Estamos
fortemente condicionados para ver a realidade de um modo unidimensional, ou
composto por «sins» e «nãos» apenas. Essa «realidade» que nós inteiramente
construímos ou que nos construíram quando éramos pequeninos, está tão
entrincheirada no nosso subconsciente, que se torna um exercício muito penoso e
problemático vermo-nos livres dessa maneira de encarar as coisas.
Mas
é de facto necessário nos colocarmos fora dessa forma de pensar confortável mas
inteiramente equivocada, das «verdades» simples, dos «sins» e «nãos» que forram
o nosso cérebro e que nos iludem. A nossa fantasia faz-nos vogar num mar
desconhecido, com a ilusão de ter uma bússola. A bússola é a «verdade», a
certeza, todas as certezas, as que são evidentes, as que não precisam de comprovação.
Nem
tudo, porém, pode ser do domínio da verdade ou certeza. Muitas coisas estão
aquém de tal estatuto de «certezas»: Tais são os factos, as situações, que nós
procuramos deslindar, de uma forma ou de outra. Como fazemos isto?
Normalmente
através de uma série de «testes», que nós acreditamos permitir decidir aquilo
que é «verdadeiro», daquilo que não é. Porém, os «testes de verdade» são meros reforços
de nossos preconceitos, não são realmente testes cientificamente validados:
- Quando
obtemos um resultado contrário aos nossos preconceitos/convicções, simplesmente
ignoramos ou damos como não pertinente ou como defeituoso o tal «teste de
verdade».
- Pelo contrário, se ele vier confirmar as nossas convicções/preconceitos,
o teste e o resultado que dele emana é tido como válido.
Tragicamente,
este tipo de pensamento, completamente equivocado, não é utilizado nos domínios exteriores a nós próprios, como a astronomia, a física, a
biologia, etc.
Este modo de pensar, absolutamente tendencioso, perverso mesmo,
aplica-se sobretudo a todas as relações com os nossos próximos, familiares,
amigos e colegas. É no domínio das relações pessoais que este género de
autoconvencimento e de autocondicionamento opera.
É assim que certa imagem
interior desta ou daquela pessoa próxima se infiltra na nossa mente, fazendo
com que tenhamos a ilusão de conhecê-la «por dentro».
O nosso universo
relacional está formado por uma teia de preconceitos, que nós tecemos
constantemente em relação aos outros, mas também dos outros em relação a nós
próprios.
Por isso, muitas vezes ficamos admirados e angustiados, quando alguém
mostra que afinal não nos compreende. Somos muito sensíveis às falhas de
compreensão dos entes que nos são próximos. Estimamos que eles têm a chave da
nossa personalidade, que nós não temos segredos para eles.
Porém, as pessoas
são completamente opacas umas para as outas. O que julgamos ser o outro, nada
mais é do que o nosso reflexo subjetivo da imagem do outro, na nossa mente. Esta
constatação é válida, não importa qual o grau de intimidade e de interação efetiva
que exista entre nós e o outro.
Como
confusamente ou instintivamente sabemos que nada é tão simples assim, que as
nossas «verdades» são somente categorias que nos ajudam a dar um sentido à
espessura impenetrável do real, muitos de nós vamos procurar uma forma ou outra
de religião.
Quando falo de religião, não estou a mencionar apenas as
convencionais, as religiões organizadas, com igrejas ou comunidades
estruturadas, com os seus ritos, suas tradições etc. Também me estou a referir
a sistemas de crenças desde a astrologia, ocultismo, esoterismo até às diversas
ideologias políticas, etc…
Precisamos
desesperadamente de «certezas» infundidas por uma qualquer religião, precisamos
desse conforto de estar dentro de determinada ortodoxia, nem que esta
«ortodoxia» seja heterodoxa em relação à imensa maioria das pessoas que nos
rodeia.
A
necessidade é real, não é portanto para se desprezar, para se rejeitar com um
movimento de ombros, como coisa absolutamente fútil e desprezível. Todas as
civilizações têm a sua religião, ou religiões. A humanidade não construiu nenhuma
estrutura social, até hoje, onde não esteja no centro, explícita, uma ou outra
forma de crença religiosa.
Alguns poderão objetar que as sociedades em que nós
vivemos, as chamadas democracias de modelo ocidental, são isso mesmo, sociedades
onde não reina nenhum modelo religioso, onde uma pessoa é livre de pensar o que
quiser e de comunicar esse pensamento, sem haver qualquer impedimento, desde que
isso não ponha em causa a liberdade dos outros.
Pois aí está um credo
religioso, o neoliberalismo, que se tenta naturalizar, fazendo com que as pessoas adotem
como única visão possível e desejável uma sociedade regida pelo «ter»
sobrepondo-se ao «ser», pela posse ou propriedade investida de valor absoluto,
ao ponto de definir o valor dos indivíduos (o teu valor é o da tua conta
bancária), uma sociedade que deífica o dinheiro, convencida de que «ele»
existe, de que é a «coisa mais real» que existe. Chega-se ao cúmulo de atribuir
vida, vontade própria, a esse símbolo…
Se
desconstruirmos as teias de ilusões que nós próprios tecemos e que nos mantêem dentro
de uma «matrix», poderemos experimentar inicialmente a sensação de
estranhamento, de perda de referências, de desorientação. Mas se persistirmos, vamos nos libertar e teremos toda a vantagem nisso.
O caminho a trilhar
consiste em procurar, não a «verdade» das outras pessoas ou seres, mas sim a
relação, as relações entre as coisas/seres umas com as outras e a interação
dessas coisas/seres connosco próprios.
Se adotarmos este ponto de vista
filosófico, muito simples e fácil de aceitar, teremos ainda que pô-lo em
prática, no quotidiano e isso afigura-se mais difícil. Mas as dificuldades
serão compensadas pela capacidade de lidar melhor com a realidade, de não nos
auto iludirmos com as «realidades» que fabricamos dentro das nossas mentes, mas
que não são reais.
A
nossa vida torna-se então mais harmoniosa, as nossas decisões mais sábias e
mais apropriadas às circunstâncias particulares das nossas existências.
Queríamos
que «a realidade se conformasse com as nossas convicções», não podia ser maior
o engano. Ao nos livrarmos dessa ilusão, livramo-nos dos medos, das angústias,
das ansiedades, pois descobrimos a causa desses sentimentos.