas estes nunca estarão contentes, pois o próprio mecanismo da globalização implica a liberdade total de circulação dos capitais e os investimentos continuarão a procurar paragens onde as margens de lucro sejam mais elevadas que as europeias.
Mesmo quando a classe trabalhadora europeia está de rastos, como agora, ela tem um salário médio 5 a 10 vezes superior ao dos países produtores emergentes...

No contexto francês, o efeito paradoxal da vitória de Macron é de uma dupla «vitória de Pirro».
A maioria da esquerda reformista exangue pode clamar vitória, porque o «seu» candidato bateu a candidata da extrema-direita. Mas esta vitória para tal esquerda é o mesmo que um harakiri, o mesmo que tecer a corda que a vai enforcar...
No lado da classe possidente, os muito grandes capitalistas, o 0,01%, TAMBÉM é uma vitória de Pirro, pois nada será resolvido, as crises sobrepostas de decadência da economia, do tecido produtivo, das instituições e da sociedade serão cada vez mais patéticas, criando o «meio de cultura» ideal para rupturas.

O clima será favorável a tentações de regimes ultra-conservadores, de extrema-direita e muito menos favorável para tentações vanguardistas de extrema-esquerda.
Porém, a existirem, estas últimas não virão de Melenchon ou equivalentes, pois o fenómeno Mélenchon, goste-se ou não, é um anacronismo. É uma desesperada tentativa de sobrevivência das esquerdas herdeiras do «Programme Comum» da era Marchais-Miterrand... A esquerda institucional tem sempre uma batalha de atraso sobre a realidade.

A transformação está do lado das pessoas - principalmente jovens - que recusam envolver-se numa lógica partidária mas que, no entanto, não se colocam numa postura de marginalidade egoística. Participam em projectos ao nível local ou global, em redes de afinidade, em conexão múltipla e aberta.
Este tipo de relacionamento vai forjando, pela prática, a sua visão da sociedade. Pelo método, é anarquista na sua essência, mesmo que não tenha uma clara orientação ideológica, teórica, neste campo. Será este o caminho que traz maior fecundidade no longo prazo, não por uma superioridade qualquer ideológica destas experiências, com estes colectivos. Antes, por uma colagem maior ao real.
A esquerda que cola ao real é a que sabe que o parlamentarismo é uma ilusão, que a pugna eleitoral é um terreno nada favorável para fazer prevalecer as posições dos trabalhadores, que existem muitos domínios da vida social que escapam ao controlo do grande capital e dos seus sequazes, sendo portanto possível uma alternativa real.

A luta não violenta continua ... construindo calmamente uma nova sociedade, na concha esvaziada da anterior. Uma maturação orgânica é o que eu vejo como caminho possível e fecundo. A insurreição, as barricadas, mesmo a greve geral, são instrumentos caducos, porque perderam sua eficácia, sua acuidade...
Uma «greve geral» actual - com eficácia - é desinvestir da sociedade da exploração, do consumo, do espectáculo... criando comunidades autónomas, solidárias, plurais, capazes de banhar e difundir a cultura nova, horizontalmente.
Já estão presentes em muitos sítios, nos grandes centros urbanos, nos subúrbios, no campo...Têm demonstrado, em vários casos, serem melhores que a pseudo-cultura da media, das televisões, das escolas...

Por isto tudo, há que ter esperança.

terça-feira, 21 de março de 2017

MICHEL ONFRAY - INESGOTÁVEL CONVERSADOR

Gosto deste francês tão típico do espírito francês «des lumières».
 Mesmo nos casos em que discordo dele, ele ensina-me coisas. 

A sua forma desinibida de conversar não significa que ele possua os assuntos superficialmente, mas antes que se preocupa genuinamente em tornar ao alcance de qualquer um as questões mais relevantes da filosofia e da história da civilização. 













sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

CHAVES PARA COMPREENDER A ESQUERDA CONTEMPORÂNEA

Como é que a esquerda Europeia Ocidental e Norte-Americana se transformou de uma força muito poderosa, capaz de influenciar as políticas dos respectivos estados, num patético e heterogéneo desfile de vaidades e poses, sem qualquer efeito, a não ser a sua auto-deslegitimação?

A esquerda, a partir da viragem do século XIX para o século XX, passou a ter - em vários países dominantes - uma importante representação parlamentar. 
Foi a partir dessa investida nos parlamentos, que ela se pensou como agente de transformação social, política, económica e institucional a partir de cima, já não a  partir de baixo, pela revolução social, a última das revoluções. 
Esta transformação paulatina, progressiva, segundo os ideólogos da esquerda reformista, seria a melhor solução, evitando as destruições e os rios de sangue (muito do qual, de proletários), que, inevitavelmente, acompanhariam uma revolução violenta. 
O oportunismo dos reformistas cedo se fez sentir, com uma política de jogos tácticos, ora distanciando-se do poder apodado de conservador e incentivando movimentos reivindicativos, ora fazendo causa comum com esse mesmo poder, para obter benesses, partilha de lugares no aparelho de Estado e outras vantagens. 
O objectivo máximo, mesmo permanecendo nos textos dos programas partidários, tinha deixado de ser a abolição do regime do capital, mas passou a ser conquistar o poder e retribuir com lugares de prestígio, poder e dinheiro, as figuras do topo destes partidos.
No entanto, pela mesma altura, entre 1900 e 1914, o movimento operário cresceu em força, tendo-se organizado em sindicatos, os quais proclamavam a abolição da sociedade dividida em classes como objectivo último (Congresso de Amiens da CGT francesa) e definiam um campo, a luta de classes, como sendo unificador do proletariado, independentemente das preferências ideológicas, filosóficas, políticas. 
Assim, tornou-se possível construir um sindicalismo revolucionário, o qual tinha como instrumento supremo a greve geral revolucionária, como via para a transformação numa sociedade regida pelos princípios socialistas ou comunistas (quase sinónimos, nesta época). 
O grande recuo operou-se com o eclodir da 1ª Guerra Mundial. Nesta, os grupos parlamentares socialistas das várias potências, aceitaram votar a favor da mobilização geral e apoiar o «esforço de guerra», numa reviravolta completa e clara traição às suas posições da véspera e aos proclamados princípios. 
Ao sair da tragédia da 1ª guerra mundial, a classe trabalhadora dos países industrialmente avançados, sentindo-se traída pelos mesmos partidos socialistas reformistas que se arvoravam em condutores das massas, adoptou uma postura radical, mas maioritariamente autoritária e não libertária. 
Assim, floresceram os partidos epígonos dos bolcheviques da Rússia. Este partido tomou o poder na Rússia devido a condições muito específicas: nomeadamente, o estado de desespero dos proletários deste país face a uma guerra sem fim à vista. 
O partido bolchevique, uma dissidência do partido socialdemocrata, tinha sido influenciado pelas teorias de Blanqui, revolucionário francês que preconizava que um pequeno grupo decidido devia se organizar clandestinamente e derrubar o governo pelas armas, instalando uma ditadura «proletária». 
Foi isto exactamente que Lenine e seus seguidores fizeram na revolução de Outubro de 1917. 
No final da 1ª guerra mundial, eclodiram em Budapeste, Munique e Berlim, movimentos insurreccionais. Mas foram logo esmagados violentamente pelas forças da burguesia, mostrando aos seguidores de Lenine e Trotsky que uma revolução mundial não era para amanhã.
A onda de simpatia pela revolução de Outubro de 1917 permitiu, porém, construir a Internacional Comunista, havendo - a partir daí - uma apropriação do termo «comunista» pela tendência mais autoritária e golpista dentro do movimento operário internacional. 
O comunismo ou socialismo (não autoritários) tinham sido, desde a 1ª Internacional, o fundamento ideológico/teórico de organizações que se agrupavam sob a bandeira vermelha. Os libertários ou anarquistas que nela participavam, nos meados do século XIX, designavam-se socialistas ou comunistas libertários.
   
Seria muito longo e inadequado para um artigo de blog, descrever todo o trajecto das diversas forças de esquerda, quer das ditas reformistas, quer das revolucionárias, em todo o século vinte. 
Encorajo o leitor a fazê-lo por si próprio, para poder compreender o mundo de hoje, nestes cem anos passados sobre a Revolução de Outubro de 1917. O ideal será recorrer a uma grande diversidade de fontes de informação; destas, deverá preferir os documentos originais às interpretações escritas pelos autores, cujo ponto de vista influenciará a maneira como descrevem acontecimentos históricos, mesmo no melhor dos casos.

O que queria enfatizar é a relação umbilical da esquerda com a classe trabalhadora, com o operariado, com o sindicalismo de classe, na primeira metade do século XX. Isto é aplicável, quer às componentes autoritárias ou libertárias, quer defensoras de práticas reformistas ou revolucionárias. 

A partir do fim dos anos 60, o elo de classe começou a enfraquecer, até se tornar meramente histórico. 
Passou-se progressivamente para um tipo de política estruturada em torno de «causas» - ou seja - de questões de identidade. 
Estas questões não estavam ausentes dos debates e lutas da primeira metade do século XX; porém, eram vistas de maneira diferente. Consideravam-se relacionadas com o exercício do poder pela classe dominante, o qual impunha desigualdades, discriminações, para melhor exercer o seu domínio. Estas, iriam ser abolidas aquando do triunfo da sociedade igualitária, sem exploradores. 

Porém, a partir dos final dos anos 60 e sobretudo, nas últimas décadas do século XX, esta visão foi posta de lado, tendo sido aceite - no seio do povo de esquerda - que as pessoas oprimidas tinham o direito/dever de se auto-organizarem em grupos de afinidade para combater determinados aspectos das sociedades hierárquicas, opressivas. 
Quanto ao chamado «socialismo real», no bloco soviético/países de Leste (e mesmo descontando a monstruosidade do período estalinista), para a maioria da esquerda do Ocidente era visível que não teria proporcionado, nesses países, uma real evolução das mentalidades. 
Os regimes que se auto-definiam como «socialistas» não o eram na verdade, eram regimes com uma estrutura burocrática, capitalista de Estado. A não identificação das classes trabalhadoras desses países com o poder vigente, é que foi o factor decisivo da sua queda, embora haja provas de que houve, por parte de serviços e agências do Ocidente, um apoio ativo a movimentos de contestação e de dissidência, como não seria de espantar, no contexto da Guerra Fria.

As pessoas no Ocidente - dos anos 1990 até recentemente - têm vindo a esquecer o valor da ação coletiva, de fazer causa comum, tendo predominado frequentemente uma postura de extremo individualismo. 
O individualismo, em si mesmo, não será mau, na medida em que permite um distanciamento crítico da pessoa e portanto, embora não conduza a um comprometimento com lutas coletivas, pode - ainda assim - trazer um certo contributo crítico. 
Porém, o individualismo egoísta ou egolâtrico, esse não traz nada, pois se conforma com as coisas tal como elas são, conforma-se e satisfaz-se num hedonismo (satisfação imediata, sendo a única finalidade de viver), que lhe é apresentado como a coisa mais original, mas rebelde, etc, que possa o indíviduo atomizado realizar. 
O carneirismo não é incompatível com este individualismo. Pelo contrário, é o resultado da sociedade massificada por um lado, mas atomizada, por outro. 

O conceito de esquerda tem evoluído ao longo das épocas históricas, mas hoje em dia significa - em geral - uma tendência que preconiza a saída do capitalismo. O que difere entre correntes e faz com que - na prática - seja muito difícil de as conciliar é a enorme diversidade de pontos de vista sobre os caminhos para se alcançar a nova sociedade, não-capitalista. 

Estou convencido que a automatação cada vez mais intensa, mesmo em países de mão-de-obra barata como a India ou a China, vai obrigar a re-equacionar definitivamente os conceitos.
Tipicamente, os proletários são vistos somente como aqueles que são mantidos à margem e não podem usufruir dos efeitos das transformações tecnológicas, cujo trabalho só lhes permite sobreviver. 
Porém, uma enorme massa vive e trabalha em condições de servidão, alternando períodos de trabalho e de desemprego, com impossibilidade de sair desse regime... O «precariato», constitui cerca de 80% dos jovens de 30 ou menos anos, nos países do Ocidente. 
Estes servos têm, frequentemente, formação académica mais elevada do que a necessária para o trabalho que executam. Tipicamente, possuem um curso superior, quando apenas uma formação básica seria largamente suficiente para a natureza das tarefas que desempenham. 
Talvez seja esta a maior contradição, que tornará inevitável  uma explosão social, à qual as velhas receitas não se aplicam, obrigando por isso a uma mudança profunda. A contradição entre o saber e o fazer é uma contradição social, mas tem sido ocultada pela ideologia do «sucesso» e da «meritocracia». Segundo esta, as pessoas são as únicas responsáveis de seus sucessos, como dos seus fracassos. 

Tal como existe, a sociedade atual - seja nos países ditos «desenvolvidos», seja nos países em «desenvolvimento» - está a caminhar para um novo feudalismo. 
Este extremar da distribuição da riqueza e as assimetrias de poder que gera, fazem com que os muito ricos dominem, não só como detentores do capital, também graças a dispositivos tecnológicos que lhes permitem um controlo das mentes, que envolvem o sistema educativo, os mass media, a cultura de massas ... 
Porém, os excluídos desse poder material, podem aceder ao conhecimento e isso é uma base para outro poder, o qual poderá desembocar na formação de comunas livres, ou algo deste género, como tem sido repetidamente tentado, em pequena escala.

A transformação social vai acontecer, independentemente dos esquemas ideológicos de uns ou de outros. Pode-se ter um desejo de que esta transformação traga maior emancipação individual e colectiva, maior igualdade de oportunidades, maior fraternidade. Mas pode muito bem ser substancialmente diferente do que se deseja. Nada está escrito, nada está determinado.
Constato que a teoria, principalmente em relação aos movimentos sociais, só pode ser construída a posteriori, depois das transformações terem ocorrido. Porém, os ideólogos têm a pretensão de «saber qual o futuro e como se vai lá chegar»! 
Esta visão da sociedade terá de mudar. Esperemos que não haja tanta ingenuidade em relação aos «salvadores do mundo».