«A arte de amar»
De todas as artes, a que suscita
maior entusiasmo, queiram ou não queiram os puritanos, é a arte de amar.
Este amor, o amor entre pessoas,
entre seres de carne e osso. Este amor, feito queimadura, que nos toma as
entranhas; esse sentimento, que se traduz em vertigem, que pode ser tão potente
ao ponto de nos levar a um estado de quase loucura, ou mesmo de loucura
propriamente dita.
O desencadear das paixões amorosas é
como essa outra paixão – bem mais nefasta – a paixão da guerra. Há muitas
maneiras de iniciar uma guerra, mas nunca se sabe… uma vez começada, como irá
terminar. A analogia guerreira é muito usada para descrever as paixões
amorosas.
Só na literatura do Ocidente, a
lista de filósofos, poetas, escritores, cientistas e artistas que se debruçaram
sobre o tema é interminável!
Se tudo foi dito, no que respeita à
«Arte de Amar», as obras que vão surgindo - populares ou eruditas- sobre o tema,
só podem interessar enquanto testemunhos da época:
- Diz-me como falas do amor e eu te
direi em que tempo vives, a que cultura e sociedade pertences…
Um assunto desenvolvido em todo o
género de literatura, desde os livros de «autoajuda», aos romances …O tema corresponde
obviamente a um interesse muito especial do público, que compra abundantemente
esses livros pelo prazer, sem dúvida, mas também por desejo de aprender e por
pressão social.
Estamos tão mergulhados no
quotidiano que não nos apercebemos, por vezes, da grande velocidade das
mudanças na nossa sociedade. Hoje, há um matraquear permanente sobre amor e sexo:
o sexo «sugerido», na publicidade ou nos filmes; ou o sexo «explícito» com a banalização
da pornografia. Hoje em dia, qualquer pessoa tem fácil acesso a vídeos
pornográficos.
A outro nível, a imposição
permanente no discurso político e mediático de numerosas questões ditas
«fraturantes», relacionadas com reprodução e sexualidade, lançadas sob forma de
campanhas, por grupos de pressão organizados (… a favor ou contra isto ou
aquilo) e logo aproveitadas (quando não fomentadas) por políticos desejosos de
protagonismo…
Tudo isto cria um enorme complexo
obsessivo, um enorme «mercado» … mas também uma enorme frustração, pois um
vulgar e pacato cidadão (ou cidadã) nunca se deixa de ter diante dos olhos os
tais impossíveis objetos de desejo, perfeitos, inatingíveis ao indivíduo
vulgar. É deste modo que as pessoas comuns, frustradas, sentem necessidade (por
vezes obsessiva) de recorrer à pornografia.
Cria-se o desejo, no contexto de uma
sociedade dita de «mercado», onde a publicidade é o motor do consumo, sendo
esta - por sua vez- o motor da economia «real» (=de produção de bens e
serviços). A «indústria» de pornografia é pois a «resposta» do capitalismo
tardio, capitalismo da transformação robótica, da instrumentalização, não apenas
dos corpos, como das psiques. Devemos ter sempre presente que a ideologia totalitária/
pensamento «único» quase nunca utiliza as palavras «capital», «capitalismo»,
prefere usar expressões como «sociedade de livre mercado», para erigir o seu
próprio sistema político e económico em modelo inultrapassável, tão «natural» e
indispensável como as próprias trocas económicas.
A explosão da pornografia não se
pode atribuir somente nem principalmente à invenção da Internet. A pornografia ou
erotismo pré-existiu, de muitos séculos, à era digital. Mas o fenómeno de
exposição total, de sobre-exposição, de oferta sem limites e sob perfeito anonimato…
é peculiar à nossa época.
O recurso massivo e obsessivo dos jovens,
em especial, tem a ver com uma forma de condicionamento que vai aproveitar a
frustração sexual para a canalizar para a satisfação hedónica imediata.
A adolescência é uma fabricação da
sociedade. Pode-se considerar que o ser humano (de ambos os sexos) atinge a
maturidade sexual plena por volta dos 16-17 anos, o que, aliás, correspondia à idade
média de aparecimento da menarca das jovens.
A não satisfação de uma função
natural, com implicações bioquímicas/hormonais, psíquicas e comportamentais,
origina a frustração.
Numa sociedade patriarcal
repressiva, na qual o poder dos machos dominantes é decisivo para o jovem macho
ter acesso aos «prazeres» deste mundo, leia-se a uma vida sexual, e a procriar
«ter família» … o sexo é regulado, proibido, delimitado, por uma moral estrita.
Numa sociedade pseudoliberal, a
nossa, o sexo já não é tabu, mas pelo contrário, tema obrigatório e obsessivo.
A «tara» moral é substituída pelas «taras» psíquica e mesmo física. Os
adolescentes têm pensamentos obsessivos sobre sexo e sofrem pressão para
deixarem de ser «virgens» o mais depressa possível e de qualquer maneira.
Assim, conseguem os poderes que os
próprios escravos se conformem alegremente com a sua servidão. Ao desviarem os
indivíduos de uma sexualidade libertada e harmoniosa, através de um «Ersatz de
satisfação», conseguem uma dupla vitória: Os próprios escravos reforçam a sua
relação de escravidão e fazem-no, julgando-se mais «livres» por «livremente
escolher» os produtos que lhes são oferecidos.
Algumas pessoas, sob influência dos
clichés desta sociedade em relação a questões de sexualidade, poderão achar que
a nossa visão bastante crítica em relação à pornografia corresponde a uma
defesa de alguma forma de censura. De facto, não é nada inteligente censurar,
especialmente neste caso, pois tornaria esse «produto» ainda mais procurado em
segredo. Talvez poucas pessoas saibam que existe toda uma rede de exploração –
por vezes violenta – associada à indústria de vídeos pornográficos.
Pensar que informação sobre
sexualidade seria veiculada por via dos vídeos porno, toca as raias da estupidez! O
objetivo dos magnatas que produzem estes filmes pornográficos é somente o
lucro.
A acusação ideológica/moral com que
se rotula de «censura» qualquer crítica pode e deve ser devolvida aos que a
fazem. Pois o tal rótulo infamante permite eludir um debate considerado
«inoportuno» ou encobrir os interesses obscuros mais sórdidos, sob pretexto de
«modernidade» ou de «liberdade de expressão». Com efeito, os tais pseudoliberais serão, porventura, os mais diretos beneficiários e aproveitadores da exploração sexual,
sob todas as formas, incluindo o tráfico e a escravatura sexual.
O discurso pseudoliberal no que
respeita à pornografia e ao uso constante das mensagens sexualizadas na
comunicação social, na publicidade e no cinema, tem servido para manter impunes,
para encobrir, para banalizar práticas criminosas.
Assim se compreende como é tornada
escassa a oportunidade de debates públicos necessários, sobre questões de saúde
e de educação sexuais. Se, por um lado, não faz sentido proibir que os
adolescentes e adultos de ambos os sexos tenham acesso ao visionamento de
vídeos com cenas eróticas, por outro lado, parece-nos hipócrita não educar,
especialmente os jovens de ambos os sexos, para realmente terem uma gestão
própria da sua sexualidade, sem subordinação a quaisquer ideias feitas.
Os
afetos podem ser educados, sem se violentar as opções pessoais. Pode-se ajudar,
por todos os meios, a que as pessoas possam crescer saudáveis. A sexualidade
faz parte integrante da saúde física e mental dos indivíduos, da sua integração
social harmoniosa e da sua realização pessoal.
Devemos interrogar-nos sobre a
adição aos vídeos porno. Ela tornou-se muito vulgar em adultos (especialmente
jovens) do sexo masculino. Quais as causas e consequências de
tal adição?
O cérebro é feito de tal maneira que,
as imagens, por exemplo num vídeo, são compreendidas pelo cérebro «racional» (o
pré-frontal), como sendo apenas e somente imagens (resultantes de um artefacto),
mas o cérebro humano tem uma zona profunda (cérebro límbico), que é sede das
pulsões, dos desejos, dos reflexos. Este sistema límbico não distingue entre imagem
filmada e a que resulta da cena real; o cérebro mais primitivo responde como se
o indivíduo estivesse presente e participante nas cenas que são visionadas no ecrã.
Além disso, o cérebro humano tem uma
forma muito especial de interpretar os movimentos que as outras pessoas fazem.
As zonas motoras correspondentes do nosso cérebro mimetizam os gestos que fazem
as outras pessoas; porém, quando se está no papel de observador, as imagens
cerebrais são tratadas como sendo apenas um simulacro, ou seja, o nosso cérebro
racional intervém e reprime a concretização do gesto. É assim que o nosso
cérebro apreende, mimeticamente, a realizar os gestos observados nos outros. A
imitação dos gestos dos outros é muito espontânea. Aliás, se a demonstração por gestos é um processo eficiente de ensinar e aprender nos desportos, na dança, nas
artes, etc., isso deve-se a uma criação de imagens neuronais «em espelho»: o
ser humano aprende a fazer gestos complexos por imitação. Este tipo corriqueiro de
aprendizagem tem excelentes resultados devido à nossa maravilhosa capacidade de «programação flexível»
do cérebro.
A ciência neurológica tem muito a
dizer e a divulgar sobre cérebro e amor. Essa divulgação nem sempre se revestiu
de simplicidade e clareza necessárias para compreensão pelo leigo. Porém, penso
que estes factos devem ser do conhecimento de todas as pessoas, devemos
compreender que nós somos feitos assim, que existe todo um passado evolutivo
que faz com que a nossa organização cerebral se traduza num determinado
funcionamento e este, por sua vez, num comportamento.
Sim, o modo como captamos,
armazenamos e reelaboramos as imagens vindas do exterior é muito complexo! Envolve
estruturas biológicas, processos bioquímicos, etc.
Mas as pessoas adultas e
adolescentes (de ambos os sexos) devem compreender algo que lhes diz respeito e cuja ignorância, de
modo nenhum, pode beneficiá-las. Todas as pessoas podem ser educadas nestes
domínios, quaisquer que sejam seus conhecimentos prévios nestas matérias.
Podemos explicar com simplicidade as coisas básicas, sem falsidades, de maneira
esclarecedora.
A complexidade do amor humano, nas
suas quase infinitas formas, matizes ou modalidades corresponde, afinal, à nossa imensa complexidade e diversidade orgânica e social.
A complexidade na organização de um
ser humano é, na verdade, muito maior que a duma galáxia, constituída por milhões de
estrelas, porque as estruturas, no caso do humano, têm um grau de organização em muitos patamares, o que não se encontra nos corpos constituindo uma
galáxia.
Considere-se que, no fundo, a
complexidade acima descrita é que está na base do livre-arbítrio. Se o
livre-arbítrio existe é porque, tanto as organizações dos indivíduos, como das
sociedades, são de tal modo complexas, não é possível quaisquer inteligências,
mesmo «dez Einstein» reunidos, descreverem adequadamente em termos bioquímicos
e neuronais os mecanismos subjacentes às motivações e comportamentos das
pessoas.
Considerando agora, também o amor – todas as
modalidades de amor – enquanto fenómeno que envolve duas
pessoas, temos a complexidade acima referida... ao quadrado. Constata-se então que a ideia de
determinismo ou de fatalismo no domínio amoroso, um traço típico do amor dito «romântico», cai pela base.
No domínio das relações amorosas,
uma série de clichés em relação ao que supostamente deve ser o comportamento
das pessoas, é simplesmente uma soma de preconceitos, não contribuindo em nada
para a libertação das pessoas, para uma fruição maior dessa arte necessária de amar.
Ao recusarmos todos aqueles falsos
conceitos, o sentimento no amor não será diminuído, mas reforçado, pelo facto
de já não se basear em ilusões.