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sexta-feira, 4 de outubro de 2019

ROTEIRO PARA ESCAPAR DA MATRIX/LABIRINTO [parte II]

                           

Quando me decidi a escrever algo do «sumo» da minha experiência, relativamente a questões que só superficialmente são tidas como do foro íntimo - a consciência, a autonomia do indivíduo, a responsabilidade individual e social - não estava querendo dar «lições de moral», mas antes motivado pelo desejo de arrumar - na minha própria cabeça - conceitos e experiências. 
Depois descobri que, ao arrumar este conjunto de questões, estava a tornar tudo muito mais claro, na minha mente. Este era um «fio de Ariadne» que me poderia conduzir, no futuro, para fora de situações embaraçosas e de constrangimento, como acontece nas vidas de quase todas as pessoas. 
Este «fio» talvez seja demasiado frágil e talvez apenas uma hipótese. Porém, se tal hipótese se confirmar, mesmo que só eu consiga recorrer a ele para sair do labirinto, já é muito. 
Para si, leitor/a, isso significa que o/a leitor/a pode encontrar o seu próprio método, também! Não será isto uma boa notícia?  

As pessoas todas precisam de um «vestido aureolar», uma roupa invisível que proteja a nudez do seu ego. Elas deslocam-se na sociedade, exibindo esse traje, embora estejam nuas, face a alguém com o olhar ingénuo duma criança. 
É curioso ver as pessoas imbuídas das suas roupagens e adereços, como se fossem personagens de teatro, ou de ópera. Serão elas capazes de descolar de suas próprias «representações teatrais», verem-se a si próprias e o papel que estão desempenhando?
- Os personagens da história (os monarcas, chefes militares, etc) construíram deliberadamente um «avatar» de si próprios, um ser mítico, que os súbditos adoravam, um símbolo, algo que não tinha realidade, senão na imaginação dos seus adeptos.
Assim procedem, igualmente, os «ídolos» do desporto, do cinema, da música pop, da política-espectáculo, enquanto manipulação hábil desse «vestido-aureolar». 
Do lado dos adeptos, do lado das massas, existe um desejo, não-satisfeito, de amor, de um amor impossível de satisfazer porque é o amor que uma criança com poucos meses de vida possui/recebe do seio materno, que o nutre e lhe dá tudo, calor, carinho, segurança, prazer. 
A nostalgia dos humanos pelo seio materno é universal. 
Aquilo que não é tão universal é um desejo sôfrego pela satisfação do retorno ao seio materno, mesmo que seja de modo totalmente simbólico, ou o mais  irrisório, até. 
Mas devemos compreender que, em larguíssima escala na sociedade, existe uma regressão infantil de certo número de pessoas. São estas pessoas com grande pulsão para «se entregarem», que procuram uma identificação com um ídolo. Elas colocam-se (interiormente) na postura do «bebé que mama o seio materno». Isto não deveria surpreender, pois estas pessoas não conseguem encontrar na sua vida - que, elas próprias desprezam - algo que supere a quase perfeita felicidade do bebé. É como uma droga, como a «soma» do romance de Aldous Huxley.  E a isto, pode chamar-se alienação.

Note-se que, quanto mais frustradas, mais se agarram à sua «droga» preferida: numas, pode ser  mesmo «droga» no sentido usual de substância aditiva. Noutras, pode ser a identificação com e adoração do ídolo. 
Tal mecanismo é patológico, na medida em que vai escamotear a realidade: o ídolo, não é assim na realidade, mas é essa a imagem retida pelos adeptos que o adoram. 
Além disso, o reforço constante da imago do ídolo, na media popular de massas, cria e alimenta em permanência, o mecanismo de identificação com ele: os adoradores recebem através da imago, um pouco de sua aura, do seu poder mágico, etc, etc.

As pessoas podem estar de tal maneira reprimidas ou anuladas, que não têm a coragem - nem pensam sequer - de viver a sua vida, construindo os seus projectos, aceitando desafios, lutando pelos seus objectivos. Assim, um pequeno grupo consegue perfeitamente manter controlo das restantes pessoas, dominadas. A receita é simples e muito velha: 
- Fazer com que a imagem da(s) pessoa(s) dominante(s) coincida com um mito pré-existente, vestindo a mesma roupagem do mito, ou levemente diferente mas facilmente reconhecida pelas massas, o vestido-aureolar de que falei acima.

Mas, nada disto seria possível se não houvesse, profundamente, em todos nós, uma tendência genética, hereditária, para o gregarismo. 
Esta tendência já está presente, antes do aparecimento dos humanos, no mundo animal, não sendo portanto uma contribuição original da evolução humana, mas antes uma herança ancestral, transportada pelos homininos até  Homo sapiens e presente em todas as culturas humanas, passadas e presentes. 

Irei desenvolver este tema no capítulo seguinte.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

ROTEIRO PARA ESCAPAR DA MATRIX/LABIRINTO [parte I]


                        
Por vezes, a mente é levada a construir complexas construções, as quais se apoderam do próprio funcionamento do indivíduo. A sua consciência é auto-adormecida, pela falsa evidência, aparência, ou ilusão, de que a realidade que o cerca se conforma ao modelo interior, por ele construído. 
Por outras palavras, temos a tendência - forte e generalizada - de interpretar as informações, tanto o que nos chega pelos sentidos, como o que entra pela via do «universo medio-cognitivo», duma maneira que se encaixe no modelo interior que construímos (não conscientemente) do mundo e de nós próprios.
Quando nos deparamos com evidência de que assim é (como escrevi acima) e, sobretudo, que o nosso ponto de vista não pode ser senão o ângulo subjectivo do indivíduo, que interpreta as coisas de acordo com a sua conveniência, podemos ser tentados a adoptar uma postura cínica, como: «se as coisas são assim, então irei fabricar a minha narrativa do real, de acordo com a minha conveniência».
Mas, a narrativa do real, não é o real. O real está para além do alcance da mente humana, não porque ele não exista... nem porque a mente humana seja conceptualmente deficiente, para alcançar esse conhecimento. Não, a impossibilidade de ver o real é ontológica. 
É aquilo que nos transmite o «Koan» seguinte: 

   «os olhos não podem ver-se a si próprios». 

Dirás «mas os meus olhos, que se reflectem no espelho e dos quais vejo a imagem, são reais, pois os fluxos de ondas luminosas que chegam aos meus olhos, o são»... 
Para lá da explicação imediata, de que os olhos não podem ver senão o reflexo (ou seja, ondas luminosas) ao espelho, de si próprios.... devemos ter em conta que o próprio tecido do real é composto de uma grande complexidade. 
Estaremos convictos de que «vemos» algo, que os olhos não nos estão a enganar, no instante preciso em que estamos a sofrer uma ilusão. 
Além disso, a realidade física, as leis da reflexão dos objectos num espelho, a luz que incide e é reflectida, o modo como isso acontece, etc...existem, mas, também elas não proíbem que determinados parâmetros variem, e isso fará com que o observador interprete - de modo erróneo - uma determinada imagem. 
Deve-se ler a discussão acima, não meramente no sentido literal, mas também metafórico: compreendemos que estamos permanentemente a nos enganar a nós próprios, com os «olhos da mente» coloridos por lentes, de cores diversas, como um caleidoscópio que varia, consoante nossos estados internos.
Poderia desenvolver e ilustrar longamente o que acima delineei, mas peço ao próprio leitor para fazê-lo, reflectindo, recorrendo a memórias da sua experiência pessoal, ao que tem ocasião de observar no mundo que o rodeia. 

Assumindo pessoalmente os pressupostos acima, como é que eu me poderei libertar desta «teia», desta «matrix», que me impede a ver o real sem «filtro», sem as ilusões de «óptica» decorrentes da minha própria pessoa? 
- Fará sentido procurar «sair de mim próprio»? 
- Será que posso me desdobrar em «observador do real» e «observador do observador do real»... num jogo de espelhos sem fim,  até ao infinito? 
- Não será melhor eu assumir que - faça o que fizer - estarei sempre imerso nesta matriz, neste vai e vem entre o mundo real e a minha percepção do mesmo, a qual não é «mecânica», «automática», mas sim uma construção? 
O meu cérebro tende a procurar «fazer sentido» da informação, porque foi feito para isso, geneticamente. 
Também  foi treinado pela educação, reforçando este comportamento na vivência de todo o tempo de vida... 
Mesmo que tente descolar do realismo ingénuo - a realidade é «aquilo que vemos» - o certo, é que não comando as minhas pulsões, o meu «fundo animal», etc, pelo que - no melhor dos casos, somente poderei «a posteriori», depois duma ocorrência, tentar compreender o que se passou. 
Também neste caso, terei necessariamente de recorrer às experiências passadas e ao armazenamento das mesmas na memória, não poderei raciocinar de outra forma, senão da maneira como me foi ensinado, condicionado, habituado a fazê-lo, etc. 
Em qualquer situação, estará sempre um subjectivismo irredutível, no centro da interpretação do que vejo.  

A consciência da não-distância ao real, da não-descolagem do personagem que observa, em relação à informação que lhe chega pelos sentidos (ou mecanismos cognitivos), poderá ser um princípio. 
Tendo em conta esta complexidade, não deverei ter a veleidade de saber tudo, nem de ter uma clara visão do que vejo. Terei uma grande prudência em relação aos meus juízos. Nomeadamente, de que sendo eu centrado, ancorado, na minha existência (e isto não pode ser de outro modo), não poderei abarcar a realidade numa visão global, como se fosse «Deus».
A impossibilidade de uma parte (nós) ter um total conhecimento e consciência do todo, no qual está incluída (o Universo), foi demonstrada matematicamente por Gödel, um dos mais brilhantes matemáticos do século XX.

Eu adopto a posição de um realismo prudente, não trivial, não «materialista», não ingénuo em relação à ciência, nem à sua ideologia (cientismo) que muitas vezes nela se esconde. 
Mas sou realista e reivindico esta minha opção, pois me parece ser a única que poderá alimentar uma abordagem saudável e construtiva dos problemas éticos, que se me deparam a cada passo.

Se falamos de ética e de consciência, estamos a falar de quê? 
- Estou a fazer algo pelo sentido do dever ou do prazer? 
- Estou a auto-avaliar a minha escolha, a minha acção, por valores que poderão ser adoptados pelo conjunto da sociedade e até do universo, ou estarei meramente a jogar com as palavras, para me «enganar» a mim próprio?

Muito poderia e deveria ser dito e escrito sobre estas questões, mas aqui irei apenas dar uma indicação de caminho:
- A consciência de si e a noção do real, da realidade, são dois aspectos indissociáveis do «ethos» do indivíduo; tal pode também ser aplicado, com modificações, à ética social, à «moral pública».


sábado, 23 de março de 2019

REFLEXÃO: O CONTRÁRIO DO AMOR...

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O contrário do amor não é o ódio, apesar de ser isto que as pessoas geralmente respondem, se lhes perguntarmos qual o oposto semântico de amor.

O oposto do amor é a indiferença. 
Embora pareça estranho que não seja o ódio ou o desamor, de facto, não é: ódio e desamor são, muitas vezes, consequência de um desespero de amor, de um amor não correspondido, ou de alguém se sentir despeitado/a.

Ora, a nossa sociedade contemporânea tem muito ódio escondido, muito desamor reprimido, porém muito pouca manifestação genuína de amor, em todos os sentidos da palavra.
Parece que a civilização do consumo e da mercadoria recalca (ou extirpa?) aquilo há de mais humano no ser humano, a empatia e a compaixão. 
Falta empatia e assim coexistem bairros de lata ao lado de condomínios de luxo. Falta empatia e as pessoas passam  por pedintes ou sem abrigo, nas ruas mais comerciais de capitais dos países afluentes com total indiferença, sem verem, sem notarem. Falta empatia; porém, as pessoas «emocionam-se» com algo que vêem nos pequenos ecrãs e até se «mobilizam», solidárias com causas distantes, a muitas centenas ou milhares de quilómetros.

A questão importante e prévia, é saber:
- Será inevitável esta mudança comportamental individual e colectiva, correlacionada com a progressão (que não progresso) da civilização tecnológica, que satura os indivíduos com bens materiais, enquanto os esvazia de empatia autêntica, de densidade humana, de espiritualidade? 
- Ou será possível reverter isso?
Na hipótese de que será possível essa reversão, como é que se pode conceber que tal aconteça? Quais os aspectos fundamentais, que a tornarão possível? 

Não sei, mas no caso de haver saída disto tudo, ela terá que ser não compatível com os valores desta sociedade, portanto em ruptura com os mesmos. Que esta ruptura seja brusca ou suave, não posso adivinhá-lo. 
Mas, aquilo que sei, é que este estado de coisas piora a humanidade em todos os aspectos, desde a dignidade das pessoas (individualmente tomadas), até ao próprio sentido da vida (na sua dimensão global e social). 

E a indiferença, então? Sim, o contrário do amor, que fazer dela, no meio disto tudo? 
- Creio que, na verdade, as pessoas mascaram de indiferença, fingem não ver, aquilo que lhes causa medo, pavor: o facto de se ver um sem-abrigo causa pavor, na medida em que - lá no fundo - se teme que isso nos possa acontecer. Uma tal eventualidade é vista como o atingir da degradação última.
A indiferença é então sinónimo de medo, de intimidação, de estar em «denegação», até mesmo, duma forma atenuada de esquizofrenia.  
A «arma» que o amor pode usar, é mostrar que não há que ter medo, que podemos abordar as questões por outro ângulo, aquele que - justamente - a media corporativa e todos os pregadores de moral se esforçam por não nos mostrar. 
Este ângulo é o seguinte: tudo tem uma ou várias causas, tudo tem a sua origem. Sabendo-se qual ou quais as causas, temos meio-caminho andado para as extirpar. O outro meio-caminho, será o procurar meios adequados para esse fim.

Todas as pessoas que sofrem e têm medo, no fundo, anseiam libertar-se desses males. 
A sua libertação passa por uma auto-educação, pelo seu apoderamento, mas tal só é viabilizado se estiverem construindo, em simultâneo, novas formas de estar e de conviver. 
Os novos valores, ou a reafirmação e plena compreensão de valores ancestrais, terão de emergir, na negação dialéctica dos quadros mentais que nos foram impostos.   

domingo, 18 de novembro de 2018

NÓS, OS PEQUENOS DEUSES (nº1)

Chegámos ao cúmulo da contradição capitalista. A contradição não significa que ele esteja em vésperas de se desmoronar. Com efeito, não é um regime ou um edifício que se poderia simplesmente derrubar ou desmontar, mas antes um modo de produção, algo que penetra em todos os «poros» da sociedade. 
Seria um trabalho gigantesco e completamente fora das minhas forças retraçar a história da humanidade desde os seus primórdios, até aos nossos dias. Outros o fizeram e seus grandes frescos tornaram-se obsoletos, em pouco tempo. Aliás, assiste-se hoje à constante renovação de conceitos e noções na História, em particular da História dos povos sem escrita mas, igualmente, em novas abordagens do passado mais recente. 

Porém tento, através de um olhar de biólogo, esclarecer alguns aspetos da questão. 
O fenómeno antropológico mais notório, na minha perspetiva, é a sobredimensão da intervenção humana nos ecossistemas. 
Ela teve efeitos catastróficos já desde muito cedo, nos tempos do Neolítico, em que imensas florestas foram simplesmente queimadas para dar lugar a solos agrícolas. No entanto, a tendência depredadora acentuou-se nos últimos cem ou duzentos anos, por comparação com os dez ou doze mil anos desde o neolítico. Houve uma real transformação em todos os ecossistemas e no ecossistema planetário. O fenómeno atingiu um novo patamar, em que os mecanismos essenciais para a renovação dos equilíbrios naturais deixam de funcionar. 
Por outras palavras, assiste-se a uma catástrofe de grandes dimensões e gravidade para a própria existência da humanidade enquanto tal, para a existência de civilização. 
Mas, isso deixa indiferentes grandes e pequenos, poderosos e humildes, mesmo que - no fundo - o saibam. 
Escudam-se numa atitude fatalista - «é assim, é verdade, mas nada de significativo podemos fazer para inverter a marcha» - ou numa denegação - «haverá sempre saída, uma transformação pela tecnologia, que resolverá esses problemas». Ambas as atitudes mentais fornecem o alibi para as pessoas continuarem a consumir e a sacrificar ao deus do dinheiro a melhor parte das suas vidas.  

A existência de uma enorme força entrópica, destruidora, devido à atividade humana, tem sido expulsada para as margens do sistema. O sistema não nos parece entrópico, pois nele estamos banhados e visto que a entropia aumenta, não no nosso entorno imediato, mas nas suas margens. Por margens, aqui, entenda-se os ecossistemas naturais e o seu funcionamento, cada vez mais defeituoso, ao ponto de que certas partes experimentam degradações irreversíveis; extinção de espécies em escala semelhante à de outras grandes extinções geológicas, a contaminação dos oceanos e dos solos com todo o tipo de poluentes, pondo em risco a manutenção da própria vida em geral . 
Mas também, o caos/entropia tem sido relegado para uma marginalização dos próprios humanos nas sociedades; a indiferença do chamado «Primeiro Mundo» à crescente pauperização nos «Terceiro e Quarto Mundos». Na própria periferia das sociedades ditas afluentes, reproduz-se esse fenómeno, um número crescente de pessoas que não têm o suficiente para sustentar uma vida digna, cujas vidas foram destroçadas pelo desemprego, a violência social e moral, com o seu cortejo de sequelas, o alcoolismo, as drogas, etc... Estas pessoas são simplesmente «ignoradas», enquanto as restantes continuam nas suas atividades, no seu quotidiano. 

No próprio interior dos indivíduos, esconde-se o medo, o medo de ser excluído, de não corresponder ao padrão de exigência que se impõe a todos, através duma norma social não escrita. 
Observa-se o crescimento das neuroses e psicoses, além de novas patologias sociais, com a criação e reforço de todo um conjunto de reflexos ou padrões comportamentais: 
- A excessiva preocupação com a estética pessoal, a formatação mental completa por imersão em «lixo informativo», em videojogos que mergulham as pessoas em universos ficcionais, uso aditivo e compulsivo de telemóveis, etc. Estas novas patologias, somam-se às mais «tradicionais» frequentemente, num mesmo indivíduo.
Em tal sociedade, o «ecossistema interno» dos indivíduos, à imagem do ecossistema exterior em que estão inseridos, acaba por se tornar disfuncional, em todos os planos: na psique, nos afetos, na mente, na razão, no senso moral, na ética. 

A mais vulgar reação, quando as pessoas se apercebem de que «qualquer coisa vai mal» é apelarem para um sistema de explicação mítica global, seja duma religião organizada no sentido tradicional, ou outro sistema de crenças sem explícita referência ao divino, como as ideologias. Assim, libertam-se de parte das suas angústias, mas à custa da perda da sua auto-determinação, da sua capacidade de examinar livre e maduramente as causas dos males que as afligem.
As pessoas, cujas vidas se tornaram horrivelmente solitárias e depressivas, vão procurar satisfação e proteção em grupos «tribais»: por exemplo, os grupos de adeptos dos clubes de futebol (as claques), onde partilham símbolos, mitos, cerimónias religiosas, comportamentos ritualizados, etc.  
Mas também se pode verificar os mesmos reflexos noutras tribos urbanas, desde grupos de afinidade partilhando espaços e um modo de vida alternativo, até aos gangs de delinquentes, ou grupos paramilitares neonazis.
Todas estas pseudorespostas, são afinal tentativas não conscientes de superar  simbolicamente o que há de disfuncional em suas vidas, no seu sentir e pensar.

Há uma evidência, que todos os poderes se esforçam por ocultar: São, justamente,  as condições dessa violência disseminada por toda a sociedade, que permitem a continuidade e reforço da exploração. 
Os fenómenos, individuais ou sociais, acima mencionados, são consequência dessa tal violência social surda, dessa exclusão de um estatuto de cidadania real e da dignidade humana na sua plenitude, em milhões de indivíduos. 

O medo é o principal factor «organizador» desta sociedade. 
As pessoas encontram-se - sem perceberem porquê, nem como - isoladas, sem vínculos, sem trabalho regular, sem reais hipóteses de melhorar.  
A escola tem como função fazer com que a maioria se resigne a essa marginalização, tem como função criar o fracasso, o insucesso. A interiorização do fracasso é condição para a manutenção das desigualdades sociais, para a imposição da exploração.




quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

FRAGMENTOS [OBRAS DE MANUEL BANET]

SOBRE ARTE TRANSCENDENTE

Há algo de transcendente na arte, por mais humana que seja sua expressão e por mais humanos que sejam os seus temas. Na verdade, ninguém saberá explicar exactamente a transcendência da arte. Não se estará nunca em condições de o fazer, porque esta qualidade é do foro emocional, não do racional. 
Algumas pessoas poderão dizer que todos os juízos sobre arte e, mesmo, todos os objectos de arte, se valem. Mas igualizar assim, de modo brutal, tudo o que seja produção artística, soa antes a um sofisma: Com efeito, a comunicação em arte ocorre, se e somente se houver transmissão da emoção, do sentimento, do objecto ou do ser representado, para o observador. 
A emoção em bruto, ressentida pelo artista, é filtrada, é trabalhada interiormente e transmite-se ao espectador/receptor... Será isto a essência do que se considera arte?

Na verdade, a arte estará sempre presente. Pelo olhar, estou sempre a ver arte: A natureza que contemplo, o mar, o céu, o jardim e os animais que se abrigam nele, tudo isto faz parte do meu mundo emocional. A arte, o encontrar beleza nas coisas, nos objectos, ou nas pessoas, está no olhar...

Com os anos, aprendi a apreciar as coisas óptimas ao meu alcance, já não me preocupando que os outros tivessem ou não os mesmos gostos. 
Sempre soube, ou intui antes de o teorizar, que o passado é que é real, mesmo que já não se possa experimentar directamente a emoção dum instante passado. 
Confesso ser influenciado pela música, pela pintura, etc. de eras passadas. Recebo a reverberação do passado sobre o presente. O passado, reactualizado na vivência do presente, está presente ... 


SOBRE SABEDORIA


Estar em modo de abertura e - ao mesmo tempo - centrado em si próprio, seria a base da sabedoria e da paz de espírito. Sabemos que o mundo sempre se agitou com paixões, com ambições, com desejos, com violência de vária ordem e com imenso amor, também. Compreendemos que não é coisa fácil, aceitar o mundo tal como ele é; será indispensável, porém, para uma tranquilidade de espírito. 
Os grandes sábios, os mestres iniciadores de religiões e correntes filosóficas, ao longo das eras, souberam dominar o medo e olhar sem vendas para o mundo tal como ele é. 
O princípio da sabedoria, poderia enunciar-se deste modo: manter a abertura para o mundo tal como ele é, sem descurar as tarefas necessárias para preservar o nosso ser. 

SOBRE OS INSTINTOS

Seria inútil ou mesmo impossível, toda e qualquer acumulação do saber e de arte se, a cada geração, fosse necessário tudo refazer. 
Tal equivaleria ao ciclo de vida  típico dos insectos, em que a geração filial está separada temporalmente da geração parental: os novos seres nascem de ovos, na estação favorável, quando seus progenitores já estão todos mortos. 
Em consequência disto, o comportamento destas espécies tem de ser quase todo determinado pelo instinto, pois não têm oportunidade de realizar aprendizagens, durante sua curta existência, que lhes ensinem como sobreviver e prosperar. 
À medida que se passa às formas mais complexas, mais elaboradas de seres vivos, a parte de instinto no comportamento vai diminuindo, a parte de cultura vai aumentando. 
O humano, será, afinal, um ser animal cujos instintos, não foram suprimidos, mas apenas dominados: no interior, pela mais recente aquisição evolutiva do cérebro (o neocórtex) e, no exterior, pela organização social e pela cultura, no sentido lato.


SOBRE A EDUCAÇÃO

Atribui-se uma importância primordial à educação. Esta não deveria estar centrada nos aspectos cognitivos, nas aprendizagens dos saberes teóricos, somente, mas deveria desenvolver-se enquanto prática social integradora, não amestradora, não castradora, dos jovens. 
A observação por dentro do sistema de «educação» permitiu-me constatar que, apesar de todos os discursos, a prática integradora exercida pela instituição escolar é ainda sobretudo «amestradora e  castradora», ou seja, limitadora da liberdade dos indivíduos. Pelo contrário, a componente de aprendizagem potencialmente emancipadora, o adquirir de competências socialmente úteis e capazes de gerar rendimento e, portanto que auxiliasse à autonomia real do indivíduo, tem estado atrofiada, marginalizada nos programas escolares e académicos. Tive ocasião de constatar que é algo que tem vindo a acentuar-se, cada vez mais, da escola básica até à universidade, inclusive. 


SOBRE A MEMÓRIA

A possibilidade de reescrever o passado existe, por mais estranho que pareça, à primeira vista: ela resulta da propriedade chamada resiliência. Sem ela, a existência dos humanos seria impossível, ou seria apenas mera sobrevivência.  
Seria útil reequacionar o conceito de memória humana como emanação dum órgão, como tendo uma essência orgânica. Não é ela de essência maquinal, como a memória de um computador. A analogia cérebro-computador está errada, ao nível profundo. Os mecanismos e modos de funcionamento inseridos nos  planos de construção respectivos são completamente distintos: 
- A memória humana é plástica, selectiva, altamente subjectiva, umas vezes precisa, outras vezes vaga. Ela também se pode auto-estimular, auto-construir-se e reconstruir-se; não tem nada que ver com máquinas fabricadas pelos homens. Estas podem simular, apenas e de modo muito imperfeito, o raciocínio lógico cerebral. Quanto ao domínio emocional, permanece exclusivo do cérebro humano (e animal).
O funcionamento da memória permite que sejamos quem somos, que tenhamos consciência de nós próprios. Não existe qualquer máquina com verdadeira consciência de si própria, por mais que os romances de ficção científica tentem tornar isso verosímil, os mundos dominados por robots. 


SOBRE O NARCISISMO

As pessoas confundem, muitas vezes, o conhecimento de si próprio com narcisismo. Enquanto o mito de Narciso tem profundo significado psicológico, o termo «narcisismo» é usado - de forma redutora - para designar uma patologia, uma forma extremada do amor de si. 
Mas o facto de estarmos atentos e olharmos nossa imagem ao espelho da alma, não somente será saudável, consiste mesmo na base do comportamento reflectido, da consciência, da ética. 
Só um certo grau de auto-conhecimento pode proporcionar ao individuo que este veja o mundo (e se veja no mundo) de forma equilibrada. A visão do real está implicitamente centrada no ser que observa. Só podemos observar literalmente com os próprios olhos, com o nosso ponto de vista. Porém, o fio que separa a auto-consciência, da auto-indulgência (do narcisismo patológico),  pode ser bastante ténue. 
Será necessária uma certa dose de amor de si, de auto-estima. Como traço estruturante da psique e do relacionamento na sociedade, será bem diferente do «narcisismo patológico».





quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

ESTRANHOS CASOS DE SOLIDÃO «SOCIAL»

              
Tenho vindo a refletir sobre alguns comportamentos e atitudes de pessoas, minhas conhecidas ou não, que revelam antes de mais uma grande incapacidade para estarem sós. 
Algumas pessoas procuram desesperadamente um parceiro/a, convencendo-se que a vida assim é um fardo difícil de suportar, mas possuem pouca tolerância, por outro lado, para se compatibilizarem e aceitarem pessoas reais, com outros modos de ser, com outras visões do mundo e da vida em sociedade.
Outras, têm uma vida «social» aparentemente muito ampla e diversificada, mas com uma superficialidade que espelha a superficialidade nelas próprias.
Outras ainda, pensam que são muito capazes de «compreender os outros»; porém, isso apenas acontece nas suas cabeças, não no mundo real.

Muitas pessoas têm «medo» de estar sós: sentem-se angustiadas, sentem-se inseguras. 
A disfunção social traduz-se,  por ser a principal causadora, ao nível dos indivíduos, dos comportamentos auto-destruidores, começando pela fragilização da auto-imagem e podendo ir até a comportamentos de risco, roçando a criminalidade ou marginalidade.
As famílias estão desestruturadas, a cada geração é maior o número de crianças que crescem sem um dos progenitores (o pai, na imensa maioria dos casos) e, no entorno destas crianças, muitas vezes, não existe sequer uma rede verdadeira de afetos. 
A família nuclear, reduzida ao mínimo, está produzindo pessoas adultas disfuncionais em termos sociais, em particular na esfera afetiva, incapazes de relacionamentos felizes com os outros. 
As crianças estão mais isoladas dos adultos e, por isso, incapazes de compreender os adultos das gerações anteriores, o que faz com que a sociedade se estruture em «gerações», estruturação aparentemente cómoda para alguns, mas que é totalmente anti-natural, pois sempre houve uma sociedade composta por várias gerações, formando uma rede em torno dos indivíduos. 
Dizem alguns estudiosos do comportamento humano que a nossa capacidade de relacionamento algo profundo e significativo com outros humanos tem um número limite bastante baixo, o de uma pequena aldeia com umas poucas centenas de adultos. É verdade que as oportunidades reais de contactos significativos com outras pessoas, ao longo da vida, devem ter sido desta ordem de grandeza, durante dezenas de milhares de anos. 
Podia-se esperar uma multiplicação deste tipo de interacções como resultado da industrialização. Mas a industrialização não trouxe senão uma redução desse número (refiro-me a interacções sociais significativas, com algum conhecimento aprofundado, não trivial, do outro). 
A industrialização acentuou o isolamento das pessoas, com o ambiente urbano em que se viram incluídas. Neste ambiente foram nascendo cada vez mais humanos: sabe-se que o número total de humanos vivendo nas grandes aglomerações mundiais, já é agora maior que os vivendo em pequenas vilas ou aldeias, que ainda têm um modo de vida rural. 
O indivíduo continuou a ter a «sua aldeia», de certo modo, na rede de relacionamento social urbana, durante algum tempo, mas isso está a perder-se com a individualização extrema que se observa em múltiplos aspectos da vida social contemporânea. 
Os empregos eram antes uma natural oportunidade de diversificar os relacionamentos humanos, a vários níveis. Hoje em dia, pelo contrário, a própria organização do trabalho favorece a separação, a individualização, uma falsa autonomia, pois está sempre dependente da vontade soberana do «dador de trabalho», da empresa. O patrão, ele próprio, tornou-se algo impessoal, sem rosto, em cada vez maior número de casos.
A sociedade humana não tem (nem teve, nunca) uma estruturação rígida, como a dos outros animais sociais. 
Isso é que permitiu à humanidade inventar outros modos de organizar a sua própria vida social, ao longo dos tempos. Porém, agora, chegou-se a uma espécie de beco sem saída.

A solidão não será propriamente «a doença do século»; no entanto, é um sintoma da verdadeira doença do século - o individualismo.



quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

NINGUÉM É NORMAL ... pensem nisto

Será verdade? Será uma brincadeira?
Ou será algo mais profundo?
O que é normalidade? O que significa «normal»?
Já escavaram o conceito de normal?
Já viram que é um conceito da matemática e estatística?
Não são os termos «doente», ou «patológico», os contrários de «normal»!

Estar dentro da norma (estatística, subentende-se) tem um significado matemático; a este sentido, adicionam ou sobrepõem o significado moral e jurídico de «norma», de lei, de coisa que as pessoas devem fazer ou evitar, para cumprirem a lei.
Mas nem um, nem outro dos sentidos, se coaduna com a complexidade do indivíduo, pois são...
- ou uma deliberada simplificação do ser, reduzindo toda a sua existência a um único parâmetro (para depois o medirem!),
- ou a imposição de lei não consentida, mas decretada do alto do poder, cuja não observância pode ter consequências bem pesadas. Podem ir até ... uma condenação à morte, ou a «morte cívica», numa prisão ou numa instituição para alienados.

Somos infinitamente complexos; é impossível qualquer «medição» da normalidade estatística, em relação ao que é a nossa personalidade, o nosso comportamento. Ambos são demasiado complexos para serem definidos e determinados por meia-dúzia de parâmetros.
Quanto à norma como lei, somos livres de cumpri-la ou não (conceito de livre-arbítrio): Temos consciência, logo podemos decidir que vamos cumprir determinadas normas sociais; ou, pelo contrário, a nossa consciência pode levar-nos a infringir certas normas, porque as consideramos não compatíveis com a nossa ética.

Em nenhum caso, faz sentido dizer-se que somos, ou não somos, «normais». O conceito, qualquer que seja a conotação dada, não é apropriado ao que nos define enquanto seres humanos.

«Normalizados» é porém o que os totalitarismos (soft ou hard) pretendem fazer de nós, humanos!

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O MUNDO CARACOL

O mundo-caracol (ou o mundo-concha) é aquela construção que emana de nós, que construímos camada após camada, sempre em espirais cada vez maiores, para nos defendermos, ocultarmos, explorando em segurança o nosso entorno. 
O mundo-caracol é autocentrado, é egocêntrico; não é sempre e necessariamente egoísta.
              
Para torná-lo hermético, será possível fabricar um opérculo, uma pequena porta fechada, como os caracóis fazem quando vão estivar (o mesmo que hibernar mas no Estio, a estação da seca). 

Digo isto, porque opérculos fechados, é o que mais vemos por aí. Fala-se de epidemia de autismo. Eu falaria antes de epidemia de pequenos mundos auto-centrados, com pessoas completamente dobradas sobre si próprias, como o feto no útero.

Não me parece mal que se esteja auto-centrado, que se assuma o seu subjectivismo; mas todas as coisas têm  sua medida. 
O caracol - propriamente dito - tem natural curiosidade e necessidade de explorar o mundo. Arrasta consigo a carapaça que o protege. Pode retirar-se instantaneamente para dentro dela, tornando-se inexpugnável, pelo menos para predadores de dimensão não muito diferente dele. 
Estes caracóis naturais são saudáveis, porque optimizaram duas condições essenciais da sua sobrevivência: exploração do meio e defesa contra predadores. 

As pessoas que se posicionam sempre como os caracóis em período de seca, que constantemente se fecham, podem não ter consciência disso, como nós não temos consciência de que estamos mergulhados na atmosfera. Porém, o seu auto-centramento extremo significa que não estarão capazes de uma abertura ao exterior, equilibrada e saudável.

Para satisfazer a necessidade de protecção,  totalmente natural e legítima, que todos os seres vivos possuem, o que se pode então fazer? 
- Ela deve ser encontrada na sociedade, na comunidade com os outros, com a família, com os colegas, com os amigos. 
Sem uma teia de relacionamento social, que nos sustenta do ponto de vista emocional e mesmo material, todo o indivíduo tende a ser como o caracol no Estio: fechado hermeticamente sobre si próprio em posição fetal, sem interacção com o entorno.


domingo, 2 de outubro de 2016

PUBLICIDADE, UNIVERSO SIMBÓLICO E «ADBUSTERS»



                          Este vídeo é uma palestra virtual para III Jornada de Psicologia: saúde mental e práticas profissionais, promovida pelo curso de Psicologia da Faculdade Guaicará, em Guarapuava, no Paraná.

domingo, 3 de julho de 2016

A ARTE DE AMAR



«A arte de amar»

De todas as artes, a que suscita maior entusiasmo, queiram ou não queiram os puritanos, é a arte de amar.
Este amor, o amor entre pessoas, entre seres de carne e osso. Este amor, feito queimadura, que nos toma as entranhas; esse sentimento, que se traduz em vertigem, que pode ser tão potente ao ponto de nos levar a um estado de quase loucura, ou mesmo de loucura propriamente dita.
O desencadear das paixões amorosas é como essa outra paixão – bem mais nefasta – a paixão da guerra. Há muitas maneiras de iniciar uma guerra, mas nunca se sabe… uma vez começada, como irá terminar. A analogia guerreira é muito usada para descrever as paixões amorosas.
Só na literatura do Ocidente, a lista de filósofos, poetas, escritores, cientistas e artistas que se debruçaram sobre o tema é interminável!
Se tudo foi dito, no que respeita à «Arte de Amar», as obras que vão surgindo - populares ou eruditas- sobre o tema, só podem interessar enquanto testemunhos da época:
- Diz-me como falas do amor e eu te direi em que tempo vives, a que cultura e sociedade pertences…



Um assunto desenvolvido em todo o género de literatura, desde os livros de «autoajuda», aos romances …O tema corresponde obviamente a um interesse muito especial do público, que compra abundantemente esses livros pelo prazer, sem dúvida, mas também por desejo de aprender e por pressão social.
Estamos tão mergulhados no quotidiano que não nos apercebemos, por vezes, da grande velocidade das mudanças na nossa sociedade. Hoje, há um matraquear permanente sobre amor e sexo: o sexo «sugerido», na publicidade ou nos filmes; ou o sexo «explícito» com a banalização da pornografia. Hoje em dia, qualquer pessoa tem fácil acesso a vídeos pornográficos.
A outro nível, a imposição permanente no discurso político e mediático de numerosas questões ditas «fraturantes», relacionadas com reprodução e sexualidade, lançadas sob forma de campanhas, por grupos de pressão organizados (… a favor ou contra isto ou aquilo) e logo aproveitadas (quando não fomentadas) por políticos desejosos de protagonismo…
Tudo isto cria um enorme complexo obsessivo, um enorme «mercado» … mas também uma enorme frustração, pois um vulgar e pacato cidadão (ou cidadã) nunca se deixa de ter diante dos olhos os tais impossíveis objetos de desejo, perfeitos, inatingíveis ao indivíduo vulgar. É deste modo que as pessoas comuns, frustradas, sentem necessidade (por vezes obsessiva) de recorrer à pornografia.
Cria-se o desejo, no contexto de uma sociedade dita de «mercado», onde a publicidade é o motor do consumo, sendo esta - por sua vez- o motor da economia «real» (=de produção de bens e serviços). A «indústria» de pornografia é pois a «resposta» do capitalismo tardio, capitalismo da transformação robótica, da instrumentalização, não apenas dos corpos, como das psiques. Devemos ter sempre presente que a ideologia totalitária/ pensamento «único» quase nunca utiliza as palavras «capital», «capitalismo», prefere usar expressões como «sociedade de livre mercado», para erigir o seu próprio sistema político e económico em modelo inultrapassável, tão «natural» e indispensável como as próprias trocas económicas.



A explosão da pornografia não se pode atribuir somente nem principalmente à invenção da Internet. A pornografia ou erotismo pré-existiu, de muitos séculos, à era digital. Mas o fenómeno de exposição total, de sobre-exposição, de oferta sem limites e sob perfeito anonimato… é peculiar à nossa época.
O recurso massivo e obsessivo dos jovens, em especial, tem a ver com uma forma de condicionamento que vai aproveitar a frustração sexual para a canalizar para a satisfação hedónica imediata.
A adolescência é uma fabricação da sociedade. Pode-se considerar que o ser humano (de ambos os sexos) atinge a maturidade sexual plena por volta dos 16-17 anos, o que, aliás, correspondia à idade média de aparecimento da menarca das jovens.
A não satisfação de uma função natural, com implicações bioquímicas/hormonais, psíquicas e comportamentais, origina a frustração.
Numa sociedade patriarcal repressiva, na qual o poder dos machos dominantes é decisivo para o jovem macho ter acesso aos «prazeres» deste mundo, leia-se a uma vida sexual, e a procriar «ter família» … o sexo é regulado, proibido, delimitado, por uma moral estrita.
Numa sociedade pseudoliberal, a nossa, o sexo já não é tabu, mas pelo contrário, tema obrigatório e obsessivo. A «tara» moral é substituída pelas «taras» psíquica e mesmo física. Os adolescentes têm pensamentos obsessivos sobre sexo e sofrem pressão para deixarem de ser «virgens» o mais depressa possível e de qualquer maneira.  

Assim, conseguem os poderes que os próprios escravos se conformem alegremente com a sua servidão. Ao desviarem os indivíduos de uma sexualidade libertada e harmoniosa, através de um «Ersatz de satisfação», conseguem uma dupla vitória: Os próprios escravos reforçam a sua relação de escravidão e fazem-no, julgando-se mais «livres» por «livremente escolher» os produtos que lhes são oferecidos. 
Algumas pessoas, sob influência dos clichés desta sociedade em relação a questões de sexualidade, poderão achar que a nossa visão bastante crítica em relação à pornografia corresponde a uma defesa de alguma forma de censura. De facto, não é nada inteligente censurar, especialmente neste caso, pois tornaria esse «produto» ainda mais procurado em segredo. Talvez poucas pessoas saibam que existe toda uma rede de exploração – por vezes violenta – associada à indústria de vídeos pornográficos.
Pensar que informação sobre sexualidade seria veiculada por via dos vídeos porno, toca as raias da estupidez! O objetivo dos magnatas que produzem estes filmes pornográficos é somente o lucro.



A acusação ideológica/moral com que se rotula de «censura» qualquer crítica pode e deve ser devolvida aos que a fazem. Pois o tal rótulo infamante permite eludir um debate considerado «inoportuno» ou encobrir os interesses obscuros mais sórdidos, sob pretexto de «modernidade» ou de «liberdade de expressão». Com efeito, os tais pseudoliberais serão, porventura, os mais diretos beneficiários e aproveitadores da exploração sexual, sob todas as formas, incluindo o tráfico e a escravatura sexual.
O discurso pseudoliberal no que respeita à pornografia e ao uso constante das mensagens sexualizadas na comunicação social, na publicidade e no cinema, tem servido para manter impunes, para encobrir, para banalizar práticas criminosas.
Assim se compreende como é tornada escassa a oportunidade de debates públicos necessários, sobre questões de saúde e de educação sexuais. Se, por um lado, não faz sentido proibir que os adolescentes e adultos de ambos os sexos tenham acesso ao visionamento de vídeos com cenas eróticas, por outro lado, parece-nos hipócrita não educar, especialmente os jovens de ambos os sexos, para realmente terem uma gestão própria da sua sexualidade, sem subordinação a quaisquer ideias feitas. 





Os afetos podem ser educados, sem se violentar as opções pessoais. Pode-se ajudar, por todos os meios, a que as pessoas possam crescer saudáveis. A sexualidade faz parte integrante da saúde física e mental dos indivíduos, da sua integração social harmoniosa e da sua realização pessoal.
Devemos interrogar-nos sobre a adição aos vídeos porno. Ela tornou-se muito vulgar em adultos (especialmente jovens) do sexo masculino. Quais as causas e consequências de tal adição?
O cérebro é feito de tal maneira que, as imagens, por exemplo num vídeo, são compreendidas pelo cérebro «racional» (o pré-frontal), como sendo apenas e somente imagens (resultantes de um artefacto), mas o cérebro humano tem uma zona profunda (cérebro límbico), que é sede das pulsões, dos desejos, dos reflexos. Este sistema límbico não distingue entre imagem filmada e a que resulta da cena real; o cérebro mais primitivo responde como se o indivíduo estivesse presente e participante nas cenas que são visionadas no ecrã.
Além disso, o cérebro humano tem uma forma muito especial de interpretar os movimentos que as outras pessoas fazem. As zonas motoras correspondentes do nosso cérebro mimetizam os gestos que fazem as outras pessoas; porém, quando se está no papel de observador, as imagens cerebrais são tratadas como sendo apenas um simulacro, ou seja, o nosso cérebro racional intervém e reprime a concretização do gesto. É assim que o nosso cérebro apreende, mimeticamente, a realizar os gestos observados nos outros. A imitação dos gestos dos outros é muito espontânea. Aliás, se a demonstração por gestos é um processo eficiente de ensinar e aprender nos desportos, na dança, nas artes, etc., isso deve-se a uma criação de imagens neuronais «em espelho»: o ser humano aprende a fazer gestos complexos por imitação. Este tipo corriqueiro de aprendizagem tem excelentes resultados devido à nossa maravilhosa capacidade de «programação flexível» do cérebro.
A ciência neurológica tem muito a dizer e a divulgar sobre cérebro e amor. Essa divulgação nem sempre se revestiu de simplicidade e clareza necessárias para compreensão pelo leigo. Porém, penso que estes factos devem ser do conhecimento de todas as pessoas, devemos compreender que nós somos feitos assim, que existe todo um passado evolutivo que faz com que a nossa organização cerebral se traduza num determinado funcionamento e este, por sua vez, num comportamento.
Sim, o modo como captamos, armazenamos e reelaboramos as imagens vindas do exterior é muito complexo! Envolve estruturas biológicas, processos bioquímicos, etc. 
Mas as pessoas adultas e adolescentes (de ambos os sexos) devem compreender algo que lhes diz respeito e cuja ignorância, de modo nenhum, pode beneficiá-las. Todas as pessoas podem ser educadas nestes domínios, quaisquer que sejam seus conhecimentos prévios nestas matérias. Podemos explicar com simplicidade as coisas básicas, sem falsidades, de maneira esclarecedora.
A complexidade do amor humano, nas suas quase infinitas formas, matizes ou modalidades corresponde, afinal, à nossa imensa complexidade e diversidade orgânica e social.


A complexidade na organização de um ser humano é, na verdade, muito maior que a duma galáxia, constituída por milhões de estrelas, porque as estruturas, no caso do humano,  têm um grau de organização em muitos patamares, o que não se encontra nos corpos constituindo uma galáxia.
Considere-se que, no fundo, a complexidade acima descrita é que está na base do livre-arbítrio. Se o livre-arbítrio existe é porque, tanto as organizações dos indivíduos, como das sociedades, são de tal modo complexas, não é possível quaisquer inteligências, mesmo «dez Einstein» reunidos, descreverem adequadamente em termos bioquímicos e neuronais os mecanismos subjacentes às motivações e comportamentos das pessoas.
Considerando agora, também o amor – todas as modalidades de amor – enquanto fenómeno que envolve duas pessoas, temos a complexidade acima referida... ao quadrado. Constata-se então que a ideia de determinismo ou de fatalismo no domínio amoroso, um traço típico do amor dito «romântico», cai pela base.




No domínio das relações amorosas, uma série de clichés em relação ao que supostamente deve ser o comportamento das pessoas, é simplesmente uma soma de preconceitos, não contribuindo em nada para a libertação das pessoas, para uma fruição maior dessa arte necessária de amar.


Ao recusarmos todos aqueles falsos conceitos, o sentimento no amor não será diminuído, mas reforçado, pelo facto de já não se basear em ilusões.